Cada sociedade percebe e concebe a mulher sob diferentes matizes de representações e símbolos, mas em grande parte a cor rosa predomina como a representação máxima do feminino. Mas será que existe uma maneira específica de representar o feminino e reconhecer o Ser Mulher? Em todos os casos podemos dizer que, pelo menos, o mês de outubro é Cor de Rosa!

Mitos fundadores

Desde a criação e fundação das diferentes sociedades, esforços foram feitos na tentativa de desvelar a criação do universo. De outro modo, a empreitada para descobrir como tudo começou desdobrou-se em diversas explicações. Do livro da Gênesis, baseado nas tradições judaico-cristãs, surge o que chamamos Criacionismo, que basicamente considera a fundação do universo, dos animais, da natureza e dos seres humanos a partir da palavra de Deus, cuja popularidade é retomada em estudos posteriores que contestam as ideias de Darwin sobre a evolução seletiva do universo. Atualmente, ainda se produzem discussões sobre a origem do universo, a partir, por exemplo, de teorias cosmológicas, como a “The Big Bang Theory” (ou em português A Teoria da Grande Explosão), que acreditam que o universo surgiu a partir de gigantescas explosões cósmicas há bilhões de anos. Mas nesta origem do universo, onde e quando surge a mulher?

Para responder a essa pergunta devemos nos remeter a mais antiga mulher na história da humanidade, segundo uma das mais importantes escrituras sagradas da tradição judaico-cristã: a Bíblia. Para a Bíblia, Eva é a primeira mulher que, criada por Deus como um ser perfeito e à sua imagem e semelhança, apresenta todos os atributos da própria divindade. Assim, Eva, como a primeira mulher da humanidade, segundo a Bíblia, surge, ainda, como produto do corpo de um homem, Adão, e subjugada a uma função pré-definida, ou seja, de ser sua companheira fiel. Para esta tradição, os mitos fundadores da origem do Ser Mulher se sustentam na ordem do extraordinário e sobrenatural. Deus criou primeiramente o homem e em seguida a mulher, com um sopro de vida feminina para a companhia da primeira figura masculina da humanidade.

Diferentemente do Judaísmo e Cristianismo, outras tradições, como a das sociedades africanas, pressupõem outros mitos fundadores do surgimento do universo e da mulher. Por exemplo, para os Dinkas, Deus não era ” O Todo Poderoso que abita os mais altos céus”, mas sim um Ser que vivia entre os homens e que, ferido propositalmente por uma mulher, manda cortar a corda que O conectava à humanidade (Kaly, 2012). A partir daí estabeleceu-se a interdição e o castigo à humanidade e, consequentemente, se introduz o problema da mulher, que também aparece em Gênesis 3. Nessa Gênesis, quando a serpente engana Eva, a primeira mulher da história da humanidade, segundo a Bíblia, Deus a castiga expulsando-a do paraíso e desafortunando-a com o trabalho e as dores do parto. Ainda que sob a premissa das dores humanas, é assim que o protagonismo da mulher se estabelece na história da humanidade.

Representações simbólicas

Embora tenhamos apenas as tradições e os mitos para nos indicar qual a origem da humanidade e da mulher, a verdade é que ainda hoje vivemos, independente do gênero feminino ou masculino, na direção de um futuro a ser realizado (Frankl, 2005). Entretanto, vale perguntar: Qual a direção que o Ser Mulher adota secularmente na história da humanidade? Importante refletir que esse Ser Mulher se constitui historicamente a partir dos papéis sociais e representações simbólicas que lhes são impostos, desde os tempos mais remotos. O nascer do primeiro “Ser Mulher”, Eva, como uma companheira subjugada ao “seu” homem, define simbólica e culturalmente a direção do futuro feminino ainda nos dias atuais. As diferenças nas representações simbólicas do Ser Mulher ao longo da história podem ser vistas em diferentes tempos históricos. Mitos do Egito Antigo, como a Deusa Ma’at, exemplificam como a mulher já foi considerada como um parâmetro orientador da vida e do morrer dos “homens”. Era sob a vontade dessa deusa que se definiam a existência da humanidade e a manutenção da verdade, justiça, ordem e do equilíbrio cósmico e social.

De fato, a mulher ao longo do tempo se tornou um ser que desempenha papéis relevantes, mas ao mesmo tempo ambivalentes, ainda mais quando consideramos símbolos importantes como o poder, o prestígio e o reconhecimento sociais que a humanidade delega a ela na sociedade. Mas afinal, que ser é esse capaz até de ferir Deus, como pressupõem os Dinkas?

