Começando esse debate, partimos de um lugar de estranheza dos tempos de outrora, onde o feminino tinha outro significado, contornado pela dimensão corporal que forjou paulatinamente o Ser Mulher. Para ilustrar isso, citamos os casos das histéricas, que manifestavam no corpo suas inquietações psíquicas. Na impossibilidade de serem como desejavam, o corpo daquelas mulheres era o meio com que elas conseguiam expressar suas angústias.

O contexto de uma época faz surgir modos de existir comuns, ainda que a liberdade última do ser humano seja perene. Para Frankl (2005), essa liberdade humana, como uma possibilidade de existir, sempre se dá na relação com os outros. O modo de ser e existir das histéricas, inicialmente definido por Freud como uma resposta psicossomática às angustias femininas, pode ser compreendida como uma dificuldade do Ser Mulher, numa perspectiva existencial contrária ao imposto socialmente por uma época. Arriscamos-nos dizer que da impossibilidade de corresponder a um ser que responda, exclusivamente, ao desejo do outro resulta, majoritariamente, os sintomas psicossomáticos das histéricas.

Contornos culturais

Importante abrirmos aqui um parêntese para atribuir contornos culturais a essa e outras categorias nosológicas aplicadas ao Ser Mulher que foge aos padrões normativos ocidentais. Sociedades não ocidentalizadas, como as africanas, por exemplo, atribuem ao Ser Mulher representações simbólicas diferentes das que são atribuídas às mulheres ocidentais. Diferente das sociedades ocidentais que são patriarcais, as africanas são matrilineares. Mas o que seria isso? Trata-se de uma organização social centrada na ascendência materna como principal forma de transmissão do nome, privilégios e laços de pertencimento. Pesquisa do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense indica que mulheres africanas da etnia Macua de Moçambique, país da África Ocidental, por exemplo, ocupam um papel de destaque na organização social de sua etnia. Sob uma representação do sexo forte, elas são, inclusive, temidas em suas comunidades. Elas assumem e constroem sua identidade marcada pelo poder simbólico que exercem na ordem e organização social em que estão inseridas. Diferente da repressão sexual sofrida pelas mulheres ocidentais, as mulheres macuas propagam a liberdade sexual e o autoconhecimento do corpo feminino. Como detentoras do poder e da força produtiva, elas são, ainda, responsáveis pelo controle dos meios de produção econômica agrícola, definindo, inclusive, a economia doméstica e as diretrizes do casamento. Na materialização de um poder feminino sob uma das instituições mais tradicionais, que é o casamento, quando uma mulher macua casa é o marido quem se muda para a casa dela, devendo obedecer às regras de convivência daquela sua nova moradia. Felizmente, esta representação de força e glória do poder feminino imprime outro Ser Mulher, contrário aos ditames ocidentais, porém ameaçado pelas tensões entre a tradição macua e à influência da colonização portuguesa e das comunidades islâmicas, ambas patriarcais (Thomaz, 2012).

O peso cultural

Ainda no cenário cultural, é fato encontrar, ainda hoje, resultados de mal estares femininos carregados de pesos tradicionais que se desalinham com a vida contemporânea das mulheres, principalmente ocidentais.

Há uma batalha interna que a maioria das mulheres trava entre o seu próprio desejo e uma expectativa social travestida de uma pseudoaceitação das escolhas delas. Essa pressão velada, mas sentida no íntimo feminino, acabam por acarretar uma constante insatisfação pessoal, que gera o vazio existencial e até desordens psíquicas mais graves, como os transtornos alimentares, a depressão e até o suicídio, como forma de completar a falta que este vazio provoca. Esses mal estares são respostas a uma busca constante por corresponder aos padrões socioculturais e às demandas, pessoais e profissionais, do Ser Mulher hoje.

Muitas mulheres se recusam a olhar para seus desejos mais íntimos, na luta entre o Ser Mulher e ser mãe e/ou profissional, como se estas instâncias fossem mutuamente excludentes na existência e realização de um feminino contrário ao reflexo da “rainha do lar”. Refratárias a esse ideário, nem sempre o Ser Mulher se encontra em outro ideal ou real de ser uma mulher em uma sociedade ocidental contemporânea, com tantas demandas e pressões sociais.

Se diferente das gerações passadas, o desejo por ter uma família atrapalha ser uma profissional bem sucedida, o que, então, as mulheres desejam de fato? No duelo entre a realização existencial e integral do Ser Mulher e o ser mulher em tempo integral, todas travam uma batalha íntima para reconhecerem seus valores e sentidos de vida, de acordo com seus desejos ainda por serem revelados. Transcender o que se preconiza como Ser Mulher nos dias atuais rivaliza com a busca pela autenticidade em ser mulher em qualquer época, que pode ser aquela do “sexo frágil, mas que não foge à luta…”, como já disse Rita Lee, cantora, ativista e ícone feminino da geração dos anos 1970.

