Especializado no atendimento a crianças e adolescentes, o psicólogo clínico Rodrigo Giacobo Serra constata um aumento significativo no número de casos de transtornos de ansiedade e de comportamento, assim como de dificuldade de regulação de humor nessa faixa etária. São problemas agravados em tempos de pandemia e que interferem no desenvolvimento saudável da garotada e também na harmonia familiar. Nesta entrevista, ele destaca a importância do papel dos pais nas intervenções psicoterapêuticas e da prevenção dos transtornos psicológicos cedo.
Com 20 anos de experiência na psicologia, atuando como psicólogo clínico, professor acadêmico e supervisor de colegas de profissão, Rodrigo tem especialização em terapia cognitivo-comportamental na infância e adolescência, é professor doutor do curso de psicologia na Feevale (Novo Hamburgo/RS), professor convidado do mestrado em psicopatologia na infância e adolescência na Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha, e professor em diversos estados do Brasil do curso de especialização em TCC na infância e adolescência.
Graduado em psicologia pela Unisinos (São Leopoldo/RS), tem doutorado em psicologia pelo programa de pós-graduação em psicologia clínica e da saúde da Universidade Autônoma de Barcelona, com ênfase em sintomas somáticos funcionais na infância e adolescência. Na mesma universidade catalã, fez mestrado em psicopatologia clínica infanto-juvenil. Tem, ainda, pós-doutorado em educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Rodrigo também é autor de artigos científicos em revistas internacionais na área de psicopatologia da infância e adolescência e coautor dos livros ‘A prática cognitiva na infância e adolescência’ e ‘Técnicas em terapia cognitivo-comportamental com crianças e adolescentes’ e do ‘Baralho de treinamento de pais – Aprendendo a resolver dificuldades com as crianças’, todos publicados pela Sinopsys Editora.
Com base na TCC, o baralho apoia os terapeutas na psicoeducação dos pais mediante o desenvolvimento de estratégias e de habilidades que contribuem com a modificação de comportamentos de crianças de até 12 anos. O foco é a redução dos comportamentos desadaptativos, melhorando os sintomas apresentados. Nessa perspectiva, os adultos aprendem os princípios de controle de contingências, assim como são estimulados a construir um padrão de relacionamento com seus filhos baseado na validação emocional e em relacionamentos saudáveis na família.
Por que se tornou psicólogo e como aconteceu a escolha pela prática clínica com crianças e adolescentes e pela pesquisa/investigação nessa área?
A escolha por psicologia ocorreu muito fundamentalmente por uma experiência pessoal na época em que fiz terapia na adolescência, o que me abriu a porta para a abordagem voltada a uma visão humanista associada a uma intervenção fundamentada em eficácia, a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Minha terapeuta, que atendia infância e adolescência e era muito conhecida na área, me ensinou muito e me mostrou um outro mundo quando decidi que ia fazer psicologia. Depois que concluí a psicoterapia, nos tornamos amigos e colegas. Hoje são mais de 20 anos que trabalho com infância e adolescência. Eu percebi que esse era meu caminho também porque sempre tive muita preocupação em oferecer uma psicologia preventiva, não só de intervenção. E a possibilidade que a gente tem de trabalhar com perspectiva preventiva é em idades mais precoces, quando o ser humano está em desenvolvimento do seu corpo, da sua personalidade e ainda é possível se trabalhar com esses pacientes e suas famílias para que o desenvolvimento infantojuvenil seja o mais saudável possível.
Quais são as principais psicopatologias da infância e adolescência?
