Em estudo orientado pelo renomado neurocientista Sidarta Ribeiro, o pesquisador Sérgio Arthuro Mota Rolim, do Instituto do Cérebro e do Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), examinou a atividade cerebral de um grupo de voluntários durante os sonhos lúcidos, que são aqueles que ocorrem quando o sujeito tem consciência de estar sonhando e possui a capacidade de mudar o enredo onírico conforme a sua vontade.

O primeiro passo do experimento foi a realização do exame de polissonografia, que mede padrões de sono a partir da colocação de sensores espalhados pela cabeça, principalmente sobre o couro cabeludo (pra detectar a atividade cerebral), olhos (pra captar o movimento ocular) e queixo (para verificar o tônus muscular). A equipe induziu os sonhos lúcidos a partir da autossugestão.

O cientista observou o padrão de atividade cerebral do grupo durante o sono REM, do inglês: “Rapid Eye Movement” ou Movimento Rápido dos Olhos. Essa é a fase do sono que se caracteriza por movimentos oculares rápidos, sonhos vívidos e ausência de movimentos musculares voluntários.

O neurocientista constatou que houve maior atividade da região frontal do cérebro – responsável por funções cognitivas superiores, entre elas, a autoconsciência. Outra área ativa foi a occipital, que indica que o voluntario apresentava padrão cerebral similar ao que se tem quando está acordando.

Em outro estudo, Rolim analisou como as diferentes religiões interpretam os sonhos, em especial, os sonhos lúcidos. Segundo ele, as doutrinas orientais encaravam essa experiência com um meio de autoconhecimento; enquanto as ocidentais, como as Abraâmicas, consideravam tais eventos como divinatórios. O pesquisador salientou que os sonhos premonitórios não podem ser considerados como um fenômeno sobrenatural, mas algo que pode ser explicado pelos diversos campos da ciência, como a matemática e a psicologia. 

Rolim comenta ainda a estreita relação entre a psicose e os sonhos. Em ambos os casos, há a presença de alucinações, que são alterações da sensopercepção, em que o sujeito experimenta um estímulo que é gerado pelo seu próprio cérebro. “A única diferença é que nos sonhos as alucinações são mais visuais, e na psicose são mais auditivas, em que o paciente relata que escuta vozes, por exemplo”, observa. A característica delirante dos sonhos e da psicose se dá porque o sonhador ou o paciente psicótico acreditam piamente que suas alucinações são reais.

O pesquisador é graduado em Medicina pela UFRN, como iniciação científica na área de sono, memória e ansiedade. Possui mestrado em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É ainda doutor em Neurociências pela UFRN. Realizou um primeiro pós-doutorado no Instituto do Cérebro e Laboratório do Sono no Hospital Universitário Onofre Lopes, no qual testou um novo medicamento para tratamento da depressão. Atualmente, faz um segundo pós-doutorado numa colaboração internacional envolvendo 14 países que investiga o sono e os sonhos durante a pandemia de COVID-19.

Como a maioria das sociedades antigas, os hindus viam o sonho como divino e profético e uma das fontes confiáveis de “insights”. Qual a explicação científica para os sonhos premonitórios?

Eu escrevi um artigo abordando como as diferentes religiões interpretavam os sonhos em geral, bem como os sonhos lúcidos. Observamos que as religiões orientais, como, por exemplo, o budismo e o hinduísmo, encaravam os sonhos como meio de autoconhecimento e, por isso, desenvolveram técnicas para induzir os sonhos lúcidos em seus praticantes. Por outro lado, as religiões ocidentais, principalmente, as Abraâmicas, como o cristianismo e o judaísmo e o islamismo, entendiam os sonhos como divinatórios [referente à adivinhação]. Para essas doutrinas, os deuses revelariam eventos do presente e do futuro, ou seja, tinham características de sonho premonitório.

A maioria das pessoas já teve algum sonho premonitório na vida, mas sua ocorrência é pequena. Geralmente, são muito marcantes, principalmente, se forem de conteúdo negativo, como a morte de um ente. A abordagem científica não considera o sonho premonitório como algo sobrenatural. A explicação é matemática: existem 7 bilhões no mundo sonhando todas as noites com medos e desejos, sendo relativamente normal sonhar como a morte de uma pessoa próxima, por exemplo. Muito provavelmente em alguns casos esse acontecimento irá se confirmar em algum momento na vida real. No caso dos indivíduos que tiveram alguns sonhos premonitórios, o professor Sidarta Ribeiro fala, em seu livro “O Oráculo da Noite”, que o sonho é um oráculo probabilístico, e não cem por cento determinístico. Isto é, existe uma probabilidade do acontecimento do sonho ocorrer. O sonho tem, portanto, a função simular possível cenários futuros baseados no passado, a partir de nossas memórias. Existe também uma explicação psicológica para os sonhos premonitórios. Suponhamos que o sujeito experimentou poucos sonhos premonitórios durante a vida. Por exemplo, um dia sonhou que a mãe dele iria morrer. Provavelmente, ele sonhou várias vezes com esse mesmo acontecimento, porém, esqueceu. Mas, se por coincidência, o evento ocorreu na vida real, ela valorizará aquele sonho que se concretizou. Mas existem também as pessoas que têm sonhos premonitórios com grande frequência, no entanto, não existe ainda nenhuma explicação científica, comprovada em laboratório, que constate que essas pessoas possam prever o futuro, seja em seus sonhos, seja no estado acordado. Isso não quer dizer que  esse fenômeno não exista , apenas que não foi comprovado em laboratório ainda..

