ESTUDO DE CASO

Morgana, 43 anos, e sua mãe, Endora, 63 anos, procuraram psicoterapia para conviverem melhor. Morgana morava com a avó, que faleceu, e agora está vivendo sozinha, mas pretende viver com a mãe. Já houve uma tentativa de viverem juntas, tentativa que foi frustrada por conta de discussões, diferenças e mágoas.

Na primeira sessão, Morgana se apresentou chorosa, intensa e impulsiva, além de demonstrar sentimento de rejeição. Endora estava deprimida, não tinha mais motivação tampouco para organizar a própria casa. Mágoas foram verbalizadas nesta sessão. Encaminhei Morgana para o psiquiatra, pois a percebi bastante deprimida.

Uma dor conjunta

Ambas estavam vivenciando o processo de luto da avó, portanto a situação estava ainda mais difícil. O psiquiatra prescreveu fluoxetina e CBD medicinal. Morgana conversou com o psiquiatra a respeito do Transtorno de Personalidade Borderline, pois já desconfiava que poderia ser portadora do mesmo. O psiquiatra concordou que Morgana tem algumas características condizentes com o transtorno, mas deixou claro que para um diagnóstico mais preciso seriam necessárias mais consultas.

Sintomas e diagnóstico  

De acordo com os critérios diagnósticos para o Transtorno de Personalidade Borderline descritos no DSMV (veja boxe complementar ao final do artigo), os que ficam mais evidentes em Morgana são: impulsividade e reatividade de humor acentuadas, sentimentos crônicos de vazio, dificuldade de controlar a raiva sempre intensa e ideação paranoide transitória.

Endora foi orientada com relação ao transtorno de personalidade e sobre o possível diagnóstico de Morgana. Preocupou-se pelo fato de a filha poder ser portadora de um transtorno mental, mas tranquilizei-a dizendo que Morgana recebeu apenas um nome para a sua personalidade e que ela continuaria sendo a mesma que sempre foi, porém de agora em diante, com melhoras por conta dos tratamentos.

Numa perspectiva daseinsanalítica, Yontef2 afirma que é comum que o sujeito borderline ataque o outro e tente destruí-lo, porém esta ação desencadeia nele mesmo uma sensação de fracasso e de abandono.

Sensação de abandono

Ao longo das sessões, ficou claro o desejo de Morgana de ser maternada, receber amor e carinho; ao mesmo tempo evidenciou-se que esta havia criado um escudo como forma de defesa. Defesa que também se manifestava através de ações impulsivas e agressivas que afastavam as pessoas, fazendo ao mesmo tempo com que Morgana se sentisse abandonada. Endora foi mãe solo aos 20 anos. O pai de Morgana a viu apenas 2 vezes e não a registrou. Quando Morgana tinha 4 anos, Endora se casou com um rapaz, que era carinhoso com a filha e a levava para empinar pipa. Separou-se quando Morgana tinha 6 anos e voltaram para a casa da mãe de Endora, que de acordo com a mesma, era controladora e sempre tentava colocar Morgana e Endora uma contra a outra. Quando Morgana tinha 11 anos, Endora foi morar com outro rapaz e não levou a filha, deixando-a com a avó, sua pessoa de maior confiança. Morgana até a vida adulta sentia mágoa, sensação de abandono e de rejeição por conta desta atitude da mãe. Morgana conheceu seu pai depois de adulta, há cerca de 1 ano.

Endora é a primeira de uma prole de 3, conviveu com seus pais e irmãos até os 7 anos de idade, quando seu pai faleceu. A mãe de Endora sempre trabalhou muito para sustentar a família e isto se intensificou quando seu marido morreu. Como Endora era a mais velha, cuidava dos irmãos. Quando Endora engravidou, sua mãe sugeriu que fizesse um aborto, porém esta se negou a fazê-lo. A mãe de Endora então passou a andar na rua sempre longe da filha por vergonha da gravidez e também tinha receio do julgamento dos vizinhos pelo fato de ter uma filha solteira grávida.