Evidentemente que existem psicopatologias que afetam mais essa faixa etária, mas eu trabalho dentro de uma área denominada psicopatologia do desenvolvimento. Do ponto de vista dessa vertente, a gente entende que todas as psicopatologias têm uma origem na infância, mas não necessariamente a criança cumpre critérios para um transtorno, como o de ansiedade, por exemplo. Mas todo início, toda formação, tem um desenvolvimento psicopatológico. Assim como a criança cresce e adquire habilidades, a psicopatologia se desenvolve. Ela precisa de ‘n’ fatores e vai se construindo. Em algum momento desse processo, seja na infância, adolescência ou idade adulta, pode se manifestar então um transtorno. Mas se pensarmos em termos de quais psicopatologias mais afetam essa faixa etária, se somarmos todos os transtornos de ansiedade, por exemplo, temos transtorno de ansiedade social, de ansiedade específica ou fobia específica, temos transtorno de ansiedade generalizada e de ansiedade de separação. Todos eles somados atingem em torno de 20% de crianças. É um percentual bastante elevado, e temos visto muitos casos frequentes, intensos e significativos no período da pandemia. Também vêm crescendo muito os problemas de comportamento, o que a gente chama de transtornos externalizantes. São questões que atrapalham a convivência dos filhos com os pais e com as quais as famílias têm dificuldades de lidar, tais como desobediência, intolerância à frustração, birra, uso de palavrões, dificuldade de lidar com as emoções, principalmente raiva e medo. São pequenos problemas que, se não trabalhados, acabam gerando transtornos. Aí teremos o transtorno desafiador-opositor, o transtorno de conduta e o transtorno explosivo-intermitente, todos associados ao comportamento, principalmente o disruptivo. Nós temos tido um aumento grande de crianças com dificuldade de regulação de humor, não necessariamente uma patologia específica, mas dificuldade de lidar suas emoções. E algumas já manifestam alteração de humor forte, importante, grave, que produz prejuízo no seu dia a dia. E aí a gente tem os quadros de bipolaridade e os depressivos.
E quais são as causas desses transtornos infantojuvenis?
São vários fatores que interferem na construção de uma psicopatologia. Chamamos isso de um procedimento multifatorial. Há os fatores ambientais e os fatores da própria criança. Nos fatores da própria criança, temos que pensar em genética, que é muito importante para muitas psicopatologias; no temperamento, o que se herda em termos de comportamento, de personalidade, ou seja, de jeito de ser, de atuar na vida; e no estilo cognitivo da criança, como ela interpreta aquilo que vive, como ela se comporta perante seus desafios. E aí nós temos esses fatores associados a fatores ambientais, que englobam ambientes sem estabilidade psicológica, de invalidação emocional, com discussões e agressividade em casa, que geram uma condição de estresse muito intenso à criança, que não suprem as necessidades básicas de carinho, proteção, segurança. Não estou falando em uma necessidade básica perfeita, mas as mínimas condições para aquela criança ter uma estabilidade psicológica para poder se desenvolver. Isso são fatores ambientais. Num quadro de ansiedade, por exemplo, os fatores internos podem incluir um estilo de criança mais angustiada, com dificuldade de aceitar mudanças, que tem um histórico de medos mais intensos na infância, tendência a reagir a situações de estresse de forma muito nervosa; crianças mais inibidas, mais tímidas, tem maior predisposição a ter ansiedade social por exemplo. Fatores ambientais que interferem na ansiedade englobam estilos parentais mais de superproteção e ambientes menos estáveis emocionalmente.
Quais são os principais sinais e sintomas aos quais os pais e outros responsáveis precisam ficar atentos e qual o momento de buscar ajuda psicológica?
No meu ponto de vista, sinais e sintomas devem estar ligados a um padrão de intensidade desse sinal, desse sintoma, e de uma frequência muito elevada para a faixa etária. Por exemplo, medos na primeira infância, até na segunda infância, são relativamente esperados no desenvolvimento natural da criança. Agora quando há um medo muito intenso e frequente, birras intensas e frequentes, muitas crises de raiva ou uma tristeza muito grande, que começam a prejudicar o dia a dia e a qualidade de vida do filho, e quando os pais se sentem perdidos e sem saber como lidar com a situação, esse é o momento em que é fundamental a procura de ajuda psicológica para ver o que está acontecendo. Isso do ponto de vista de intervenção na psicoterapia. Mas há um outro ponto de vista que a gente está longe ainda no Brasil e em muitos outros países – em outros já é trabalhado – que é um sistema de prevenção. Ou seja, você pode ensinar a criança ou o adolescente a desenvolverem determinadas habilidades para lidar com futuros desafios, como, por exemplo, a habilidade de regulação emocional, de socialização e de empatia. Ou seja, uma série de habilidades que vai ajudá-los a enfrentarem determinados períodos da vida de forma que esses momentos não venham a se transformar em dificuldades que possam gerar psicopatologia. Aí não há momento para fazer isso. Sempre é possível desenvolver com crianças e adolescentes habilidades sociais, habilidades de regulação emocional, como uma perspectiva preventiva e não de intervenção.
