Temos vivido tempos de inquietação e perplexidade nas relações. Antes da chegada da pandemia, as amizades, os encontros e os relacionamentos virtuais não pareciam tão descartados. Aliás, havia uma aposta de que, no “futuro”, essas seriam as formas “naturais” de convivência. No entanto, o futuro chegou a despeito de vontades e invenções sociais e culturais e o viver atual, apartado do outro humano, reiterou a tamanha fragilidade do viver “sem encontro”, “sem-contato”. Na privação de espaços reais de encontro, muitos relatam sentir a ausência do abraço, do olhar, das expressões, da sensorialidade, do diálogo corporal existentes nas inter-relações, as quais o espaço virtual não é capaz de suprir. Há algo na cena do encontro, do corpo na presença do outro, que nos escapa virtualmente. Essa comunicação, essa linguagem para além das palavras, é conhecida como diálogo tônico-emocional, e é um dos principais objetos de que se ocupa a Psicomotricidade.

Diálogo-tônico-emocional

Julian de Ajuriaguerra foi um psiquiatra infantil que realizou seus estudos na França, concentrados nos comportamentos dos bebês entre o neurológico e o psiquiátrico, e usou o termo diálogo tônico-emocional para definir “uma noção que corresponde ao processo de assimilação e, sobretudo, de acomodação entre o corpo da mãe e o corpo do bebê; o bebê sustentado pela mãe é pulsante muito precocemente em um intercâmbio constante com as posturas maternais; por sua mobilidade, busca seu conforto nos braços que o mantém”. Esse conceito, diálogo tônico-emocional, vem demarcar um tipo de comunicação que é única do ser humano, pois parte de manifestações tônicas e motoras muito precoces dos bebês e sua interpretação (nomeação) pelos outros primordiais (pais ou quem cuida do bebê). Os movimentos reflexos, involuntários, espontâneos e desordenados, comuns no recém-nascido, são manifestações genéticas que o bebê usa para demonstrar, aos outros da mesma espécie (ontogenia), suas necessidades, desconfortos e saciedade. Essas manifestações são, então, interpretadas simbolicamente pelos outros primordiais do bebê, por meio da linguagem como “demandas”, ou seja, o choro, as expressões e os movimentos podem representar fome, sede, necessidade de higiene, de sono, de dor, de proteção, de afeto etc.

Reações intencionais singulares

Em pouco tempo, essas trocas que acontecem entre o bebê e seus outros primordiais, nas rotinas de cuidados e nas trocas afetivas, tornam-se uma comunicação singular, fazendo com que se traduza rapidamente qual o “apelo” presente no choro, nos sorrisos e nos gestos desse sujeito (o bebê). Assim, quando a mãe (ou outro primordial) diz ao bebê: “Ah, você só está precisando de um pouco de colinho”, quer dizer que a mãe já reconhece, no bebê, expressões e movimentações que ela traduz e sustenta. Importante destacar que essa movimentação espontânea, tomada como comunicação, não tem um padrão em todos os bebês, pois, suas reações são próprias e significadas pelos outros que cuidam e convivem com eles. Quando é tomada como símbolo, como verbo, a movimentação espontânea inicial do bebê caminha para a intenção e constitui entre bebê e seus outros uma linguagem afetiva, um diálogo tônico-emocional.

O sofrimento psíquico

A compreensão e a percepção do diálogo-tônico pressupõem certo vínculo, uma escuta sobre a ação corporal. Nos espaços terapêuticos, o diálogo tônico pode ser decisivo na escuta do sofrimento psíquico em um simples baixar de olhos, uma esquiva de ombros ou no desaparecer simbólico embaixo de panos ou caixas de papelão. Na Educação, o vínculo do professor com a criança é onde se constitui o diálogo tônico e deve ser a primeira comunicação a ser estabelecida, pois a partir daí, a mediação na aprendizagem nunca será somente um ato pedagógico, mas, principalmente, afetivo.  O professor, atento ao “corpo que fala”, percebe as vulnerabilidades e acolhe a criança que nunca acha espaço para si ou que declina de colocar seu corpo na ação até parecer invisível na sala, entre outras situações cotidianas nas escolas.

Talvez o diálogo tônico-emocional possa explicar porque a falta do encontro, do contato, esteja nas atingindo tão dolorosamente. Ele está presente desde o bebê, pois, é o despertar da comunicação que nasce das relações mais próximas e traduz, de você, aquilo que somente a corporeidade e o afeto são capazes.

E MAIS…

O corpo receptáculo

Jean Bergés trouxe-nos a ideia de “corpo receptáculo”, abordando a função do corpo a partir das imitações bem precoces do bebê e os questionamentos (o que será que o bebê quer?) sobre os efeitos do desejo da mãe no corpo da criança. “O corpo receptáculo é o próprio corpo do outro, dito; a capacidade de experimentar o corpo do outro como seu, de alienar-se”. Assim sendo, o corpo do bebê e suas manifestações motoras são a primeira via de relação, de expressão afetiva e de inserção no universo humano. Ao longo da vida, a linguagem oral vai organizar o pensamento racional e os comportamentos humanos, moldando-os aos costumes, crenças e hábitos sociais e culturais. No entanto, o diálogo tônico nunca desaparece; ele está presente, enlaçado a um sujeito, e permite que o olhar atento de “um outro”, principalmente um outro afetivo, o leia e o reconheça nas suas necessidades mais profundas.

Referências:
AJURIAGUERRA, J. Manual de psiquiatria infantil. São Paulo: Ed. Masson, 1983 BERGÈS, J. O corpo e o olhar do outro. In: Escritos da Criança 2 – Doze textos de Jean Bergès. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 4.ed, 2019.
JERUSALINSKY, J. Desenlaces do laço mãe-bebê. In: A criação da Criança: Brincar gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador: Ágalma, 2011.