O ser humano sonha porque tenta simular o futuro com base no passado. É um ambiente de teste de hipóteses…Como que nossos antepassados sonhavam?

Em uma das possíveis explicações evolutivas para os sonhos, trabalhamos com a ideia de que no início da civilização humana vivíamos em clãs, em disputa constante com outras tribos ou em fuga de animais grandes. Em outras palavras, o ambiente era extremamente ameaçador. Então, surgiu a teoria da simulação da ameaça. Digamos que o “homo sapiens”, há 200 mil anos, estava sonhando com a fuga de um mamute. Como esse hominídeo sonhou com aquilo no dia anterior, ele simulou essa fuga antes de vivenciá-la na vida real. Hoje em dia o ser humano moderno não sofre grandes ameaças, exceto a população do Afeganistão, por exemplo, onde se pode estar sonhando com grandes guerras. Em geral, o sonho do homem moderno é uma colcha de retalhos, formada por pequenos problemas, como chegar atrasado em uma prova ou atrasar para uma reunião. Os sonhos evoluíram de um grande problema para vários pequenos problemas.

É possível estimular os sonhos lúcidos a partir de determinadas substâncias? Como o Sr. investigou os sonhos lúcidos em seu laboratório?

Há poucos estudos mostrando que algumas substâncias, como determinadas ervas, podem aumentar sensivelmente a frequência de sonhos lúcidos, mas essas hipóteses não estão consolidadas na literatura. Os trabalhos mais modernos investigam uma substância chamada galantamina, que é empregada no tratamento do mal de Alzheimer e que melhora a memória. Os sonhos têm essa característica de serem fáceis de esquecer. Então, o cientista Stephen LaBerge [psicólogo da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos], estudioso nesse campo, verificou que essa droga provoca sonhos lúcidos com maior frequência.

Como foi o seu estudo de doutorado?

Eu realizei meu doutorado sobre sonhos lúcidos, orientado pelo professor Sidarta Ribeiro [neurocientista da UFRN]. A proposta inicial era induzir os sonhos lúcidos em pessoas que geralmente não têm essa espécie de sonho frequentemente. A indução dos sonhos lúcidos pode ser aplicada, por exemplo, em pessoas que apresentam pesadelos recorrentes, o que ocorre especialmente no caso de quadros de estresse pós-traumático ou de depressão grave. O problema é que esses indivíduos não sabem que estão sonhando durante o pesadelo.

Então, eles acordam com o batimento cardíaco acelerado, falta de ar, musculatura tensa, etc. Como o sujeito revive o trauma, isso faz com que o evento estressor seja reforçado e, portanto, seja mais difícil de esquecer. Existem várias técnicas para induzir o sonho lúcido, como a autossugestão, como falar sobre sonhos lúcidos antes da pessoa dormir. Pra entender como o cérebro funciona durante o sonho lúcido, o primeiro passo é realizar um exame de polissonografia, colocando eletrodos na cabeça, como o objetivo de acompanhar a atividade cerebral. A técnica principal para induzir sonhos lúcidos é solicitar que o voluntário movimente os olhos, para direita e para esquerda, durante os sonhos lúcidos.  No sono REM, há o relaxamento de todos os músculos do corpo para que o indivíduo não realize na vida real o que está executando durante o sonho. Então, acordamos a pessoa e pedimos para que ela relate o sonho lúcido, inclusive, perguntamos se ela realizou o movimento com os olhos. O problema é que induzir sonhos lúcidos em indivíduos que normalmente não têm esse tipo de sonho é uma tarefa difícil de executar. Então, mudamos a estratégia, partindo para a pesquisa de voluntários que têm sonhos lúcidos recorrentes. Pretendíamos descobrir o que acontecia com o cérebro de pessoas que têm sonhos lúcidos em comparação com os sonhos não lúcidos. Durante o sono REM, verificamos a ativação da região frontal, responsável pelas funções cognitivas superiores, como autoconsciência, memória de trabalho, linguagem e movimento voluntário. Outra região ativada foi a occipital, que indica que pessoa estava “acordando” durante o sonho. O estado acordado de olhos fechados é caracterizado pela presença do ritmo alfa do cérebro, também relacionado à meditação. Acreditamos esse padrão de ativação ocorre porque parte do cérebro estava desperto durante o sono.

