O filósofo e psicanalista André Martins, professor da UFRJ, comenta a obra do psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, famoso psicanalista inglês que se dedicou a teorias do desenvolvimento psicológico. Martins é membro do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada (NUBEA) e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) e em Ética Aplicada à Saúde (PPGBIOS).

O pesquisador concluiu doutorado em Filosofia pela Université de Nice, na França, e em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, com pós-doutorado sênior em Filosofia pela Université de Provence, também na França. Publicou o livro “Pulsão de Morte? Por uma Clínica Psicanalítica da Potência”. Escreveu 70 artigos acadêmicos publicados no Brasil, na França, na Alemanha, em Portugal, na Hungria, nos Estados Unidos e na Bélgica. É ainda editor da “Revista Trágica de Estudos de Filosofia da Imanência”. 

Os estudos de Winnicott se voltaram para o desenvolvimento dos bebês muito pequenos e sua relação com os distúrbios mentais apresentados na fase adulta, pois o psicanalista acreditava que Freud já havia explorado exaustivamente o campo das neuroses (fenômenos gerados por um conflito psíquico, envolvendo a frustração de um impulso instintivo que gera angústia e sofrimento). Como médico de crianças durante a Segunda Guerra Mundial, Winnicott constatou a importância do brincar na construção da identidade e formulou teorias acerca das etapas fundamentais do desenvolvimento da pessoa.

Elementos como criatividade e fantasia foram considerados essenciais por Winnicott. Presentes inclusive no adulto, esses ingredientes remeteriam às experiências vivenciadas na mais tenra idade, na relação simbiótica entre a mãe o bebê. O psicanalista observou que o bebê não diferencia a mãe do ambiente e não possui a noção entre o eu e o outro.  O bebê experimenta a ilusão a partir do momento que a mãe oferece o seio na amamentação e acredita que o seio foi criado por ele para satisfação de sua necessidade, o que lhe permite a experiência de onipotência. É como se o bebê criasse o que já existe, ocorrendo sobreposição entre o que é “objetivamente percebido” e o que é “subjetivamente concebido”.

“O bebê depende inteiramente do mundo que lhe é oferecido pela mãe, porém o mais importante, e que constitui a base da teoria de Winnicott, é o desconhecimento de seu estado de dependência por parte do bebê. Na mente do bebê, ele e o meio são uma coisa só. Ora, idealmente, seria por uma perfeita adaptação às necessidades do bebê que a mãe permitiria o livre desenrolar dos processos de maturação”, escreveu o psicanalista argentino Juan-David Nasio.

Essa ilusão é essencial para a saúde psíquica de cada indivíduo, pois essa experiência o leva a ter uma sensação de potência e de confiança em si mesmo. Sem a experiência de ilusão, a pessoa futuramente encontrará dificuldades em aceitar o mundo real. Uma pessoa pouco criativa desliga-se afetivamente do mundo, que lhe aparece sem sentido, pois a sua ligação com ele torna-se meramente intelectualizada, e a realidade surge para ele como um fardo pesado que deve ser carregado. 

Para Winnicott, não existe propriamente o bebê, mas apenas a unidade mãe-bebê, uma identificação em que a mãe está empaticamente atenta às necessidades do bebê. Se o acolhimento da mãe for invasivo ou precário, o bebê perceberá precocemente que existe um “eu” e vai se defender do ambiente, criando um padrão de defesa. Ele substitui, neste caso, o gesto espontâneo por um reagir ao ambiente hostil.

Já sabemos dessa ligação emocional tão sensível entre o bebê e a mãe, mas que papel o pai desempenha nessa história? Martins salienta que o pai poderá contribuir para a fusão mãe-bebê ou ele próprio pode em alguns casos exercer a função de mãe. O pai será ainda a primeira imagem de identificação externa da criança, auxiliando-a no processo de desenvolvimento do concernimento. Esse termo foi usado por Winnicott em referência ao período da dependência relativa, uma fase de desenvolvimento em que o bebê reconhece a mãe como diferente dele e ruma para as relações interpessoais. Trata-se de uma etapa na inserção na cultura.

Martins associa os conceitos de Winnicott à teoria do filósofo holandês Baruch Spinoza, um dos mais criativos racionalistas dentro da filosofia moderna. O filósofo francês René Descartes defendia a supremacia da razão sobre os afetos, seguindo a diferenciação platônica entre mundo das ideias e mundo sensível (do corpo), sendo que a razão deveria controlar as paixões. Mas Spinoza ressaltou a importância dos afetos na vida dos indivíduos e propôs um pensar junto à existência, uma razão afetiva.

