O Mutismo Seletivo é considerado, a partir da edição do DSM-5 (APA, 2014), como um transtorno de ansiedade social na infância, caracterizado pela recusa ou fracasso persistente da criança em falar, frente a situações de interações sociais onde há a expectativa da fala, seja com os pares ou com adultos. No entanto, falam normalmente com determinadas pessoas, tendo preservadas as habilidades linguísticas compatíveis ao nível de desenvolvimento. Normalmente, surge em torno de 2 a 4 anos, período que geralmente coincide com o começo da escolaridade. É considerado um transtorno raro, cuja prevalência é de menos de 1% da população, com maior incidência no sexo feminino.

Um mundo de silêncio particular

As crianças com Mutismo Seletivo quando colocadas em situações de exposição e demanda de fala, experienciam o medo como a emoção que está associada ao desenvolvimento da ansiedade, a criança antecipa respostas negativas e catastróficas. A vergonha com emoção intensa e extremamente dolorosa, associada a uma avaliação global negativa do self, a um senso de desvalorização e incapacidade. Sofrem e experimentam um mundo de silêncio singular, que pode se estender por muito tempo. São mal compreendidas e vistas como birrentas, mudas, voluntariosas, como se escolhessem se calar. Não se trata de uma escolha e, sim, de uma condição, que envolve muita dor, impacta o desenvolvimento interpessoal e acadêmico, que se não tratada de forma adequada pode evoluir para outros transtornos graves.  

O DSM-5 especifica os critérios diagnósticos para o Mutismo Seletivo. No entanto, fazer o diagnóstico é complexo, e mais desafiador é traçar as estratégias do tratamento. Assim, para além da abordagem sintomatológica, se faz importante um olhar transdiagnóstico, que busca identificar fatores que predispõem, precipitam e mantêm o transtorno. Sendo realizada uma análise cuidadosa do sujeito com suas características intrínsecas, aspectos interpessoais, capacidade de regulação emocional, pensamentos e crenças, mecanismos de defesa, forma de expressão emocional, competências sociais, respostas comportamentais, e a dinâmica parental, familiar e social.

Construção de um vínculo terapêutico

Ao longo de toda minha prática clínica, pude atender alguns casos de Mutismo Seletivo, cada um diferente do outro em diversos parâmetros, mas todos envolveram um processo passo-a-passo, pautado nos aspectos anteriormente colocados, e acima de tudo, na construção de um vínculo terapêutico e de um ambiente seguro. Foi assim no caso descrito no artigo ‘Mutismo Seletivo: estudo de caso com tratamento interdisciplinar (Link http://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20170003)’, onde o olhar que transmite palavras de acolhimento, de aceitação incondicional, de validação emocional e de atitudes compassivas, possibilitou compartilhamento genuíno de experiências.

Sabemos o quanto fundamental é para os psicoterapeutas manter tranquilidade, serenidade e perseverança necessária para que o processo se estabeleça no tempo do paciente. Aqui, no caso em questão, envolveu dentro do setting terapêutico alguns meses de completo mutismo, comportamento não-verbal tímido, evitativo, rígido e perfeccionista. O desafio inicial foi deixar de lado técnicas descritas na literatura científica como eficazes, para me maravilhar com infinitas possibilidades, com desafiadoras descobertas sobre o outro e a si próprio e com a certeza de permanecer aberta ao processo singular da paciente.

Silêncio rompido com bolinhas de sabão

Com muita delicadeza, afeto e parcimônia chegamos a um marco no processo terapêutico, onde foi possível estruturar a técnica hierarquia de medos, por meio de um recurso lúdico: as bolinhas de sabão. A proposta era fazer bolinhas de tamanho pequeno, médio e grande. E completar a atividade colocando dentro delas os medos em suas devidas proporções. Foi um momento de simbolização e expressão, ainda não-verbal, das vivências angustiantes frente a demanda de ter que falar com as pessoas.  Uma linda metáfora pode ser associada à proposta, pois cada bolinha de sabão preenchida por uma emoção dolorosa, flutua suavemente e desliza pelo ar, até que se desfazem e libera seu conteúdo.

Foram aplicadas algumas técnicas psicoterapêuticas baseadas na Terapia Cognitiva-Comportamental adaptadas através de recursos criativos e lúdicos que estimulassem a vinculação, interação e a comunicação interpessoal.

Diagnóstico, prognósticos e desafios

Os melhores prognósticos no tratamento do Mutismo Seletivo estão relacionados ao diagnóstico e intervenção precoce, na intervenção terapêutica adequada, na prática interdisciplinar que envolve os profissionais da escola e os clínicos, no trabalho com a família, com aqueles que circundam a criança, incluindo os pares.

O Mutismo Seletivo desafia diariamente a todos os envolvidos, familiares, professores, amigos, terapeutas e a criança a compartilharem dúvidas, angústias, frustrações, emoções e incertezas. Sabendo de toda riqueza das descobertas e das possibilidades constantes do universo peculiar de cada um de nós.

E MAIS…

Uma data especial

Amanhã é comemorado Dia do Mutismo. É importante trazer o assunto para o debate de pauta da Saúde Mental. Por se tratar de um transtorno de pouca prevalência e termos pouca literatura disponível, precisamos abordar esse tema que causa tanto sofrimento e impacto na vida dessas crianças.

Referências:
American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (5ª ed). Porto Alegre: Artmed
Peixoto, A.; Caroli, A.; Mariama, S. (2017). Mutismo Seletivo: estudo de caso com tratamento interdisciplinar. Revista Brasileira de Terapias Cognitiva, 13(1) , pp5-11.
Caroli, A., Cavaco, N. (2018). Silêncios Peculiares. Aprendendo com o Gui sobre Autismo e Mutismo Seletivo. Editora Sinopsys