Embora as habilidades para a vida possam ser aprendidas em qualquer faixa etária, seu aprendizado logo cedo é considerado fundamental para o desenvolvimento infantojuvenil saudável. Isso porque elas são responsáveis por comportamentos adaptativos e positivos que possibilitam que a garotada lide de maneira eficaz com as demandas e os desafios do cotidiano.

Propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as habilidades para a vida são: autoconhecimento, empatia, comunicação eficaz, relacionamento interpessoal, tomada de decisões, resolução de problemas, pensamento criativo, pensamento crítico, manejo de emoções e manejo do estresse. Elas contribuem para a competência psicossocial, auxiliando nas relações interpessoais, e, consequentemente, para o bem-estar e a saúde plena.

A OMS propõe a seus países-membros a realização de ações e programas baseados no modelo de habilidades para a vida como uma estratégia para a redução de comportamentos de risco e para o aumento dos cuidados com a saúde física e mental desde a infância.

Nesta entrevista a psicóloga Carmem Beatriz Neufeld aprofunda o assunto. Ela é fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Universidade de São Paulo (LaPICC-USP), no qual desenvolve o programa Pra Vida, aplicado em escolas públicas de Ribeirão Preto/SP.

Também é coautora, junto com as psicólogas Isabela Ferreira e Juliana Maltoni, da coleção de livros infantis ‘Habilidades para a vida’, publicada pela Sinopsys Editora. Trata-se de uma ferramenta lúdica, com personagens apaixonantes, que auxilia pais, educadores e terapeutas na missão de ajudar a desenvolver e ampliar o repertório dessas habilidades em crianças de 6 a 10 anos de idade.

Carmem graduou-se em psicologia no ano de 1997 pela Universidade da Região da Campanha (Urcamp), em Bagé/RS. Tem pós-doutorado em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado e mestrado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

É livre docente em terapia cognitiva-comportamental (TCC) da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto da USP, onde é professora associada do Departamento de Psicologia, atual presidente da Comissão de Internacionalização e professora orientadora dos programas de pós-graduação em psicobiologia e psicologia.

Também é professora convidada permanente do mestrado e doutorado da Universidade de La Laguna, na Espanha, presidente da Federação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais (ALAPCCO)/2019-2022, presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências (AESBE)/2020-2023 e bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Por que se tornou psicóloga e como aconteceu a escolha pela TCC?

Eu sempre era procurada pelas pessoas para dar dicas e conselhos mesmo quando ainda adolescente. Também sempre gostei muito de tentar entender por que a gente é como é. E sempre tive muito interesse pela área da educação, ou seja, em como é possível ajudar as pessoas, a partir da educação, a conviverem melhor consigo mesmas e com as outras pessoas. A abordagem da TCC surgiu para mim em março de 1999, quando estava no mestrado e encontrei, em cima da mesa da minha orientadora, a professora e doutora Lilian Stein, da PUC-RS, um livro chamado ‘Terapia cognitiva da depressão’, do psiquiatra norte-americano Aaron Beck e colaboradores. Eu devorei esse livro. Foi a partir daí que me encantei com a TCC e comecei a estudá-la.

Fale sobre seu trabalho na área de psicopatologia da infância e da adolescência.

Desde a época da graduação, trabalhei com crianças e adolescentes. Fiz estágios nessa área. Também trabalhava com adultos, mas sempre gostei da área da infância e adolescência. Até porque me licenciei em psicologia e acabei trabalhando no magistério, dando aula de psicologia para professores. Além disso, eu tinha uma bolsa-trabalho na Urcamp na qual trabalhava com crianças com alguma deficiência ou transtorno, como síndrome de Down, autismo e deficiência auditiva. Também tive experiência junto a escolas. Então essa área sempre me acompanhou, e a psicopatologia não ficava à margem, porque era algo sobre o que as pessoas acabavam perguntando e pedindo orientação. E acabou se tornando mais ainda uma questão de estudo e de interesse meu a partir de 2008, quando passei no concurso público na USP de Ribeirão Preto/SP e me tornei responsável pela disciplina de psicopatologia na infância e na adolescência a partir de 2009. Mas não posso negar que sempre penso na psicopatologia na infância e na adolescência muito no sentido de compreender como ela funciona e de como a gente pode promover saúde e prevenir o desenvolvimento de psicopatologias e principalmente trabalhar com desenvolvimento saudável. E é daí que vem o meu interesse em estudar as habilidades para a vida.

O que são as habilidades para a vida?