O filósofo explorou a tese de que existem afetos passivos, cujas causas são externas; e afetos ativos, cuja causa é a potência interna do indivíduo , o externo sendo apena o que desencadeia essa expansão. Ele considerou que os afetos ativos consistiam no agir autêntico, aumentando a potência de agir; estariam presentes quando criamos. Enquanto os passivos se mostram como uma espécie de servidão a causas externas.

Winnicott, em sua teoria da maturação emocional do bebê, defendeu que a motilidade (movimentos) era um gesto espontâneo do bebê, ou seja, uma criação sua. Quando acuado, é tolhido o gesto espontâneo, então passa a reagir ao invés de agir (trata-se de uma sujeição ao meio externo). Posso agir ou não posso? A criança perde então a espontaneidade.

Martins defende que a religião e a medicina podem produzir afetos passivos na medida em que impedem o indivíduo de recriar o mundo à sua maneira. Isso ocorre porque eles ofertam soluções mágicas que não resolvem a causa do sofrimento afetivo.

A religião funciona como um “gás momentâneo”, que em certa medida resulta em conforto. A medicina, por sua vez, oferece “pílulas da felicidade”, que têm valor de consumo, mas não permitem a investigação da origem do sofrimento. A medicalização também seria uma defesa psíquica produzida pela racionalidade médica contemporânea.  Nesse caso, a religião atua nas causas espirituais, enquanto a medicina nas causas físicas. Mas ambas podem ser meramente paliativas.

Qual o papel da ilusão na vida adulta (e sua ligação com a arte e a religião)?

André Martins: Winnicott chama de ilusão a vivência do bebê em criar o que lhe é oferecido pela mãe, o que lhe proporciona uma experiência de onipotência. Se ele sente fome ou sede, o seio aparece: a ilusão do bebê é que o seio foi criado por ele. A adaptação do cuidador inicial principal, em geral a mãe, ao bebê produz a ilusão de que a realidade é criada por ele. Essa ilusão é fundamental para a saúde psíquica do indivíduo, pois a fase ilusória inicial leva o bebê a ter uma experiência de potência e de confiança em si mesmo e, por conseguinte, de confiança nos outros e no ambiente. A partir da confiança no ambiente, ele passa a ter confiança na vida. A ilusão permite o desenvolvimento de uma experimentação que se dá em um espaço que não é nem a realidade externa, objetivamente percebida, nem a realidade interna, subjetivamente concebida, mas uma área transicional, em que dentro e fora se fundem. Sem a experiência inicial de ilusão, a pessoa futuramente encontrará dificuldades em aceitar o mundo real, seja refugiando-se em fantasias, seja, ao contrário, sentindo o mundo real como um pesado fardo a carregar, tal como lhe é apresentado de fora, com pouca margem de mudança ou transformação criativa. Na vida adulta, os fenômenos propriamente transicionais encontram seu lugar na sociedade, diz Winnicott, sobretudo, na arte e na religião, que favorecem essa experiência entre a realidade e a fantasia. Mas, em um certo sentido, toda experiência é transicional, sendo a realidade externa uma realidade compartilhada em comum entre as concepções imaginativas de cada indivíduo em interação.

O que é recriação mágica? 

 André Martins: Se pudéssemos supor uma adaptação absoluta e exata da mãe ou do cuidador principal inicial ao bebê, sem nenhuma gradual desilusão, proporcionaria ao bebê uma sensação de magia, de uma alucinação. Winnicott observa que pessoas psicoides ou borderline podem, de algum modo, substituir a culpa e a reparação, como formas de socialização, por uma socialização que considera o outro ou o que lhe escapa como uma recriação mágica, para que possa de algum modo coincidir com sua realidade interna.


Por que o artista não sente culpa?

