A ludicidade é fundamental no ambiente terapêutico com crianças e adolescentes desde que o momento não seja transformado em recreação. Livros, baralhos, brinquedos e jogos (comerciais e terapêuticos) são alguns dos recursos disponíveis que auxiliam e encorajam o público infantojuvenil a exteriorizar com mais facilidades pensamentos e emoções nem sempre alcançados na base da conversa. Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicóloga Manuela Ramos Caldas Lins, uma das organizadoras e coautora do livro ‘Recursos lúdicos na clínica infantojuvenil’.

Publicada pela Sinopsys Editora, a obra sistematiza e aprofunda a apresentação de recursos lúdicos para uso individual e em grupos, tanto para a avaliação quanto para a intervenção, com crianças e adolescentes de diferentes faixas etárias. Trata-se de um instrumento prático para auxiliar profissionais que atuam com esse público a escolherem as melhores ferramentas para trabalhar com criatividade as demandas clínicas apresentadas pelos pacientes. De forma detalhada, contém mais de 500 sugestões de recursos, incluindo público-alvo, objetivos, instruções de uso e aplicação terapêutica.

Doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), Manuela leciona no curso de psicologia do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Ela é membro do Núcleo de Estudos em Saúde Mental, Educação e Psicometria (NESMEP), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Neurociência Cognitiva e Comportamento da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); e membro do grupo de pesquisa em Avaliação Psicológica: Pessoas & Contextos (APlab), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Qual a importância dos recursos lúdicos na clínica infantojuvenil?

O recurso lúdico é a forma de nos conectarmos com nossos pacientes infantojuvenis, especialmente as crianças, que têm um jeito diferente de se comunicar. São pacientes que não chegam no consultório dizendo que querem conversar sobre seus problemas. Eles geralmente têm dificuldade de se expressar. Então precisamos de estratégias que nos possibilitem acessá-los e nos conectar com eles. E os recursos lúdicos são fundamentais nesses atendimentos, pois nos ajudam a entender mais sobre a dinâmica da criança ou do adolescente, de sua família, sobre as características que apresenta, as emoções, os pensamentos, ou seja, o seu universo. Lógico que tem pacientes que preferem conversar a brincar, mas, em geral, a mediação dos recursos lúdicos nos ajuda a fomentar a verbalização, especialmente dos menores.

Que cuidado o psicólogo infantojuvenil precisa ter para não transformar a terapia numa recreação?

O que difere nosso trabalho da brinquedoteca é ter um objetivo para o recurso lúdico: por que e como ele vai ser utilizado, onde se quer chegar com ele. O paciente não necessariamente precisa saber qual é esse objetivo. Quem vai ter esse domínio técnico e teórico somos nós, psicólogos. Também é importante explicar aos pais no primeiro encontro como funciona a psicoterapia e que serão utilizados recursos lúdicos com determinados objetivos. Essa psicoeducação torna mais fácil o processo.

No prefácio, a psicóloga Miriam Rodrigues destaca que se trata de um guia que todo psicólogo sempre desejou ter. Qual é o grande diferencial deste livro?

Não temos no mercado muitas obras que falem sobre recursos lúdicos, que destrinchem para que servem, assim como na formação dos estudantes de psicologia ainda é muito precário esse tipo de informação. Eles sabem que existem jogos, livros, filmes etc., mas o debate sobre sua função ainda não é aprofundado como deveria. Então o livro tem o diferencial de informar quais são e como utilizar os recursos lúdicos nas demandas clínicas.

Como surgiu a ideia de reunir recursos lúdicos para as principais demandas da infância e adolescência em um único livro?

Em função dessa lacuna inclusive na formação dos alunos de psicologia, eu e Lara (coautora Lara Maria Costa da Fonseca Gomes) pensamos em como ressaltar a importância desses recursos de um jeito mais completo, abarcando diversas demandas. Então, a partir das demandas mais frequentes em nossa clínica, buscamos as respectivas possibilidades de recursos para estruturar cada um dos capítulos. E aí fomos escolhendo a dedo profissionais com experiência em cada um desses temas para escreverem a respeito. A ideia é que o livro complemente para o psicólogo não só recursos que podem ser utilizados para cada uma de suas demandas, mas de que forma pode usar conforme o manual preconiza e também com adaptações que ele pode fazer para alcançar ainda mais o objetivo, instigando a criatividade e trazendo outras possibilidades de uso.

Houve dificuldade de encontrar materiais para alguma demanda específica?

Luto, abuso sexual e dependência tecnológica são capítulos que deram um pouco mais de trabalho, pois são temas com menos opções de recursos lúdicos em relação a outros, como os que trabalham as emoções, por exemplo. No entanto, há materiais que podem ser adaptados para esses casos, o que demanda criatividade. Também é preciso lembrar que nem todo paciente se adéqua ao recurso oferecido. Sendo assim, além de pensar na questão de ter um volume de material para diversificar o atendimento a um paciente, é necessário pensar em diversificar para vários pacientes.

Há algum capítulo ou alguma demanda a que você gostaria de dar um destaque especial?

Essa é a pergunta mais difícil, porque são vários. Mas cito o capítulo das emoções, pois, qualquer que seja a demanda que se esteja trabalhando com a criança ou o adolescente, de alguma forma, precisaremos trabalhar emoções, como regulação emocional e avaliação do repertório emocional do paciente, por exemplo. Trata-se de um capítulo longo, com mais de 40 páginas, elaborado de forma a entregar a maior quantidade de recursos para as mais diferentes demandas, seja abuso sexual, seja luto, ansiedade, altas habilidades, transtorno de oposição desafiante (TOD) etc.

Qual o principal desafio em atender crianças e adolescentes?

A parte mais desafiante não é necessariamente lidar com as crianças e os adolescentes, mas firmar um bom vínculo com os pais. Precisamos demandar um tempo para de fato orientá-los adequadamente e mostrar como funciona e a importância do nosso trabalho. Eles geralmente querem resultados rápidos, que não os mobilizem muito e nem a dinâmica familiar, acreditando que o problema é só do filho. É preciso acolher esses pais com cuidado e carinho para lidar com seus comportamentos enraizados de como aprenderam no passado, explicar a eles que houve evolução em técnica e em ciência e lhes apresentar um novo repertório de ferramentas para repensarem sua prática. Quando conquistamos isso, o trabalho psicoterapêutico flui. O difícil é engajá-los nesse processo e demonstrar a eles que suas mudanças refletem na criança ou no adolescente.

Por que o psicólogo deve ter este livro em sua biblioteca?

Porque é um livro prático. Lógico que, antes da parte prática, tem um trecho teórico falando sobre o transtorno, as dificuldades e a sintomatologia, mas a ideia é que ele seja um guia prático para o profissional abrir e ver qual recurso e como usá-lo na sua demanda clínica. É o melhor, o mais completo e atualizado livro que há no mercado sobre recursos lúdicos hoje. E penso que também o mais bem estruturado em termos de demandas que precisamos ter conhecimento para atender na clínica. Trata-se de uma obra que dá suporte e que potencializa muito os atendimentos se utilizado da forma certa.