E qual a importância do envolvimento dos pais ou outros cuidadores na psicoterapia direcionada ao público infantojuvenil?
É vital. A gente tem uma regra básica em psicoterapia: quanto menor a idade da criança, maior a necessidade do envolvimento dos pais. Isso porque, quanto menor a criança, mais dependente física, emocional e psicologicamente ela é do seu sistema familiar. E quanto mais a gente consegue lançar este olhar para o sistema familiar, mais a gente consegue intervir também nos comportamentos da criança. Em outras palavras, não se entende criança sem entender seu sistema, não se intervém com as crianças sem intervir no sistema. Já na adolescência, dependendo da família, dependendo dos pais, eu sempre considero importante o convite a eles, mesmo sendo os filhos adolescentes, mais autônomos e, às vezes, querendo sua autonomia. Isso porque, em alguns pontos, pode ser importante a discussão com os pais. Assim como a criança não pode ser entendida fora de seu contexto, o adolescente também não pode, mas sempre respeitando essa regra de autonomia dele e de maior limitação para poder trabalhar com os pais para que esse jovem siga no seu desenvolvimento de autonomia. Trata-se de uma faixa etária muito complexa, na qual existem muitas mudanças em termos de hormônios, de crescimento do cérebro, de interação comportamental e em termos de regulação emocional. E muitas vezes os pais precisam de ajuda para lidar com tanta mudança dos filhos. Então é fundamental esse processo coletivo na psicoterapia infantojuvenil. A questão é equilibrar todos os fatores. É necessário ao terapeuta ter muita sensibilidade, conhecer muito esse pai e essa mãe, conhecer muito essas relações, para ver qual a melhor forma que eles podem ajudar.
Como e por que nasceu a ideia de criar o ‘Baralho de treinamento de pais’?
Isso vem da experiência clínica, de perceber a necessidade de desenvolver estratégias para os pais de forma mais estruturada que possam auxiliá-los da maneira mais clara possível a lidarem com dificuldades de comportamento dos filhos, a aprender desenvolver tolerância à frustração neles, a aprender os conceitos básicos de modificação de comportamento, entender o papel das suas emoções no processo de modificação do comportamento dos filhos. Quando eu e Marcelo (psicólogo Marcelo Goldstein Spritzer, coautor do baralho) começamos a pesquisar sobre esse tema, vimos que até então não tinha no mercado brasileiro uma ferramenta mais estruturada que oferecesse aos psicoterapeutas e aos pais essa experiência mais didática para trabalhar essas questões comportamentais das dificuldades das crianças e dos adolescentes e, consequentemente, das dificuldades dos pais de oferecerem os limites necessários a comportamentos não desejados e produzir algumas mudanças importantes. Essa foi uma motivação clínica. A segunda motivação foi na minha experiência de supervisão de casos clínicos, em que percebi que os terapeutas demandavam muito um instrumento que pudesse oferecer uma educação parental de uma forma mais estruturada.
De que forma o baralho contribui na psicoterapia infantojuvenil?
Ele é muito importante como muito importante são outras estratégias que o terapeuta utiliza. Costumo dizer que, para cada problema, o terapeuta tem um remédio. Temos os remédios para regulação emocional, para reestruturação cognitiva, de resolução de problemas, para modificação do comportamento diretamente com a criança e temos os remédios para trabalhar com os pais, entre eles, o treinamento parental. Então o baralho contribui e agrega a uma série de ferramentas que o terapeuta tem para lidar de acordo com cada caso. É mais um material à disposição para trabalhar e auxiliar as crianças, os adolescentes e as famílias, mas de extrema importância, porque a demanda é grande na contemporaneidade. Fica um convite aos terapeutas para conhecerem o material, usar e oferecer um feedback para nós.