 André Martins: Winnicott distingue culpa de preocupação com o outro (concern, no original inglês). O sentimento de culpa se dá tanto mais quanto o indivíduo não teve, quando bebê, seu gesto espontâneo suficientemente permitido, quando seu sentimento de raiva não fora acolhido e reparado. A inibição é o resultado de um sentimento de que é preciso a permissão do outro para agir e existir, para ser si mesmo, e se tem a sensação de que a raiva seria destruidora do outro, da mãe ou do cuidador. A culpa de ser um destruidor em potencial levaria o indivíduo a se reprimir e a respeitar o outro, de modo que a ética, digamos, seria o resultado de uma exigência moral de não destruição. Mas a consideração pelo outro pode ter outra origem, a do concern. Quando o bebê, tendo seu gesto espontâneo acolhido, não sendo retaliado quando tem raiva e tendo o fruto de sua raiva reparado, isto é, vendo que o outro sobrevive a ele, a pessoa desenvolve um zelo para com outro, um concernimento, pois entende que ela própria pode sentir raiva que não destruirá o outro, e que o outro que lhe contraria é também o outro que lhe faz bem, podendo assim integrar a figura do outro. Quando Winnicott fala de alguns artistas ou pensadores criativos que não sentem culpa e mesmo assim se sociabilizam, se refere ao fato de em geral a própria criatividade ser já o efeito de uma não necessidade da culpa para a ligação com o outro, aceitando mais os outros como são e se permitindo ser mais autênticos e genuínos, precisamente porque mais conectados com o espaço potencial entre a fantasia e a realidade compartilhada.

O que são fenômenos transicionais?

 André Martins: Podemos dizer que os fenômenos transicionais são os que se dão no uso de objetos transicionais. Quando o bebê usa um paninho, uma ponta do lençol, como se fosse a mãe, estes objetos, neste uso, não são a mãe (ou o seio) e também não representam a mãe. É importante que não sejam, pois são transicionais e não objetos alucinados, precisamente por não ser o objeto real, nem o representar, mas por ser vivenciado ao mesmo tempo como sendo-o como outro. Isto é, o objeto é transicional permite a experiência da presença do outro em sua ausência, e em sua presença ser algo mais, propiciando a experiência de um espaço entre a realidade externa, objetivamente percebida, e a realidade psíquica interna, constituindo de forma saudável o que virá a ser o campo cultural.

O que é o “teste de realidade” e a distinção entre apercepção e percepção?

André Martins: Apercepção é um termo do inglês e, por vezes, da filosofia, que designa uma percepção consciente de si e portanto mais profunda, mais associada à compreensão; enquanto percepção se diz mais de um processo inconsciente e mesmo passivo, automático, somático, puramente sensório. Quando Winnicott menciona estas duas maneiras de perceber, o faz para enfatizar que a percepção nos fenômenos transicionais não se refere nem a um nem a outro, e que a realidade não é algo distinto desses fenômenos, mas sim constituídos por eles. O fenômeno transicional não é exatamente nem uma percepção sensória da realidade apenas, nem uma compreensão da realidade, mas uma percepção imaginativa, criativa, entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido. Nem realidade nem fantasia, mas um brincar a realidade, de criar o que já existe, de imaginar o mundo para si.

Qual o papel da fantasia para Winnicott?

André Martins: Mais importante do que a fantasia no sentido psicanalítico tradicional, são para Winnicott a criatividade e os fenômenos transicionais. Para a Psicanálise a fantasia tem o papel de revelar, tal como um ato falho, o inconsciente da pessoa. Para Winnicott, a fantasia é uma das expressões fundamentais da criatividade, que, mais do que revelar a realidade psíquica interna, é parte da própria criação subjetiva da realidade, que participa da concepção da realidade comum e da possibilidade de sua transformação. Quando se crê que a realidade externa é absoluta e objetiva, a fantasia se torna uma fuga e substitui a realidade ao invés de compor com ela e constituí-la, alucinando magicamente objetos e tendo a função de uma defesa psíquica. Enquanto para Freud a fantasia era uma representação reativa da realidade, devendo, portanto, ser interpretada a fim de revelar seu conteúdo verdadeiro, para Winnicott a fantasia não é reativa, mas uma expressão criativa espontânea anterior à percepção da realidade, constitutiva desta e portanto fundamental para que a realidade não seja vivenciada como impositiva e opressora, estranha ao indivíduo, mas sim apropriada e recriada.

Referências:

André MARTINS, “A grande identidade Spinoza-Winnicott, ou a força vital da imanência”, Revista Trágica, v.11, n.3, 2018.


André MARTINS, „Winnicott und die Psychoanalyse in der brasilianischen Kultur“. In: Stubbe, Hans; Santos-Stubbe, Chitly; Theiss-Abendroth, Peter.. (Org.). Psychoanalyse in Brasilien: Historische und aktuelle Erkundungen. Giessen: Psychosozial-Verlag, 2015.


André MARTINS, “Reflexões sobre as funções do pai na inserção da criança na realidade partilhada, a partir de Winnicott”. In: Cláudia Dias Rosa. (Org.). E o pai? Uma abordagem winnicottiana. São Paulo: DWW editorial, 2014.

Livro:

André MARTINS, Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência, Ed.UFRJ, 2009.

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