A mulher tem um papel significativo nos diversos mitos fundadores da humanidade. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, a mulher foi reduzida ao que Simone de Beauvoir denominou como o segundo sexo (Beauvoir,1949-2009). Intelectualmente contrária ao pensamento predominantemente masculino de uma época, Beauvoir vivencia em si própria o estigma de um Ser Mulher em um mundo de homens. Ícone de uma época, em que a concepção sobre o feminino é fruto de um contexto social burguês, ela foi produto e produtora das ideias do seu tempo, que atravessam ainda os tempos atuais. Tempos em que a mulher travou (e ainda trava) grandes lutas por mudanças para redefinir o ser feminino em meio a bandeiras por igualdade de gênero e pela dignidade humana. Muitas dessas bandeiras ainda são levantadas até hoje para fazer frente a um imperativo sexista, que prevalece em algumas sociedades religiosa e normativamente centradas. A invalidação dos pensamentos de Beauvoir, exclusivamente por ser uma mulher, está presente, de forma mais ou menos visível, em todas as sociedades, o que acarreta para a existência do Ser Mulher um sofrimento psíquico com manifestações psicossomáticas, o que discutiremos mais adiante.

Configurações femininas

Com a mudança dos modelos da família extensa para a família nuclear, o Ser Mulher passou a responder nas sociedades ocidentais ao ideário da “rainha do lar”. Para sustentar esse ideário, à mulher é atribuído um papel social importante: a de cuidadora do lar, da prole e do marido, mas não exatamente nesta ordem! Junto com esse papel é esperado que a mulher assuma uma posição subjetiva de subserviência, docilidade e passividade. Moldar uma mulher para ser uma “rainha do lar” não é tarefa difícil, ainda mais em tempos em que “manda quem pode e obedece quem tem juízo!”, como diz o ditado popular.

Mesmo com a emancipação feminina e as políticas públicas que impedem a subjugação do corpo e da alma feminina pela força da violência física, sexual e/ou psicológica, quer seja no âmbito público ou da vida privada, existem muitas formas de manter a produção de rainhas do lar. Uma das formas de manter esse ideário é, por exemplo, subjugar a força feminina à onipotência da força masculina, daquele que é a primeira criação humana de Deus e que se tornou o guardião da fragilidade da mulher. Outra forma de manter aquele ideário é invalidar o potencial intelectual feminino, pois afinal, para ser uma “rainha do lar” bastaria ter aptidão (não exatamente intelectual) para as tarefas domésticas e os cuidados maritais e maternos, o que era possível obter pelos manuais destinados a ensinar a ser uma boa dona de casa, esposa e mãe (exatamente nesta ordem!). Quem não se lembra dos “Anos Dourados” das revistas e livros exclusivamente para um público feminino, onde facilmente se encontravam verdadeiras instruções sobre como ser uma boa dona de casa, com dicas como “Limpar a casa é o trabalho”, “Acima de tudo fazer sacrifícios” ou “Uma boa esposa é amigável”.

Com a identidade corrompida pelos ideários da “rainha do lar” e com uma sexualidade e afetividade subjugadas à satisfação do outro, o Ser Mulher adoece e sua saúde mental sofre. Desde os tempos de Hipócrates, presenciamos o sofrimento feminino na forma da histeria, explicada inicialmente por causas biológicas (como o fluxo sanguíneo irregular do útero para o cérebro) e posteriormente psicossomáticas. A histeria feminina, como um mal exclusivo do Ser Mulher, toma maior repercussão pelos casos das histéricas tratadas pelo Pai da Psicanálise. As mulheres histéricas de Freud povoaram o imaginário social sobre a loucura feminina e, ainda hoje, constroem uma explicação nosológica que classifica as mulheres com comportamentos impulsivos ou contrários ao que é normal e socialmente aceitável. Desse modo, o Ser Mulher é chamado de histérica para invalidar sua autenticidade e deslegitimizar seu modo de agir e ser.