As habilidades para a vida são um conceito proposto na década de 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir de um grupo de trabalho que foi instituído pela própria OMS no sentido de tentar mapear na literatura todas aquelas habilidades em que há evidências de que são protetivas para o desenvolvimento. Foram então mapeadas dez habilidades para a vida indicadas como sendo promotoras de prevenção de problemas de saúde, não só de saúde mental, mas de saúde física também.

Qual a importância delas para o desenvolvimento do ser humano?

As evidências mostram que, uma vez desenvolvendo essas habilidades, aumentam as chances de as pessoas conseguirem lidar com situações da vida, de conseguir ter um desenvolvimento mais saudável, de conseguir lidar com os desafios cotidianos, os problemas da vida que vão acontecer inevitavelmente. E nesse sentido ajudar a desenvolver resiliência e outras habilidades para diminuir a probabilidade de problemas no desenvolvimento.

De que forma é possível desenvolvê-las?

Para desenvolver essas habilidades, é preciso conhecê-las. E elas são passíveis de serem desenvolvidas em qualquer área, em qualquer lugar, seja em casa, na escola, na psicoterapia e na própria vida, ou seja, no cotidiano, na convivência com os colegas. Então se a gente tem a oportunidade de desenvolver habilidades de desenvolver habilidades nos adultos de referência, a partir daí, a gente pode pensar em sociedades que tenham mais habilidades para a vida. Eu penso que esse talvez seja um dos pontos principais, porque, muitas vezes, a gente pensa que resolver problemas é uma coisa que se faz intuitivamente, mas existem dados que mostram que existe um ciclo para a gente ser mais eficaz em resolver problemas. Resolver problemas é uma habilidade bastante complexa. Julgar e tomar decisões, fazer escolhas de uma forma que essas escolhas sejam mutuamente benéficas e que elas possam realmente trazer benefícios no médio e no longo prazo, por exemplo, para todos os envolvidos. Ter, desenvolver, pensamento crítico, pensamento criativo, ou seja, pensar fora da caixa, e também poder ser flexível em padrões pré-estabelecidos, conseguir perceber as armadilhas que a própria cognição, ou a sociedade, ou uma determinada cultura, ou uma determinada situação nos impõe. Tudo isso são habilidades, além da própria regulação emocional, manejo de estresse, a comunicação eficaz, o relacionamento interpessoal e, claro, o autoconhecimento. Então se a gente desenvolve essas habilidades, acaba que a gente prepara as pessoas mais para a vida. A infância é a fase preferencial para se desenvolver habilidades para a vida, porque, de uma certa forma, estaremos inibindo ou diminuindo a probabilidade de algumas coisas potencialmente nocivas ao desenvolvimento infantil acontecerem. Porém a gente pode trabalhar essas habilidades em qualquer faixa etária. Em crianças, em adolescentes, em adultos, em idosos.

Assim nasceram o programa Pra Vida e a coleção de livros ‘Habilidades para a vida’?

Sim. O Pra Vida é um programa de desenvolvimento de habilidades para a vida já aplicado em diferentes faixas etárias. Uma vez oferecendo esse programa em escolas, a gente começou a perceber que precisava talvez algo que pudesse ganhar escala. E foi assim que surgiu a ideia de escrever a coleção de livros infantis ‘Habilidades para a vida’, junto com a Isabela Ferreira e a Juliana Maltoni. Muito no sentido de pensar como nós poderíamos deixar registradas essas habilidades de uma forma autoguiada. Porque a biblioterapia é uma forma autoguiada na medida que oferece exercícios que pais, educadores e/ou terapeutas podem fazer junto com as crianças ou as crianças podem fazer sozinhas. Inclusive descobrimos que essas obras alcançam um resultado um tanto quanto inesperado, que é o de que, quando nós pedimos para os pais e os educadores trabalharem junto com as crianças, acabam sendo literalmente uma forma de alcançar duplamente os nossos objetivos. De um lado, no sentido de ajudar as crianças a serem psicoeducadas, a conhecerem, pensarem, exercitarem e desenvolverem essas habilidades. De outro, no sentido de ajudar os adultos de referência que fazem essa intermediação, que, embora não seja obrigatória, é altamente desejável. Esses livros, portanto, acabaram ganhando bastante interesse na área da educação, por exemplo, com os professores trabalhando o material em sala de aula com os alunos, e também na área de orientação de pais, em que são uma forma criativa de interação entre os cuidadores e as crianças. E ao mesmo tempo de psicoeducação e de desenvolvimento dessas habilidades tanto para as crianças quanto para seus pais.