Trabalhar com psicologia clínica significa escolher atuar em uma atividade que envolve constantemente avançar e retroceder, incluindo, com frequência, a necessidade de alterar planos e encontrar outras formas de abordar situações. Quando a escolha é fazer esse trabalho sob enfoque cognitivo-comportamental, os terapeutas têm as tarefas terapêuticas como importantes aliadas.

Trata-se de atividades de variados níveis de complexidade que devem ser cumpridas pelos pacientes ao longo do tempo entre sessões, seja promovendo a sensibilização para uma temática, ampliando o repertório de comportamentos, organizando pensamentos e emoções ou cumprindo outra função relacionada à demanda do caso.

Nesta entrevista, a psicóloga Sabrina Martins Barroso aborda o tema e fala sobre o livro ‘Tarefas terapêuticas para clínica cognitivo-comportamental’, publicado pela Sinopsys Editora. A obra é organizada por ela e conta com a colaboração de suas ex-estagiárias e atuais colegas de profissão Ana Carolina Montanheiro Gonçalves, Ana Laura Domingues de Sousa, Eliana da Xing Chen, Florence Carla de Morais e Gabriela Pontes de Paula.

O livro conta com uma lista de tarefas terapêuticas que pode servir como um guia de consulta para terapeutas clínicos aplicarem na prática cognitivo-comportamental, mas também pode auxiliar profissionais da saúde mental que atuam com outras abordagens. Tais exercícios estão agrupados por faixas de desenvolvimento (crianças; adolescentes e adultos) e por temáticas frequentes em atendimentos clínicos, como psicoeducação, ansiedade, autoconhecimento, reestruturação cognitiva e habilidades sociais.

Sabrina é doutora em saúde pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em psicologia pela UFMG, professora adjunta da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFTM e do Núcleo de Avaliação Psicológica e Investigações em Saúde (NAPIS). Também é membro do Grupo de Trabalho em Pesquisa em Avaliação Psicológica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) e do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP).

O que a fez enveredar pelos caminhos da mente humana?

A variabilidade do comportamento humano sempre chamou minha atenção. E com o curso de psicologia, consegui entender um pouquinho o porquê de a pessoas agirem da forma como agem. Mais importante que isso, consegui encontrar um trabalho que me dá prazer e no qual sinto que estou fazendo alguma coisa por outras pessoas; ver alguém transformar a própria vida é lindo. Tive consultório durante vários anos e hoje sou docente de psicologia, trabalho com psicologia da saúde, sou supervisora de estágios clínicos e faço avaliação psicológica e neuropsicológica. Desde que virei docente, também trabalho com publicação de artigos, livros e material de intervenção clínica em abordagem cognitivo-comportamental.

Como surgiu a ideia do livro ‘Tarefas terapêuticas para clínica cognitivo-comportamental’?

Este livro, que tem meu coração, nasceu de uma necessidade. Como psicóloga clínica em terapia cognitivo-comportamental (TCC), sempre trabalhei com tarefas de casa como possibilidade de aumentar o envolvimento do cliente e auxílio na  intervenção clínica. As tarefas são acordos sobre coisas que o cliente fará ao longo da semana que faça sentido para o caso dele, que ajude na conceitualização cognitiva e que eu poderia retomar na sessão seguinte. Quando comecei a supervisionar estágios ou profissionais iniciantes, passei a ouvir com frequência solicitações de ajuda para pensar em tarefas terapêuticas. De tanto ouvir isso, brincava que, em algum momento, iria fazer uma lista de várias tarefas para disponibilizar ao pessoal. Assim, junto com um grupo de estagiárias, hoje profissionais competentíssimas, foi criado esse guia para colaborar com os processos de psicoterapia. Disponibilizamos inúmeras tarefas, dos mais variados tipos, com opções que podem ser usadas com crianças, adolescentes, adultos e idosos.

O uso de tarefas terapêuticas é exclusivo da TCC ou pode ser adaptado para outras abordagens?

A gente escolheu o nome “Tarefas terapêuticas em abordagem cognitivo-comportamental” para o livro porque se trata de um dos dogmas da teoria. Quem trabalha com TCC usa tarefas terapêuticas de forma sistemática, e elas ajudam imensamente no processo psicoterapêutico. Normalmente, o cliente recebe uma tarefa por semana e se acostuma com isso. Mas não se trata de uma prática exclusiva da TCC. Conheço profissionais de várias linhas teóricas que usam e veem o resultado, tais como análise do comportamento, humanismo, psicanálise e existencialismo. O material também pode ser útil na psiquiatria, assim como para estudantes e educadores. Inclusive disponibilizamos uma lista grande de filmes e músicas com temáticas que podem ser usados para começar uma conversa ou servir como aquele disparador necessário para trabalhar algo. Basta adaptar a cada caso.

