“Me sinto pequeno, parece que diminui de tamanho. Me dá um aperto na garganta, uma dor na barriga, mas parece que é lá dentro, em um lugar que eu nem sei direito qual é. Fico com a impressão que tá todo mundo me olhando, rindo de mim, parece até que eu estou com a bunda de fora e pelado. Só quero me esconder, ficar no meu cantinho. Ali fico protegido… mas também me sinto só”

Este relato é de um cliente falando da sua experiência. Um senso de inadequação que não é somente uma crença. É corporal, dói no corpo todo e faz com que ele se sinta pequeno e queira se esconder. Esta descrição é da vergonha. Uma emoção que pode se apresentar de forma muito paralisante em nossas vidas.

O impacto das emoções

Nós, psicólogos, sabemos que as emoções possuem um potencial adaptativo inato e tendências para ação, funcionando como um guia que informa se nossas necessidades, estão sendo atendidas. Em função da memória, as emoções nos falam também sobre acontecimentos passados, bem como organizam expectativas futuras. Como sujeitos inerentemente relacionais, algumas emoções podem ser extremamente dolorosas e ter grande impacto em nossas vidas, como a vergonha.

Considerada  uma emoção intrinsecamente social e relacional, a vergonha influencia a forma como nos sentimos e nos comportamos em relação ao outro. Diante do não atendimento satisfatório das necessidades humanas fundamentais, como sentir-se seguro, pertencente, aceito, a vergonha surge como uma emoção interna extremamente dolorosa, um sentir-se indigno, insuficiente, defectivo, não-aceito, podendo resultar em um senso de rejeição social e desconexão afetiva.

Padrões morais e sociais

A vergonha possui suas variações. Como uma emoção primária adaptativa, ela nos informa se estamos excessivamente expostos ou não, se estamos sendo invalidados, humilhados ou, ainda, se temos a nossa identidade ameaçada. Sinaliza também se estamos agindo de forma inadequada, violando importantes padrões morais ou sociais, correndo o risco de sermos julgados e rejeitados por outros. “A vergonha é a experiência mais perturbadora que as pessoas já tiveram sobre si mesmas; nenhuma outra emoção parece mais perturbadora porque no momento da vergonha o eu se sente ferido por dentro” , como refere Kaufman (1996). A tendência para ação presente na emoção da vergonha é se esconder e, assim, respostas automáticas aparecem, como a evasão, esquiva e a defesa a fim de proteger a posição social e a manutenção da conexão relacional.

A vergonha primária desadaptativa decorre de histórias de experiências recorrentes sentidas pelo self como humilhantes, sensação de inutilidade, inferioridade, defectividade e ausência de validação e afeto. Sendo uma emoção bastante complexa, destrutiva, crônica, sentida no âmago, a vergonha desadaptativa afeta o senso de si mesmo e a capacidade de se conectar e interagir com terceiros. Para Brown (2012), a vergonha é “o sentimento intensamente doloroso ou experiência de acreditar que somos defeituosos e, portanto, indignos de amor e aceitação.” Nesse sentido, as respostas a essa emoção tão dolorosa não são funcionais, causando sofrimento e impactos significativos na vida do sujeito.

Reação ou defesa

Diferentemente das emoções primárias que são respostas automáticas, as emoções secundárias são uma espécie de reação ou defesa à uma emoção primária. A vergonha secundária, por exemplo, pode funcionar como um disfarce para outras experiências emocionais, diferenciando-se da vergonha primária onde o self é uma falha. Podemos sentir vergonha por  experienciar vergonha, por ter sentido raiva, tristeza ou medo. No entanto, essa “reação à reação”, ou seja, emoção sobre sentir outra emoção,  obscurece a emoção original e não leva a ações adequadas e produtivas.

Para Greenberg (1997), “a vergonha adaptativa primária precisa ser respondida, para então acessarmos suas informações positivas. Por sua vez, ela precisa ser discriminada da vergonha primária desadaptativa, que precisa ser transformada, e da vergonha secundária, que precisa ser explorada.”.

A vergonha e o trauma  

A dor da vergonha pode levar as pessoas a buscarem se aliviar da dor com comportamentos compulsivos e adictos, além da evitação social, adiccões. É comum também vergonha e trauma caminharem juntos, especialmente nas situações nas quais a experiência foi tão traumática que a pessoa acabou ficando paralisada ou tomou decisões erradas. Mesmo pessoas que sofreram abusos podem falar coisas como “eu deveria ter reagido”, “porque eu não gritei e não fiz nada”. Ao longo do tempo, vão então desenvolvendo vergonha. E a vergonha acaba fazendo com que determinados temas fiquem proibidos e calados dentro de si, em cantinhos bem escondidos, o que só faz piorar tudo.

Mendes & Bruno (2019) ressaltam a importância da qualidade da relação terapêutica para o trabalho bem-sucedido com a vergonha. Em função do seu caráter extremamente doloroso, o cliente pode se sentir extremamente fragilizado e vulnerável. Só é possível chegar neste lugar, se nos sentimos validados e seguros por alguém, se podemos nos expor a ferida em carne viva, tendo o suporte de alguém que compreende, sente e empatiza com a nossa dor. No trabalho de mudar uma emoção com outras emoções, que é o foco do trabalho da Terapia Focada nas Emoções, Mendes & Bruno (2019) ressaltam que é importante que o cliente entre em contato com o que lhe faltou, para então reagir à isto com outras emoções e assim transformar as emoções desadaptativas.

Em resumo, a vergonha é uma emoção oculta, não dita, um sofrimento sentido em silêncio. São os silêncios que gritam. Através do processo de validação empática da experiência do sujeito, a vergonha pode ser acessada, vista, ouvida e aceita, promovendo-se assim uma transformação, uma mudança emocional. Este processo, muitas vezes, é longo e difícil mas, como afirma Greenberg (2019) “Você tem que sentir suas emoções dolorosas para curá-las.

E MAIS…

A sensação e associação da culpa

Muitos clientes confundem a vergonha com a culpa, Apesar de ambas serem muito dolorosas, existem diferenças A culpa se refere a noção de que fiz algo errado. Neste sentido, pode ser muito importante sentir culpa pois me permite a correção de algo que pode prejudicar outras pessoas ou a mim mesmo. Já a vergonha tem um sentido mais amplo. Enquanto na culpa o foco é o comportamento, na vergonha é a pessoa. Então, a culpa tem um caráter motivacional que não está presente na vergonha. Enquanto a culpa nos fala, “fiz algo errado”, a vergonha nos fala “eu sou um erro”. É claro que as pessoas podem sentir culpa E vergonha. É importante para o clínico perceber estas nuances, pois o trabalho com a vergonha é bem mais delicado, já que a pessoa se vê como uma falha.

Referências:

Brown, B. (2012) A coragem de ser imperfeito. Tradução de Joel Macedo. Rio de Janeiro: Sextante.
Greenberg, L. S. & Paivio, S. (1997). Varieties of Shame Experience in Psychotherapy. Gestalt Review.
Greenberg, L. S. Emotion-focused therapy: Theories of psychotherapy series. Washington, DC.  American Psychological Association.
Greenberg, Leslie S., Goldman, R. N. (2019). Clinical Handbook of Emotion-Focused Therapy. Apple Books. verso eletrônica
Kaufman, G. (1996). The psychology of shame: theory and treatment of shame-based syndromes. Springer Publishing Company.
Mendes, M. A. & Bruno, M. (2019). Terapia Focada nas Emoções. In: W. B. Melo. A prática das intervenções psicoterápicas: como se trata pacientes da vida real (pp. 277-302). Novo Hamburgo: Synopsis.