Uma em cada 36 crianças de 8 anos (2,8%) tem transtorno do espectro autista (TEA). O número de casos vem aumentando nos últimos anos por causa de fatores como a melhoria no diagnóstico quanto aos critérios usados. Por outro lado, ainda falta uma maior integração entre as partes envolvidas, incluindo famílias, escolas e setor saúde, para que a inclusão e o tratamento de qualidade se tornem uma realidade de fato no Brasil. Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicopedagoga clínica e institucional Aline Bittencourt.

Ela é professora EBTT (Ensino Básico Técnico e Tecnológico) do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro/RJ), doutora em ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mestre em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), especialista em transtorno do espectro autista (TEA) e atendimento educacional especializado (AEE). Também é coautora do livro ‘Autismo e ciências: o protagonismo de estudantes com TEA’ (Wak Editora) em parceria com Rosane Meirelles.

No livro ‘Autismo e ciências’, são apontadas dúvidas de professores ao receberem alunos com TEA. Quais as principais?

As principais questões são: de que forma ensiná-los e qual o melhor método? No livro, damos voz e vez aos estudantes com transtorno do espectro autista; eles são os protagonistas e nos ajudam a enxergá-los no processo de aprendizagem em uma outra perspectiva. Embora tenham foco no ensino de ciências, as experiências abordadas podem ser empregadas nos mais variados contextos.

Quais os dados mais recentes sobre o número de pessoas com TEA no Brasil e no mundo?

As pesquisas e os dados sobre prevalência de autismo são baseados no Centro de Controle de Doenças e Prevenção do Governo dos Estados Unidos da América (Centers for Disease Control and Prevention, CDC), que apresenta um novo número de prevalência de autismo: uma em cada 36 (2,8%) crianças de 8 anos. Outro dado apresentado é que há quatro meninos para cada menina no espectro autista. No Brasil, temos o levantamento governamental do número de pessoas com TEA no censo, mas não conseguimos ainda ter um controle com dados robustos.

É fato que os casos estão aumentando? Por quê?

Sim, o número de pessoas com autismo está aumentando por conta de alguns fatores, como a melhoria no diagnóstico quanto aos critérios usados. Atualmente temos, também, uma maior democratização dos critérios de diagnósticos; a saúde com ferramentas e profissionais melhores treinados.

Fale sobre os diferentes tipos de autismo que existem.

O TEA é classificado no DSM-5 como um transtorno do neurodesenvolvimento, o que pode ser definido como um grupo de transtornos observáveis desde o início do desenvolvimento do indivíduo, muitas das vezes antes mesmo do início da idade escolar.

Em geral, os transtornos do desenvolvimento são caracterizados por déficits que acarretam prejuízos tanto na vida pessoal quanto na vida social. Os déficits de desenvolvimento variam desde limitações muito específicas na aprendizagem ou no controle de funções executivas, até prejuízos globais em habilidades sociais ou de inteligência.

Segundo o DSM-5, os critérios diagnósticos para o TEA são dois: déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos e padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.

Quais as principais conquistas já alcançadas no Brasil em benefício das pessoas com TEA?

Uma das principais conquistas já alcançadas no Brasil foi a Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista), fruto de um esforço de uma mãe de um autista. Com essa lei, pessoas com TEA passam a ter os mesmos direitos das pessoas com deficiência, garantindo, assim, direitos como diagnóstico precoce, acesso à educação e ao trabalho. Também cabe citar a criação da CIPTEA (carteira digital de identificação da pessoa com TEA), a inclusão no censo demográfico e o direito ao benefício assistencial à pessoa com deficiência (BPC-Loas).

Quais os principais desafios ainda pela frente?

Hoje, como professora de escola pública, vejo que as crianças possuem acesso ao diagnóstico, mas o tratamento de qualidade não ocorre. Mesmo com a instalação de alguns centros de tratamento e diagnóstico de autismo, esses não são suficientes para um tratamento de qualidade, pois não dão conta de atender a todos.

Outro ponto é a capacitação dos profissionais: os professores não sabem como lidar, não aprendem isso na faculdade. Muitos alunos, principalmente os de nível 2 ou 3 (moderado ou severo), chegam às salas de aula e os professores não possuem conhecimento de como trabalhar.

Inclusão escolar e na sociedade: ainda faltam recursos de formação para os professores e a compreensão de que há necessidade de uma escola com bidocência em todas as turmas, ou seja, dois professores atuando com aquela turma desde o planejamento até a execução.

Fale sobre o papel da escola em parceria com a família na melhoria do desenvolvimento e da inclusão das crianças com TEA.

A parceria da família com a escola é um ponto que precisa ser tratado como de extrema importância para o desenvolvimento e a inclusão das crianças com TEA. Precisamos não só escola e família, mas que escola, família e saúde caminhem juntos.

Unindo esses três territórios estaremos trabalhando em prol de uma inclusão de verdade, desde o compartilhamento das informações; ambiente acolhedor em que todas as crianças sejam valorizadas com atendimento às suas necessidades específicas; formação do professor e de toda a comunidades escolar; apoio emocional à família e ao profissional de educação; comunicação ativa dos profissionais de saúde e educação que lidam com o sujeito.

Considero emergencial que isso ocorra. Vou abrir um parêntese para contar o que me ocorreu há pouco tempo: temos um aluno com TEA nível 3 (severo), não oralizado, que, por vezes, se torna agitado/agressivo. Ao entrarmos em contato com o neuropediatra que o acompanha, tivemos a seguinte resposta: “Só falamos com a escola se o pai ou a escola pagar uma consulta”. Isso fechou as nossas possibilidades de tentar uma parceria no compartilhamento das informações.