Ressignificar os fatos

Durante o processo terapêutico, tenho buscado resgatar a história de vida de ambas para que possam ressignificar alguns fatos do passado, viverem suas existências de maneira plena no presente e projetarem um futuro diferente e pleno de sentido.

Até o momento, Morgana pôde perceber que sempre interpretava as atitudes de Endora como algo contra ela por conta da sensação crônica de vazio, do sentimento de abandono e da ideação paranoide transitória. Morgana percebeu ainda que poderia abrir o coração e tirar o escudo da frente. Demonstrei para ambas a necessidade de reverem suas maneiras de se manifestarem, posto que Morgana na maioria das vezes, se manifestava de maneira intensa, impulsiva e agressiva e Endora tinha o hábito de guardar para si os próprios sentimentos, tanto os positivos como: preocupação com a filha, amor e carinho; como também os negativos como seu descontentamento com algumas atitudes da mesma.

O paciente borderline expõe de maneira bastante fácil e intensa o seu drama existencial. Em contrapartida, não consegue assimilar, além de não ter bom contato com o que expressa, posto que a intensidade acontece de forma imediata e num presente vazio, ou seja, na ausência de uma relação com o passado e o futuro. Corroborando a ideia do autor, podemos ver que Morgana, já na primeira sessão, expressou abertamente seu drama existencial e que na ocasião não tinha bom contato com o que expressava, dando sempre vazão imediata ao sentimento de vazio, e demonstrando dificuldade para concatenar presente, passado e futuro, posto que não conseguia articular os aprendizados do passado para viver um presente pleno e projetar seu futuro 2.

A existência borderline é marcada pela imediaticidade e pelo vazio da presença. Trata-se da busca da união imediata com a pura presença do outro, que é vivida num sentimento de infinitude; já a perda do outro é vivenciada como a aniquilação do ‘ser-aí’. É uma relação tanto de confluência quanto de afastamento, de acolhimento e de destruição do outro3. A maneira de “ser-no-mundo” do indivíduo borderline se origina no momento do estabelecimento do vínculo afetivo com a mãe. Com frequência suas histórias são permeadas de abandono, que faz com que estes desejem e, ao mesmo tempo, temam a relação com o outro2,3.

Instabilidade marcada

Percebe-se novamente que a maneira de existir de Morgana condiz com a forma de existir dos indivíduos que são nosologicamente chamados de borderline. Morgana buscava união com a mãe de maneira constante, ao mesmo tempo que a afastava com suas atitudes, tentando destrui-la de maneira simbólica. Assim como o autor descreve, sua história foi permeada pelo abandono, o que a faz desejar e temer a relação com o outro. Endora também sofreu abandono, visto que perdeu o pai aos 7 anos e sua mãe intensificou a carga de trabalho para poder manter a família. Na ocasião, Endora assumiu o papel de mãe dos irmãos, mesmo sendo ainda uma criança. O abandono ou a falta de apoio voltou a ocorrer quando Endora engravidou e começou a ser rejeitada pela própria mãe, que não aprovava e tinha vergonha de sua gravidez.

A história de rejeição de Morgana começou desde a concepção, visto que sua avó sugeriu aborto e rejeitava a sua mãe e por consequência o bebê que Endora esperava. Mais adiante, Morgana foi deixada com a avó e interpretou o fato como abandono materno. É importante ressaltar que a vida de Morgana foi marcada pela instabilidade, visto que viveu com a mãe e a avó, depois com a mãe e o padrasto, depois novamente com a mãe e a avó e mais adiante, somente com a avó. Depois de adulta, tentou morar sozinha algumas vezes, mas sempre acabava voltando para a casa da avó, com quem ficou até o falecimento.

A criança mesmo antes de nascer já é permeada de temporalidade, historicidade e ser-com. O modo de cuidado que o bebê/criança recebe e a maneira através da qual o mundo lhe é apresentado afetam sua maneira de existir. É importante que haja uma relação segura e de suporte na constituição deste poder-ser4. Antes mesmo de nascer, a criança carrega a história dos próprios pais, familiares, do local que mora fisicamente, bem como dos espaços que habita, com afetividade e sentimento5. A tonalidade afetiva da confiança funda o modo de experienciar o mundo, suas relações e si mesmo. Para existir, é necessário o cuidado e atenção vindos de outro ser humano6.