O desmedido feminino

A arte não se cansa de nos dar recursos para pensar a existência do Ser Mulher em toda sua complexidade. A música Mulher (Sexo Frágil) de Erasmo Carlos, por exemplo, é uma ilustração disso. Nessa música, ele interpreta o Ser Mulher, nos colocando, até de forma didática, frente às múltiplas ambivalências desse ser que existe na relação com os outros e com sua própria existência. Com isso, a letra daquela música, “Satisfaz meu ego se fingindo submissa. Mas no fundo me enfeitiça…”, exemplifica a razão e motivação do Ser Mulher, para além de ser uma mulher na direção, exclusiva, do amor ao sexo oposto. Parece haver nesta mulher o que Roudinesco pontuou como o “verdadeiro paradigma da desmedida feminina”, que desafia permanentemente a autoridade do homem opondo-lhe uma força sedutora. Essa mulher que enfeitiça e encanta exercendo seu poder de sedução e devassidão (Roudinesco, 2002), é, porém, retratada em outras músicas, como Cotidiano de Chico Buarque de Holanda, como aquela que, “Todo dia ela faz tudo sempre igual. Me sacode às seis horas da manhã. Me sorri um sorriso pontual. E me beija com a boca de hortelã”. Isso demonstra como é ambivalente a definição do Ser Mulher, por vezes exercendo sua autonomia e liberdade para vivenciar valores existências na direção de si, outras vezes na direção do outro, que, na maioria das vezes, é o homem.

Mas será que numa situação ou noutra a mulher não exerce sua liberdade e vontade de vivenciar sentidos baseados no amor? Segundo Frankl (2011), o sentido do amor e a capacidade para amar são potencias humanos para realização de valores vivenciais em resposta ao vazio existencial. Para esse autor, “o que seria amor, sem a riqueza significativa e exaurível das relações humanas, e o que seria o crescimento interior, a compreensão da essência, sem o referencial permanente dos outros? (Frankl, 2011, 72)”. Então, podemos supor que o Ser Mulher pode se fazer frágil, mas com o poder de dominar e cativar para realizar-se existencialmente.

Entretanto, cabe lembrar que, na construção desse Ser Mulher, comparecem muitas ambiguidades, desde os arquétipos femininos representados pelas deusas gregas que simbolizam aspectos diversos do feminino, como o lar (Héstia), o parto (Artemis), a esposa e o casamento (Hera), a mãe (Deméter) e o amor (Afrodite), até os símbolos presentes em obras infantis, como os filmes das Princesas da Disney, com sua grande maioria retratando mulheres passivas que esperam um príncipe encantado, mas que orientam o exercício da liberdade de escolha e sentidos de vida de muitas gerações femininas. Sem falar em filmes como Barbie A Princesa e a Plebeia, cuja canção principal, “Como Ser uma Princesa”, possui versos que claramente evidenciam um projeto de construção de uma subjetividade feminina passiva e submissa: “O protocolo é respeitar. Goste ou não a solução é dizer sim”. Esse tipo de protocolo também aparece em versos de Vinícius de Moraes, como no Soneto da Mulher Ideal e no Samba da Bênção, que retratam a mulher como alguém que tem que ser só perdão e deve ter uma beleza que vem da tristeza. Tristeza própria de uma “mulher feita para amar, sofrer pelo seu amor e mais uma vez: ser só perdão”.

Ao Ser Mulher é exigida, simultaneamente, a fragilidade feminina aliada à uma força heroína. Logo, não é de se estranhar que muitas busquem se identificar com o mito da “Mulher Maravilha”, aquela que carrega a verdade e a vitória e traz equilíbrio. No Brasil, esse mito se associa ao símbolo da “mulher guerreira”. Para as mulheres brasileiras, majoritariamente negras, pobres, nordestinas e faveladas, o título de mulher guerreira é sinal de altivez e sucesso. Mulher guerreira é aquela que luta contra os desafios de um caminho trilhado, por vezes, em maternidades solos, vivências de desamparo, violência doméstica, entre outros. Por mais que, inicialmente, reconheçamos o intuito destes títulos em valorizar o esforço e a superação dessas mulheres, ele é vetor do silenciamento feminino, levando, inclusive, ao adoecimento psíquico de um grande contingente de mulheres no Brasil e no mundo.

Pouco espaço é oferecido a essas mulheres para cultivar valores vivenciais, como o amor que pode propiciar seu encontro existencial com elas próprias. Isso não significa dizer que é implícito ao Ser Mulher, em especial às mulheres guerreiras, o adoecimento e o aniquilamento de suas possibilidades existenciais pelo sofrimento. Até porque, segundo Frankl (2003), a liberdade humana pode ultrapassar os determinismos. Entretanto, considerando que todo ser humano é capaz de evocar sua liberdade de escolha diante de condições falsamente todo-poderosas (Frankl, 2003), o Ser Mulher ao se direcionar para encontrar sentidos de vida se orienta para subverter e transcender a tudo isso e encontrar seu propósito na vida. E isso é possível sob três formas, quer seja adotando valores criativos, quando se dedica a um trabalho ou realiza algo, valores vivenciais (ou experienciais), quando se identifica com alguma ideologia ou alguém que a inspire, e, por fim, valores de atitude, com atitudes frente ao sofrimento inevitável.

