A psicóloga e psicanalista Ana Cristina Marzolla, professora do Departamento de Psicologia e Desenvolvimento Humano no curso de Psicologia da Faculdade Ciências Humanas e da Saúde da PUC de São Paulo, comenta os conceitos da obra do psicanalista Donald Woods Winnicott. A partir de sua experiência como pediatra e psiquiatra, Winnicott estudou o desenvolvimento emocional primitivo, que tem efeitos sobre o processo de amadurecimento psíquico de cada pessoa.

Muitos problemas da fase adulta estariam vinculados a disfunções ocorridas na relação do bebê com seu meio. Winnicott considerou elementos como a criatividade e agressividade como ingredientes da experiência humana. Esses conceitos são explicados pelo psicanalista a partir das primeiras experiências do bebê no contato com mãe.

O bebê vive uma ilusão de onipotência. Essa ilusão é propiciada pela mãe quando, no estágio da dependência absoluta, ela oferece o seio real ao bebê no momento em que ele acredita que o seio é criação sua.

Isso acontece porque, nas fases iniciais do desenvolvimento da criança, existe uma unidade mãe-bebê. Isto é, para o bebê, a mãe é o ambiente. Ele não percebe a diferença entre o eu o outro. Sempre que ele sente fome, o seio da mãe aparece, assim como há uma resposta da mãe quando ele está com frio, dor, etc. Daí advém a experiência de onipotência do bebê. São as falhas graduais da mãe lhe permitirão adquirir a noção entre o eu e outro.

Com o amadurecimento, surge no bebê a noção de que o mundo – o outro – é anterior e independente dele. Entretanto, o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente e pode continuar a ser criado, persiste. Ele não desaparece e é a base para a criatividade.

“Para que esta ilusão se produza na mente do bebê, é necessário que um ser humano se dê ao trabalho de trazer o tempo todo o mundo até o bebê de forma compreensiva e de maneira limitada, adequada às necessidades do bebê. Por esta razão, um bebê não pode existir sozinho, psicológica ou fisicamente, necessitando realmente de uma pessoa que cuide dele no início”, escreveu Winnicott. 

De início, o bebê não percebe que sua impulsividade atinge e pode ferir o outro. Nas palavras de Winnicott, não há um acordo geral acerca da idade em que o bebê sente, pela primeira vez, que a mãe é uma pessoa e, desta forma, se preocupa quanto aos resultados de seus ataques reais e imaginários a ela, feitos sob o domínio da tensão pulsional.

O desenvolvimento inicial do bebê, em contato com mãe, seria determinante para a saúde mental do indivíduo na fase adulta. Sem a experiência de ilusão, a pessoa futuramente encontrará dificuldades em aceitar o mundo real (funcionamento psicótico) ou perderá sua marca espontânea.

“A saúde mental do ser humano é construída na mais tenra infância pela mãe que fornece um ambiente no qual processos complexos, mas essenciais do self podem chegar ao seu termo”. 

Sem a experiência da ilusão, a criança pode vir a desenvolver uma espécie de autossuficiência na ausência do cuidado, que é chamada por Winnicott de falso “self”. O resultado é uma vida esvaziada de sentido e permeada por um senso de irrealidade na fase adulta.

Para Winnicott, era possível associar o desenvolvimento infantil às condições psiquiátricas na fase adulta. Embora acreditasse que cada indivíduo teria um potencial inato para amadurecer, ele defendia que esse processo dependeria de um ambiente facilitador, isto é, um a mãe suficientemente boa (a mãe devotada).

 Como entender, na visão de Winnicott, o papel da ilusão para o artista?

Para responder esta questão, é importante considerar algumas colocações sobre a teoria de Winnicott. É importante a experiência inicial de um ambiente / mãe sensível no sentido de se adaptar às necessidades específicas do bebê, de modo que ele possa ter o que Winnicott nomeia de ilusão de onipotência. Nos momentos iniciais da vida do bebê, ele e a mãe são uma coisa só. Sob o ponto de vista do bebê, não há diferença entre eu e o outro, mundo interno e mundo externo. O atendimento da necessidade deve vir no exato momento em que a necessidade se cria, daí a ilusão de onipotência.

A mãe devotada comum falha porque é humana. Uma mãe suficientemente boa vai começar a se interessar por outras coisas que não seu bebê. Através dessas falhas, o bebê vai ter contato com a realidade externa. O que caracteriza esse estágio em que a desilusão se inicia é o fato de que há o início uma desadaptação gradual da mãe com relação às necessidades do bebê. A mãe saudável emerge do estado de preocupação materna primária, pois está cansada do estreitamento do seu mundo e da extrema exigência que a dependência absoluta requer.

Passam a ocorrer pequenas falhas, que são imprescindíveis para o início do rompimento da unidade indiferenciada mãe-bebê. Essa desadaptação da mãe dá início ao processo de desilusão da onipotência do bebê, mas que só pode se dar sobre uma bem fundada capacidade para a ilusão.Com o tempo, vai surgindo na criança a compreensão de que não é ela que cria, efetivamente, o mundo. Vai surgindo a noção de que o mundo, o outro,  é anterior e independente dela. Entretanto, o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente e pode continuar a ser criado, persiste. Ele não desaparece e é a base para a criatividade. Há casos, porém, em que há falhas no processo de amadurecimento, e a mãe ou responsável pelos cuidados maternos falha em prover a vivência de ilusão de onipotência, de modo que alguns problemas podem surgir, como o desenvolvimento de um falso si mesmo.  A partir das ideias de Winnicott, digo que o processo de ilusão de onipotência e a posterior desilusão gradual, no tempo do bebê, são básicos para a construção do terceiro mundo que não é interno ou externo, acontece no espaço que se cria entre os dois. É intersubjetivo e ocorre no espaço potencial. Território privilegiado da criatividade e o “locus” de origem do brincar infantil, da arte, da religião, das formações grupais e da cultura, de forma geral, constituindo-se, portanto, no campo de atuação e construção por excelência do agir humano. 

O que é o estágio do reconhecimento do “eu sou”?

Através do atendimento sensível da mãe às necessidades do bebê, ele vai ter uma experiência de continuidade no tempo e espaço. O bebê é. 

Com as falhas da mãe, a introdução de um mundo externo, o não eu, a criança vai adquirindo uma noção de Eu, em torno de um ano de idade. Através do cumprimento das funções de “holding”, que significa sustentar, segurar, conter e “handling”, que quer dizer manejo e apresentação de objetos, o bebê pode ter um Eu integrado que habita firmemente um corpo. Ele se percebe tendo um contorno, com uma membrana limitante, a pele que a separa de tudo que é não-eu. Esse não-eu é o que é repudiado como externo.

O “holding” protege da agressão fisiológica; leva em conta sensibilidade cutânea do lactente, inclui a rotina do cuidado dia e noite adequada a cada bebê; segue as mudanças súbitas do dia-a-dia que fazem parte do crescimento e do desenvolvimento do bebê, tanto físico quanto psíquico; inclui especialmente o segurar físico do lactente, possibilita que o bebê adquira, gradativamente, um status de integração, de indivíduo, o eu sou, tanto em nível físico como em níveis mais sutis, a mãe ambiente conserva a criança como que unida a si mesma de modo que a não integração e a reintegração podem se processar sem ocasionar ansiedade. Enquanto o “handlingfacilita a formação da parceria psicossomática da criança, o que contribui para a formação do sentido do “real” por oposição a “irreal”. É a capacidade da mãe ou figura materna de juntar seu envolvimento emocional, que originalmente é físico, fisiológico. Trata-se do processo de personalização, isto é, habitação da psique no soma. É a base de um “self” (sentido de si mesmo) se forma sobre o fato do corpo, que, sendo vivo, não apenas tem formas, mas também, funções.

Como entender o verdadeiro self e o falso self em Winnicott?

O verdadeiro “self”  tem a ver com um potencial herdado e o outro. A mãe suficientemente boa que é capaz de entrar num estado de preocupação primária, recuperar-se e introduzir o princípio de realidade em pequenas doses ao bebê, oferecendo a possibilidade de existência.  Em outros termos, o “self”verdadeiro é o potencial herdado que é experienciado como uma continuidade de ser e que adquire em seu próprio modo e em sua própria velocidade uma realidade psíquica e esquema corporal pessoais. Dessa forma, o bebê começa a se relacionar com a realidade, que é externa do ponto de vista do observador, por via da criatividade e não da submissão. O falso “self”surge no contato com uma mãe com dificuldade para reconhecer a singularidade ímpar de seu bebê. A mãe falha por conta de angústias, inseguranças, por ela mesma ser muito submetida ao outro. Dessa forma, o bebê precisa se adaptar ao meio, mas não tem noção disso. Winnicott fala da criança que se desenvolve a partir da casca e não do núcleo. Há dois tipos de falso “self”: o protetor que corresponde aos mecanismos de defesa do ego, importantes, no sentido de que temos nossas “personas” usando um termo emprestado de Jung. No nosso dia a dia, temos convenções sociais importantes para que possamos nos relacionar.

O segundo tipo é um falso “self” que oculta o verdadeiro “self”. O falso “self”se constitui como uma tentativa de substituição da função materna que falhou, acaba se constituindo como uma forma primitiva de autossuficiência na ausência do cuidado. Podemos, então, entender o falso “self”como uma defesa que oculta e protege o verdadeiro “self”. Na medida em que o verdadeiro “self”é a fonte dos impulsos pessoais, a existência por meio de um falso “self”torna a vida esvaziada de sentido e permeada por um senso de irrealidade e de que a vida não vale a pena.

Qual a diferença de culpa com preocupação com o outro (concernimento)?

Tendo alcançado o estatuto de um eu unitário, a criança encontra-se em condição de integrar sua vida pulsional. O bebê passa a se sentir concernido pela impulsividade que o domina nos momentos de excitação. Torna-se preocupado, percebe que sua impulsividade atinge e pode ferir o outro. É muito importante que a mãe possa sobreviver aos ataques da criança, ou seja, que não tome como um ataque pessoal, que não se vingue da criança. O sentimento de culpa surge quando a mãe não pode “sobreviver” aos ataques da criança. Por exemplo, uma menina fica brava com a mãe por algum motivo e diz:” você é chata”. Mas por algum motivo a mãe ficar brava, triste, decepcionada, etc, com essa fala, a criança ao invés de se concernir, vai se sentir culpada. Logicamente se está falando em padrões de comportamento, ou de relação que se repete e não de um evento único.