As tarefas terapêuticas precisam estar pré-definidas no plano terapêutico?

Quando a gente trabalha em TCC, o plano terapêutico é seu norte, seu guia, seu GPS, o Waze da sua vida. E nesse Waze, você define quais são os temas que precisa trabalhar com aquela pessoa. Nessa hora, você pode listar tarefas terapêuticas que já viu funcionar antes, que considera que são úteis. Mas o processo de psicoterapia é completamente dinâmico, então o que você pensou que ia ser de um jeito vai para um outro caminho. Daí você muda seu plano terapêutico porque tem uma sacada genial ou porque viu algo interessante em algum lugar. Inclusive surgem novas ideias a partir de coisas que o paciente gosta, ou de falas que ele traz para a psicoterapia, de uma música que ele cita, de um lugar que ele diz que gostaria ir ou já foi. Você pode adaptar o que acontece para o que precisa e fazer uma tarefa nascer disso.

Quais tarefas terapêuticas são usadas na clínica com pessoas muito ansiosas?

Tarefas clássicas são a respiração diafragmática e o relaxamento progressivo. Para se ter uma ideia, já tirei pessoas de crise de pânico só com técnicas de respiração, sem ter que falar uma palavra. E essas técnicas têm a vantagem de poderem ser usadas com crianças, adolescentes e adultos. Outras tarefas para pessoas muito ansiosas são registro de pensamento ansiogênico, atribuição de nota, checagem de o quanto a realidade condiz com o pensamento manifestado naquele momento, por exemplo. As técnicas dos pensamentos alternativos e dos cartões de enfrentamento também podem ser utilizadas.

Que tipos de tarefas são indicadas para depressão?

A TCC nasceu para tratar a depressão, então há várias tarefas terapêuticas com esse foco. Em um quadro depressivo, o pensamento depressivo faz com que o paciente leia o mundo inteiro de forma negativa. Quando se consegue quebrar esse padrão, fazer a pessoa lembrar que já teve pensamentos positivos e já se sentiu bem em outro momento, o tratamento anda. Nesse sentido, algumas vezes, são usadas tarefas terapêuticas como pedir que o paciente traga fotos de momentos felizes. Porque, na hora que ele tiver uma lembrança boa, uma lembrança positiva, a sensação vai ser diferente, e aí o terapeuta pode trabalhar essa sensação para dar esperança para essa pessoa. A psicoeducação também é muito importante e pode ser feita tanto em consultório como passada como tarefa, quando o cliente lerá materiais que você selecionou para ele. Também é muito frequente pedir aos pacientes com depressão que façam caminhadas ou outras atividades físicas como tarefas terapêuticas.

Quais tarefas são úteis para reestruturação cognitiva?

Reestruturação cognitiva passa por quanto a pessoa realmente acredita naquilo que está falando. Então eu posso passar como tarefa que ela anote, ao longo da semana, quando um pensamento gerar qualquer tipo de mudança emocional (positiva ou negativa) e atribua uma nota sobre o quanto acreditou naquilo naquele momento. Posteriormente, a checagem da realidade é trabalhada no consultório. Outra coisa que pode ser solicitado é pegar as crenças disfuncionais do tipo “eu não dou conta”, “não vai dar certo”, “não é para mim” e anotar quantas vezes falou no cotidiano. Depois, no consultório, é possível trabalhar, por exemplo, quantas vezes essas crenças se tornaram realidade.

Quais tarefas terapêuticas são indicadas na clínica adolescente?

Quando eu estava na clínica, este era meu público favorito, porque a velocidade com que os adolescentes mudam a vida e mudam seus problemas é muito rápida. Eu achava isso muito bonito de ver acontecendo. E uma dica importante para trabalhar com adolescentes é o terapeuta cuidar do seu jeito de ser. Eles não podem relacionar o terapeuta com uma figura de autoridade, tipo pai e mãe. Nessa hora, o terapeuta tem que ser o amigão, o adulto com quem eles podem falar. Para isso, é necessário que o profissional saiba qual é o vídeo do YouTube, o desenho e a música da vez, o que é k-pop, Free Fire, Minecraft e um monte de outras coisas dessa natureza. E precisa ajustar/atualizar sua linguagem. Há várias tarefas terapêuticas clássicas de autoconhecimento que podem ser usadas com adolescentes, mas o principal é prestar atenção no que eles assistem. Perdi a conta das vezes em que Naruto me salvou. E não apenas nas intervenções, usando a realidade dos personagens; salvou também como tarefa terapêutica, porque você pode pedir que a pessoa crie um personagem, por exemplo, se ela gosta dessa realidade. Você pode pedir que ela traga jogos de que gosta, que explique quais são os atrativos daquilo de que gosta, pedir histórias relacionadas às coisas de que ela gosta; e ela vai trazer. Com o público adolescente, eu recomendo que se consiga, primeiro, a confiança deles, isso é muito importante. Em segundo lugar, recomendo escolher tarefas que mobilizem emoção. Costuma dar muito certo e, quando esses pacientes voltam, voltam mais abertos a falar. Mas eles têm que sentir que o terreno está aberto para a escuta.

