“Quando a luz dos olhos meus

E a luz dos olhos teus

Resolvem se encontrar

Ai, que bom que isso é, meu Deus

Que frio que me dá

O encontro desse olhar”

(Trecho de “Pela Luz dos Olhos Teus”, T. Jobim)

É comum ouvirmos frases românticas de amor associadas a olhos e olhares. O sujeito enamorado percebe nos olhos da pessoa amada a segurança de ser correspondido ou a ameaça da perda, decifrados ali, na ausência de qualquer palavra. Olhos se mostram meios poderosos de comunicação, onde a mensagem se transmite mesmo sem querer.

Comunicação involuntária

Pesquisadores americanos estudam há anos a comunicação involuntária pelos sinais da face. O professor Paul Ekman, da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), pesquisador e consultor, desde políticos a animadores dos estúdios de desenhos Pixar, foi capaz de catalogar quarenta e três tipos de movimentos musculares da face e associá-los a sentimentos de medo, angustia, felicidade, perda, entre outros.  Segundo seus estudos, o sujeito registra sentimentos via micro sinais musculares em sua face, mesmo quando deseja aparentar algo diferente. Sentimentos disfarçados por palavras em fala ou em discurso, se revelam imediatamente fantasiosos por seu rosto, que de alguma forma revela algo diferente.

O que pode parecer algo restrito aos apaixonados, mentirosos ou às necessárias adaptações à vida cerimoniosa em sociedade, requer uma análise mais atenta. Mesmo em tempos de liberação sexual, é comum ouvirmos relatos de casais que se relacionam sexualmente às escuras. Parece que para eles, mesmo no momento dito mais íntimo, é necessário proteger seus olhos de ver ou de ser visto, que mistérios além do corpo nu poderiam ser revelados pelo entre olhar?

Pesquisas neurológicas

O olhar em sua potência é companheiro do sujeito há longa data, posterior à audição que está presente ainda no pré-nascimento mas, diferentemente desta, é capaz também de ser ativo e se fazer comunicar. O olhar deste cedo está a decifrar e ser decifrado.

Entretanto, esse decifrar imagético segue caminhos próprios. Pesquisas neurológicas recentes, indicam que a imagem e a linguagem transitam por áreas diferentes do cérebro humano e que quando uma imagem é decifrada pela linguagem, algo se perde.

A fim de tentar se verificar esta hipótese, foi realizado um teste[1] onde era apresentada uma imagem ao sujeito testado, que uma vez memorizada, deveria ser reconhecida e selecionada em um outro grupo. Verificou-se que quando era solicitado que a pessoa, antes de buscar a réplica da imagem original, descrevesse em palavras a imagem memorizada, ela tinha reduzida sua taxa de acerto se comparada ao cenário onde o sujeito testado, não traduzia a imagem em palavras antes da busca. Algo se perdia pelo processo de decodificação entre imagem e palavra e depois no caminho inverso, palavra e imagem.

O dito popular, anteriormente aos cientistas, já nos dava pistas desse caminho. É comum ouvirmos em momentos especialmente tocantes alguém dizer “não tenho palavras para expressar”, onde o sujeito falante reconhece que qualquer tentativa de verbalização seria redutora. Ou ainda na cena final do filme “O Poderoso Chefão III” quando o personagem vivido pelo ator Al Pacino nos oferece alguns segundos de um silêncio desesperado ao constatar a morte de sua filha, não há palavra que seja suficiente.

A linguagem é terapêutica

A linguagem tão importante na constituição do sujeito, de alguma forma castra a experiência em sua tradução. A imagem traduzida toma outro lugar, nem sempre tão próximo à experiência original.

A castração da experiência pela palavra em alguns casos pode ser limitante e redutora, mas de outra forma também protege quem vê e a vive. Uma experiência comunicada em palavras pode ressignificar a sua história original e também proteger contra algo da má experiência. Exemplo disso, é o recurso terapêutico de vivências e relatos de pessoas vítimas de um estresse pós traumático. A expressão do mesmo em palavras escritas ou faladas é vivida como algo redutor e ressignificador do trauma original. Na vida cotidiana é comum nos depararmos com o caso clássico do sujeito abandonado em uma relação amorosa, capaz de ocupar os ouvidos dos amigos mais próximos com infinitas repetições da sua mesma história de desilusão. De alguma forma, o repetir em palavras torna a experiência, pouco a pouco tolerável e, em algum tempo depois, diferente e até assimilável.

Se o olhar conserva vestígios que nos atravessam e nos animam, parafraseando Merleau- Ponty, algo no olhar evoca uma paisagem onde o que nos é mais próximo se difunde no distante e o distante faz vibrar a presença de coisas que se difundem sobre um fundo de ausência. Nosso corpo -carne viva- está preso no tecido do mundo. Porém, é preciso pensarmos num corpo que se move. O olhar pode ser visto como aquilo que se move para além da materialidade do corpo. Vai além dos arranjos materiais, permitindo a esse corpo refletir as marcas, humanidades essas que tornam a imagem reunida no espelho o ilimitado da experiência. Por meio de tais articulações, o sujeito como uma nota azul, pode se descobrir em significações inéditas: pode recolher de um olhar, metáforas de vida.

E MAIS…

Decodificação infantil da linguagem não falada

Se como pessoa adulta ainda nos surpreendemos com o poder das relações com outros e suas consequências quando ausentes dos códigos e defesas da fala, o que dizer então da criança ainda pequena, carente desta alternativa, que vive suas experiências em carne viva?

Na ausência da palavra, a criança no seu primeiro ano de vida, sobrevive às custas de seus recursos anteriores à linguagem. O olhar, tato, sensações, sons e vozes, naquele momento são seus instrumentos de interação com o mundo interior e exterior, que no início ainda parecem confundidos.

Absolutamente depende de outros, a criança pouco a pouco aprende a decodificar, ainda sem o atalho da palavra, necessidades, desejos e sentimentos próprios e posteriormente dos outros que a cercam. Cenas de crianças em interação com seus cuidadores, mãe ou quem venha exercer este papel, nos faz perceber que há algo mais no sorriso ou olhar da criança com seu par. Ainda não distraída pela linguagem a criança se abastece do que consegue capturar pelos seus meios e assim interage. Cuidador e criança, quando em sintonia, são capazes de longas conversas sem nenhuma troca de palavras, apenas na linguagem do olhar entre o bebê e o cuidador.


[Nota de rodapé 1] “Thoughts beyond Words: When Language Overshadows Insight” J. W. Schooler, S. Ohlsson e K. Brooks.