Para Frankl (2005), a busca por sentidos de vida destas mulheres pode se dar pelo resgate da fé, do amor, da felicidade e da dignidade do existir. Mas vale dizer que as estratégias de subversão do adoecer e a construção de recursos de saúde para estas mulheres são extremamente custosas e, por vezes, mínimas. Por isso, concluímos com um poema em forma de provocação para o Ser Mulher: Oh mulher o que te resume? Será uma flor, a rosa? Será uma canção de ninar? Será um brilho no olhar? Tudo isso junto e misturado, mas matizado em cor de rosa. Mas porque não o verde ou o azul? Não, porque essas são cores masculinas, de menino, de homem… Então aceitas o rosa como sua cor, a cor do amor, da dor, da flor, porque, se quiseres, pode ser o que desejar, inclusive, um Ser Mulher cor de rosa ou com matizes coloridas ainda indefinidas!

E mais…

O padrão de excelência de ser mulher

Temos percebido que muitas mulheres têm, no exercício de sua liberdade, tentado ser tudo. Sim, muitas mulheres têm se submetido a padrões de excelência quase inalcançáveis para mostrarem seu valor e superarem seus modelos geracionais, típicas “rainhas do lar”. Com isso, elas tentam demonstrar sua capacidade de se superar na direção de ser uma “super mulher”. No entanto, este não é o caminho do “meio”, da busca equilibrada entre o Ser Mulher e ter que SER MULHER. Parece mais a escolha “da porta larga” do que a “da porta estreita”, porque mais uma vez não garante levar estas mulheres ao encontro existencial consigo próprias. Tampouco, as levará a se realizarem como pessoas na busca de seus valores vivenciais, de uma ideologia com a qual se identificar para acreditarem que é possível uma existência plena de sentido. Essa busca por contrariar os ideais e padrões pré-estabelecidos parece mascarar, mais uma vez, a busca por viver um Ser Mulher autêntico e convicto dos seus sentidos de vida e valores criativos, vivenciais e atitudinais a serem realizados nesta existência. Obviamente não somos contra um ideal a ser alcançado ou um exemplo a ser seguido, mas propomos a busca por inspirações que possam orientar nossas buscas e encontros existenciais, conosco e com o outro, no sentido do amor próprio e da felicidade.

O sábio ditado popular já dizia “nem oito e nem oitenta”. Encontrar o caminho do meio e do equilíbrio, que proporcione uma base para um encontrar-se existencialmente, não é tarefa fácil, mas precisa ser uma missão possível! Nestes tempos frenéticos que aceleram nosso passo rumo às nossas muitas demandas, essa tarefa requer dedicação, paciência e foco na busca de um propósito e sentido de vida. Com isso, lançamos a ideia de que ser e existir podem e devem caminhar juntos. Isso, por si só, imprimirá a direção que pode ser fundamental para o encontro mais importante da nossa existência: o encontro do “eu sou”. Somente na intenção desse encontro eu-ser-existir é que podemos alcançar uma existência com sentido e, assim, chegar mais perto de transcender uma vivência esvaziada de propósito. Na direção de uma vida plena de sentidos, antídoto principal para o vazio existencial, combatemos em nós mesmos esse mal do século, causador de sofrimento e angústia humanas. Aos nossos leitores e às nossas leitoras lançamos o desafio: o de refletirem sobre quem são e quem aspiram ser, sem negligenciarem jamais o amor, a bondade e o cuidado consigo e com o outro. Esse já pode ser um propósito e sentido de vida!

Referências
Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante.
Frankl, V.E. (2003). Psicoterapia e sentido da vida [trad. A. M. Castro]. São Paulo: Quadrante
Frankl, V.E. (2005). Em busca do sentido: um psicólogo no campo de concentração. (21ª. ed) Petrópolis. Ed. Vozes
Frankl, V.E. (2011). A vontade de sentido: Fundamentos e Aplicações da Logoterapia. São Paulo, SP: Ed. Paulus.
Frankl, V. E. (2019). O Sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. (1ª. Ed). São Paulo. É realizações Editora.
Rocca RE. (1981). La piconeurosis histérica y sus limites psicopatológicos y clínicos. Acta PsiquiátPsicolAmer Lat., 27 (3): 209-18.
Roudinesco, E. (2002). A família em desordem.RJ: Ed Vozes.
Thomaz, F. N. (2012). Casaco que se despe pelas costas: a formação da justiça colonial e a (re)ação dos africanos no norte de Moçambique, 1894-c.1940. Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia.