Hoje, dia 24 de agosto comemoramos o Dia da Infância, data criada pelo Fundo das Nações Unidas (UNICEF), cujo propósito é promover uma reflexão sobre as condições em que as crianças vivem no mundo inteiro.
Contexto histórico
Uma trajetória sobre a compreensão do que é ser criança evidencia, através dos estudos de Ariés (1979), que a concepção atual de infância é fruto de uma construção histórica. Na sociedade medieval, por exemplo, não havia uma distinção entre crianças e adolescentes. Posteriormente, na Modernidade, ocorreram mudanças significativas nas concepções de infância, com grande ênfase e preocupação quanto a educação e a moral. Tempos depois, mais precisamente no século XIX, surge no Brasil, o conceito de menor associado aos limites etários.
Nesse sentido, a história da infância evidencia distintas práticas sociais e produções culturais relacionadas à criança, demonstrando diferentes configurações que a infância assume em diversos espaços e tempos. Ainda hoje tal conceito deve ser repensado, uma vez que as diferentes culturas e contextos históricos e sociais não nos permite ter uma única concepção de infância.
Constituição da Infância
Diante disso, pensar o lugar da literatura infantil na formação dos pequenos é de suma importância, na medida em que compreendemos a mesma como um direito da criança que faz parte da constituição da Infância. Com isso, cabe refletirmos sobre o papel da linguagem e da literatura e as suas relações com as concepções de criança que as mesmas reforçam.
Diversos autores como Candido (2011) nos convidam a pensar a literatura enquanto uma necessidade humana, sustentando a ideia de um bem da ordem dos Direitos Humanos essencial desde a primeira Infância. Discorrendo deste entender, o acesso a literatura é um direito de todos os cidadãos e como tal carece de políticas públicas capazes de garantir este acesso, com a finalidade de ampliar a participação dos sujeitos em práticas culturais de leitura literária.
Bakthin nos convida a pensar que antes do nosso nascimento estamos inseridos em contextos de enunciações e interlocuções. “Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe etc), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles(…) tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão a formação original da representação que terei de mim mesmo”. Bakhtin (1992, p.278)
Construção da consciência
É na linguagem, na relação com o outro, que sentidos são produzidos e os processos de subjetivação se efetivam.
Uma análise das interações entre adultos e bebês, em diferentes culturas, evidenciam que através das cantigas de ninar e das enunciações as interações se intensificam. Logo,os bebês necessitam de experiências narrativas iniciais, desde aquelas que antecedem uma rotina do cotidiano quanto os jogos poéticos, presentes nas canções ou histórias. Estes processos vão constituindo a linguagem, o pensamento e, com isso, a consciência.
Enquanto “sujeitos da linguagem e na linguagem” estamos imersos em mundo marcado por imagens, sons, falas e escritas.
Partindo desses pressupostos a literatura, assumida como um direito, desde a primeira infância, se relaciona com todas as manifestações artísticas e suas práticas culturais. Tal afirmativa nos convida a crença de que há de se ter livros de literatura disponíveis à leitura das nossas crianças e de que a literatura assume uma condição sine quanon na Infância.
Universo de significação
Mas, afinal o que estamos conceituando por literatura? Pensar na literatura e sua conceituação implica pensarmos em uma escrita imaginativa, CORSINO 2017(p.6) evidencia que: “Como uma forma especial de linguagem em contraste com a linguagem comum, como algo sem finalidade prática imediata e traz o julgamento de valores como ponto fundamental para definir literatura. Valores que se referem não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros. Nesta perspectiva, considerar um texto como sendo ou não literário significa assumir um ponto de vista partilhado por um grupo que, por sua vez, tem suas concepções sustentadas ideologicamente”. Para Compagnon (2009, p.34), “o critério de valor que inclui tal texto [como literário] não é em si mesmo literário nem teórico, mas ético, social, ideológico, de qualquer forma extraliterário”. Assim, propõe que a pergunta o que é literatura seja alterada para quando é literatura?
Complexidade no conjunto da obra
Na literatura adjetivada como infantil o critério de valor inclui não apenas o texto verbal, como também o visual e o projeto gráfico-editorial. Há nas especificidades do que seria literatura infantil uma complexidade no conjunto da obra (…) Os critérios que conferem à literatura infantil valor artístico estão na convergência e composição das três artes, na elaboração e inovação destas linguagens naquilo que surpreendem, deslocam e provocam esteticamente os leitores. Na perspectiva discursiva, ler, ver e dizer se articulam e, para as crianças pequenas, que são leitoras ouvintes e que os atos de fala e de escuta têm também um forte componente corporal, acrescenta-se o ouvir, o tocar e o brincar. Procuramos trazer a literatura como possibilidade de ampliação do universo de significação das crianças, dos afetos, da vivência da alteridade constitutiva, do conhecimento do outro, do mundo, como abertura para o pensar, refletir, imaginar. A literatura infantil para as crianças pode ser espaço de formação e liberdade, de deslocamentos e ampliações, de sensibilidade e humanização. Tudo isso que dá mais sentido e consistência à existência. E também ao estimulo psicológico que a leitura oferece.
Romper com a concepção hegemônica dos temas educativos
É essencial romper com a concepção histórica e ainda hegemônica que privilegia temas da literatura infantil que busquem um viés moralizante e educativo, que objetive somente inculcar valores, mudar comportamentos ou informar as crianças sobre os mais diversos assuntos através de histórias e personagens do mundo ficcional e que tratem a Infância por meio de um viés moralizante.
Partindo desses pressupostos pode-se perceber que as histórias infantis não servem apenas para distrair ou acalmar as crianças, elas carregam muito mais conhecimentos do que se imagina, estando aí presentes o conhecimento da leitura e da escrita. Além da construção da consciência e de bases psicológicas.
É a função social de comunicação da nossa língua, bem como concepções de sujeitos. Assim, a literatura, como espaço de formação humana, social e psicológica, pode fazer muita diferença na vida das crianças.