Contrário a isso, é importante destacar que esse lugar subalterno da mulher não prevalece de forma linear ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Podemos lembrar algumas mulheres ícones da história que não se subjugaram ao Ser-Rainha-do-Lar ou ao Ser-Histérica, ainda que fossem vistas como loucas. Estas heroínas representam transformações sociais e históricas, quer seja pelo exemplo das suas vidas, quer seja pelo legado de força feminina que nos deixaram. Temos na história exemplos de vida e obra de mulheres que não  se excusaram a cumprir a missão de transformar o mundo, como Dandara dos Palmares, líder quilombola importante para a libertação de escravizados; Antonieta de Barros, jornalista, professora e primeira mulher negra brasileira a assumir um mandato parlamentar no Brasil; e Carla Camarão, guerreira indígena  que participou da resistência às invasões holandesas e acabou por entrar para história do Brasil com seu nome no Livro dos Heróis da Pátria (Lei nº 13.422, 2017). Essas são ilustrações de personagens que deixaram seus legados para as futuras conquistas femininas e prepararam o terreno para movimentos futuros de transformação pelos corpos femininos.

Trabalho e liberdade da mulher

Quando dizemos que somos seres em relação ao mundo e às coisas (Frankl, 2005) somos contrários a um reducionismo da causalidade direta do Ser Mulher como sinônimo de um feminino padronizado social e culturalmente. Com isso, a histeria também não pode ser reduzida e nem corresponderia, de forma linear e direta, à dificuldade de suportar o peso de ser uma mulher que contraria o que lhe é imposto. Se assim fosse, estaríamos negando a liberdade de escolha, que é a liberdade de existir como um ser de possibilidades diante dos condicionamentos da existência. Para Frankl (2005), a liberdade última da existência não reprime ou cerceia o ser numa existência, a priori, repressora e que o subjuga.

Desde a década de 1940, Viktor Frankl, médico neuropsiquiatra austríaco fundador da Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, a Logoterapia e Análise Existencial, nos alerta para algo importantíssimo sobre os determinismos nosológicos médicos. Segundo ele, para uma ampla compreensão do sofrimento humano, o ser deve ser percebido e analisado como integral, ou seja, compreendido sob as dimensões somática, psíquica e noética. Só assim é possível ultrapassar as elaborações médicas que esquematizam as subjetividades de maneira coletiva, sobretudo quando se fala de sofrimento humano. Para essa perspectiva, não podemos, então, reduzir o Ser Mulher a uma categoria do gênero feminino que sofre em sua existência os males de uma época, como a histeria, por exemplo. Ao abordar o ser e o sofrimento humanos, devemos estar atentos aos perigos das “explicações esclarecedoras coletivas” (Frankl, 2019) elaboradas de maneira descuidada para responder as demandas de uma audiência.

Disso, resulta uma significativa redundância para alguns e um extremo descontemplamento para outros, ainda que entendidos como provenientes de um mesmo coletivo (Frankl, 1947-1978). Disso resulta, ainda, uma compreensão do Ser Mulher e das suas vicissitudes sob uma perspectiva do “ser em si”, ou seja, na sua relação consigo mesma e com o outro, quer sejam as outras pessoas ou seus próprios condicionantes socioculturais. Importante frisar que esses condicionamentos são circunstâncias existenciais que imprimem uma direção ao ser, mas não o determinam. Por isso, cabe lembrar que, em qualquer hipótese, estarão em jogo a liberdade e a responsabilidade do Ser Mulher que escolhe, mesmo quando acredita que não há escolhas possíveis. A inserção da mulher no mercado de trabalho, as lutas de gênero, o movimento feminista e todas as conquistas femininas do século XX são exemplos disso.

Estabelecendo as devidas diferenças entre trabalho e emprego, as mulheres exerceram sua liberdade de escolha ultrapassando condicionantes e determinantes sociais e culturais nas lutas que travaram através dos tempos. Mesmo Eva como representação máxima da passividade e subserviência femininas foi um ser que gozou de sua liberdade, quando se deixou enganar pela serpente no paraíso. Logo, não há hipótese de ser ingênuo e hipercondicionado às circunstâncias existenciais quando entendemos que a liberdade humana pode ultrapassar os determinismos e condicionantes sociais.

Necessidade de transformação

As mulheres, como uma força produtiva silenciosa, sempre estiveram ligadas à necessidade de transformação das coisas pela ação humana, sem que isso necessariamente implicasse um vínculo empregatício. O que nos leva a outro ponto de reflexão: o trabalho doméstico, remunerado ou não.