Como adequar as tarefas à realidade dos pacientes?

É preciso que as tarefas terapêuticas estejam relacionadas àquilo com que a pessoa tem familiaridade, que faça parte da vida dela. Não vou passar uma tarefa de ler um texto ou um poema para quem não tem o hábito de ler e que eu não perceba abertura para isso. Porque ela não vai fazer ou, se fizer, não vai ser prazeroso para ela. Posso precisar adaptar essa tarefa para assistir a um seriado, a um jogo ou ouvir uma música, por exemplo. E, caso a pessoa goste de funk e o terapeuta não conhece funk, ele vai ter que se adaptar à realidade do cliente e procurar funks que se encaixem ou pedir ao cliente que escolha um que se encaixe na terapia. Então não adianta pedir uma coisa que não é ecológica para a vida do indivíduo. Ecológica no sentido de que não encaixa com o jeito que a pessoa vive ou com as coisas que gosta. A não ser que seja necessário trabalhar abertura à experiência e ver o mundo com novas possibilidades, como, por exemplo, experimentar uma comida que nunca comeu. Mas nesse caso, o terapeuta vai escolher uma comida que é feita na casa do cliente, mas que ele não costuma comer. Não vai solicitar a ele que experimente um prato japonês, por exemplo, que vai demandar gasto de dinheiro e há maior chance do cliente detestar. É possível fazer essas adaptações, mas elas exigem que o terapeuta conheça a realidade das pessoas que atende e que trabalhe, também, a flexibilidade de pensar o que quer com a tarefa, por que está pedindo isso. Se o terapeuta conseguir responder a essas duas perguntas, é muito mais fácil adaptar a tarefa para a realidade da pessoa.

Como é o engajamento dos pacientes em relação às tarefas terapêuticas?

Em TCC, uma das coisas que a gente começa trabalhando com o cliente é como vai funcionar o processo. E você explica que a tarefa faz parte desse processo. Não são 100%, mas a maior parte dos pacientes cumpre. E a gente também usa o não fazer a tarefa terapêutica como um dos indicativas do processo de psicoterapia. Ao perceber que o indivíduo não está fazendo a tarefa, o terapeuta para e analisa se tem um tipo específico de tarefa que ele não cumpre, por exemplo. Porque aí pode ser que o profissional esteja indo além do que o indivíduo dá conta naquele momento ou tem alguma coisa a mais ali, naquele tipo de tarefa, que está pegando para ele. Então é preciso modular ou adaptar o jeito de intervir ou parar pra pensar o que está acontecendo. Se o cliente não faz nenhuma tarefa, o engajamento dele na psicoterapia pode ser pautado na agenda da sessão. Mas dentro das linhas que usam sistematicamente a tarefa terapêutica, o cliente geralmente acostuma e o engajamento é bem legal. Chega num determinado ponto que, se o terapeuta não passa a tarefa, o cliente cobra ou traz a proposta da tarefa a ser feita.

Como lidar com clientes que têm dificuldade de se engajar nas tarefas terapêuticas?

A questão principal é combinar com os clientes desde o começo da terapia. Cabe ao terapeuta explicar que eles precisarão fazer algumas tarefas ao longo da semana porque 50 minutos em sessão é pouco tempo para conseguir ajudá-los da maneira que merecem ser ajudados, no menor tempo possível, para conseguir algum progresso. Também é preciso explicar que as tarefas são combinadas com eles, que não há nada imposto e que eles vão ter a chance de dizer o que não querem fazer e que haverá propostas alternativas para escolherem. Dessa forma, dificilmente haverá problema. Mas se houver, há duas possibilidades para o terapeuta: parar para analisar o tipo de tarefa que está pedindo, porque ela pode ser difícil demais ou ter algum gatilho específico para o cliente (aí é preciso ajustar isso); ou levar o assunto para a sessão e conversar com o indivíduo sobre o engajamento dele.