Além desse estudo, desenvolvi também um questionário como dez perguntas sobre sonhos e dez sobre sonhos lúcidos e enviei para diversos participantes. O objetivo era investigar qual o padrão de sonhos lúcidos na população brasileira. Foi o primeiro estudo sobre sonho lúcido no Brasil e, inclusive, na América Latina. Cerca de 3,5 mil pessoas responderam o questionário. Observamos que a maioria dos brasileiros sonha de duas a três vezes por semana com eventos que aconteceram em um passado recente, que se trata do “efeito resíduo do dia”, que foi teorizado por Freud. Muitas pessoas sonham também com o que poderia acontecer no futuro, como um estudante que sonha com a prova que deve realizar no dia seguinte. Também constatamos que pessoas têm pesadelos baseados em suas lembranças, como eventos corriqueiros, que tem maior probabilidade de acontecer, e menos frequentemente com eventos com pouca probabilidade de acontecer, como grandes catástrofes. 75% dizem que tinham pelo menos um sonho lúcido na vida. No entanto, eles são pouco recorrentes. A maioria tinha experimentado menos dez sonhos lúcidos a durante a vida. Uma porcentagem mínima de pessoas relatou que tem sonhos lúcidos quase todas noites, mas elas são uma exceção. E a ciência ainda não sabe por que esses sonhos são tão comuns para esses indivíduos. Foi questionado ainda sobre os fatores que estão envolvidos na presença dos sonhos lúcidos. Uma característica que chamou atenção é que os participantes alegam experimentar mais sonhos lúcidos quando não têm um horário determinado para acordar. Isso faz sentido, pois os sonhos lúcidos estão mais relacionados com o sono REM, que ocorre principalmente na segunda metade da noite, então, o sujeito apresenta mais sono REM e, consequentemente, mais sonhos lúcidos. Outro fator que contribui para esse fenômeno é vivenciar evento estressante. Quando a pessoa está mais estressada, apresenta mais sono REM, como mais despertares ao longo da noite, o que contribui para ter mais sonhos lúcidos. Uma grande parte dos participantes afirmou que tinha mais sonhos lúcidos quando praticavam meditação. Isso ocorre porque a meditação está associada há maior autoconsciência.

Qual a relação do sonho e da criatividade?

A relação do sonho com criatividade se dá em função do sono REM, que é a fase do sono em que acontecem os sonhos mais longos e mais vívidos, e também quando ocorre a restruturação de memórias com a consequente formação de novas memórias, o que permite a criatividade.

Qual o papel do sono na consolidação do aprendizado? Então o sono é um processo ativo?

Sim, o sono tem um papel ativo na consolidação de memórias. Vários trabalhos já demonstraram que a privação de sono prejudica a memória e, consequentemente, o aprendizado.

Como são os sonhos dos pacientes psicóticos? Qual a relação do sonho e a psicose?

Desde muito tempo, filósofos e psicólogos têm traçado um paralelo entre sonho e psicose. Freud dizia que a psicose é uma intrusão anormal do sonho no estado acordado. A ideia principal por trás disso é que tanto na psicose como nos sonhos temos alucinações e delírios. Alucinações são alterações da sensopercepção, em que o sujeito experimenta um estímulo que é gerado pelo seu próprio cérebro, e não pelo ambiente, como acontece durante os sonhos ou os surtos psicóticos. A única diferença é que nos sonhos as alucinações são mais visuais, e na psicose são mais auditivas, em que o paciente relata que escuta vozes, por exemplo. A característica delirante dos sonhos e da psicose se dá porque o tanto o sonhador quanto o paciente psicótico acreditam piamente que suas alucinações são reais, e não produtos da sua própria mente. Isso acontece porque, tanto durante o sonho como na psicose, há uma diminuição da atividade da região frontal, que é responsável pela autoconsciência, ou seja, a capacidade de julgamento racional e crítico.

O Sr tem uma relação estreita com a música..Como explicar o ouvido absoluto?

Minha linha de pesquisa principal é em sono, mas, como gosto muito de música, eu participei de uma pesquisa que foi o doutorado do músico e biólogo Raphael Bender, sob orientação do professor Cláudio Queiroz. Estudamos o ouvido absoluto na escola de música da UFRN. O ouvido absoluto é uma habilidade rara em que as pessoas reconhecem as notas musicais sem uma referência externa. Observamos que essa habilidade é encontrada de forma gradativa, e não um simples “tem ou não tem” ouvido absoluto. Além disso, vimos também que os músicos da orquestra tendem a ter mais essa habilidade.