Visto como algo sem valor e, portanto, invisível e passível de desprezo, o trabalho doméstico pode ser, ao contrário, entendido como uma frente de luta feminina. Quer seja como a “rainha do lar”, “ama de leite”, mãe, esposa, companheira ou até “secretária do lar”, para usar um termo mais contemporâneo e “politicamente correto”, a mulher sempre demarcou presença no cenário laboral. Todavia, Federici (2017) reafirma que essa relação entre mulher e trabalho doméstico é invisibilizada no mundo contemporâneo. O trabalho doméstico, muitas vezes exercido em jornadas duplas divididas com o emprego e até uma carreira profissional, foi escancarado pela pandemia da Covid-19. Essa situação de crise, com repercussões mundiais nas relações públicas e privadas, demonstrou a face mais cruel do trabalho doméstico a partir da hiperconvivência imposta pelo isolamento social. Isso revelou a faceta da precariedade da mulher (Federici, 2017) que, mesmo sem o título de “rainha do lar”, ainda responde, em grande parte sozinha, por todas as demandas domésticas ainda nos tempos atuais. Há, certamente, muito que se discutir sobre esta temática, que honestamente nos parece, em alguma medida, absurda. Criar uma oposição entre trabalho e família, pautada no dever da mulher em zelar sozinha pela casa, pelos filhos e ter ainda um emprego ou uma carreira, sem deixar “a peteca cair”, ou seja, cuidando-se para manter-se bela aos olhos do outro, é legitimar as razões pelas quais Eva um dia surgiu no paraíso.

Tudo isso tem efeitos tão drásticos na construção da subjetividade das mulheres contemporâneas que elas sofrem com graves consequências para sua saúde mental. Se paga um custo alto para manter-se no “equilíbrio da balança” do Ser Mulher, com pena do tão enaltecido empoderamento feminino ser capaz de levar uma legião de mulheres ao adoecimento psíquico. Para compreender “os dois pesos e as duas medidas” dessa balança, tomaremos emprestado as reflexões da psiquiatra Ana Ester Nogueira entrevistada do episódio “A crise (e a força) do feminino” do podcast 50 Crises. Para ela, é importante compreender a relação entre homens e mulheres como interdependente. Com isso, os gêneros, feminino e masculino, não precisam e nem devem rivalizar para ocupar o lugar um do outro. Ao contrário, as diferenças entre ambos podem ser cultivadas e celebradas para sustentar as mudanças do Ser Mulher ao longo dos séculos.

E MAIS….

Masculinidade é tóxica?

Para o Ser Mulher retomamos uma autocrítica para que nossos leitores não nos interpretem mal. Como existencialistas, não desejamos e nem nos compete figurar aqui nenhuma demonização do homem como vetor único da mortificação da existência da mulher. Até porque entendemos que o ser só existe em relação uns com os outros (Frankl, 2005). Tanto o Ser Mulher como o Ser Homem, na concepção de gênero, são seres dotados de liberdade e responsabilidade para escolher sua posição e lugar no mundo, bem como na sua existência particular. A chamada masculinidade tóxica, tão popularizada nas redes sociais nos últimos tempos, pode ser um ato de violência contra os próprios homens. Por isso, é importante retomar o caráter fenomenológico do encontro existencial, da dinâmica dialética de fazer-se Ser na relação com o outro, independente de ser uma mulher ou um homem. Referimo-nos à pessoa, esse Ser que, sendo homem ou mulher, branco ou negro, hetero ou homossexual etc., é talhado por um projeto especifico sócio e culturalmente estruturado. Nesse projeto, elaborado e conduzido por um grupo, não podemos perder de vista que as subjetividades, femininas ou masculinas, são formuladas sob construtos hegemônicos de um determinado tempo histórico-social. Retornando à condição relacional da nossa existência, todos esses constructos atribuídos ao nosso Ser, podem ser reinterpretados e delinearem novos contornos à nossa existência. Eles nos dão forma, mas também conteúdo, nos construindo subjetivamente.

Referências
Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante.
Frankl, V.E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Frankl, V. E. (2005). Em busca do sentido: um psicólogo no campo de concentração. (21ª. ed) Petrópolis. Ed. Vozes
Frankl, V. E. (2019). O Sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. (1ª. Ed). São Paulo. É realizações Editora.
Kaly, A. P. (2012). Da espiritualidade à fé na África Ocidental: os “dilemas” das sociedades “animistas” no mundo moderno. Revista Jesus Histórico e sua Recepção – Ano V [2012] – volume 9 pp.4-23. Disponível em: http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos9/ALAIN-artigo.pdf
Lei Nº 13.422, DE 27 DE MARÇO DE 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13422.htm
Rocca RE. (1981). La piconeurosis histérica y sus limites psicopatológicos y clínicos. Acta PsiquiátPsicolAmer Lat., 27 (3): 209-18.