Percebemos que na criação de Endora também pode ter faltado confiança tanto pela natureza controladora, manipuladora e auto centrada de sua mãe, quanto pelos fatos que ocorreram em sua vida como perder o pai ainda criança e o fato de sua mãe ficar bastante ausente devido às necessidades de trabalho. É importante ressaltar que Endora teve que cuidar dos irmãos mesmo sendo ainda imatura para a função, pulando assim etapas da sua vida e do se desenvolvimento emocional e psicológico. O abandono e a falta de confiança voltaram a ocorrer durante sua gestação. A sua história de vida impactou sua lida com o mundo, com a vida, bem como o seu cuidar, que por sua vez, impactou sua relação com a filha.

Mudanças significativas

No momento, Endora tem demonstrado afeto e Morgana está estável e menos impulsiva, além de conseguir perceber o cuidado e afeto que sua mãe tem por ela. Endora tem demonstrado este cuidado e revelou muitas coisas para Morgana sobre a tentativa de controle da avó. Endora sempre que ligava queria falar com a filha e a avó dizia que a filha não desejava falar e não dizia nada a Morgana, que pensava que sua mãe jamais telefonava para saber dela. Foi importante para Morgana ver que sua mãe sempre se importou com ela.

Ambas são capazes de apontar pontos positivos uma da outra. Morgana tem passado temporadas com Endora, mas ainda não se mudou definitivamente para a sua casa. A convivência é permeada por alguns conflitos, mas ambas já estão mais aptas a conversarem sobre os mesmos, refletirem suas atitudes e resolverem. Endora se sente mais disposta e voltou a arrumar a casa e cuidar das próprias coisas; ela atribui esta mudança à transformação no relacionamento com a filha. Seguimos tentando compreender o modo de estar-no-mundo de ambas e ressignificar fatos do passado para que possam exercitar o ser-com de maneira plena e prazerosa.

E MAIS…

Padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais

De acordo com o DSM V1, os critérios diagnósticos para o Transtorno de Personalidade Borderline são:

Um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e de impulsividade acentuada que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos, conforme indicado por cinco (ou mais) dos seguintes:

1. Esforços desesperados para evitar abandono real ou imaginado. (Nota: Não incluir comportamento suicida ou de automutilação coberto pelo Critério 5.)

2. Um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização.

3. Perturbação da identidade: instabilidade acentuada e persistente da autoimagem ou da percepção de si mesmo.

4. Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente autodestrutivas (p. ex., gastos, sexo, abuso de substância, direção irresponsável, compulsão alimentar). (Nota: Não incluir comportamento suicida ou de automutilação coberto pelo Critério 5.)

5. Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante.

6. Instabilidade afetiva devida a uma acentuada reatividade de humor (p. ex., disforia episódica, irritabilidade ou ansiedade intensa com duração geralmente de poucas horas e apenas raramente de mais de alguns dias).

7. Sentimentos crônicos de vazio.

8. Raiva intensa e inapropriada ou dificuldade em controlá-la (p. ex., mostras frequentes de irritação, raiva constante, brigas físicas recorrentes).

9. Ideação paranoide transitória associada a estresse ou sintomas dissociativos intensos.

Referências
1.     American Psychiatric Association. DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5a ed. Artmed; 2014. 992 p.
2.     Yontef GM. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus; 1998.
3.     Bin K. Fenomenologia da Depressão Estado-Limite. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 1998;1(3):11–32.
4.     Nunes B. Heidegger e Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002.
5.     Cytrynowicz MB. Criança e Infância: Fundamentos Existenciais, Clínica e Orientações. São Paulo: Chiado; 2018.
6.     Glaser PA. Educação Infantil na Era da Técnica: Des-caminhos para o Poder-Ser Mais Autêntico. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); 2012.