ESTUDO DE CASO

No último domingo, dia 3 de novembro de 2024, Karel van den Bergen ouviu sua última “sinfonia”. Ex-padre, professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), filósofo, linguista, pianista e violinista que ajudou a fundar a Orquestra de Câmara da UFES e a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, ele faleceu nesta terça-feira, dia 5 de novembro, aos 105 anos, de causas naturais, em sua casa em Brumadinho, Minas Gerais. No último domingo, o músico Marcelo Penido Ferreira da Silva, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tocou uma música para o filósofo que estava em pré-coma, que teve uma reação surpreendente, que mostra a importância da música na saúde ao longo da vida e dos Cuidados Paliativos.

Logo após passar dos 102 anos, mesmo executando ao piano quase todos os dias Cravo Bem Temperado, de Bach, sua memória ligada à linguagem começou a ficar fraca, comunicava-se mais em holandês, sua terra natal. Ele se naturalizou brasileiro na década de 1970, quando atuou como padre no Rio de Janeiro, chegando a ser preso na Ditadura devido à uma homilia sobre liberdade. “Os coletores de lixo do Rio de Janeiro ficaram revoltados quando souberam da prisão do padre ‘Carlos’, como me chamavam em português (risos). Então, eles fizeram uma greve com manifestações pela cidade”, diz Karel, quando tinha 101 anos, em entrevista a Sidemberg Rodrigues, ex-executivo de comunicação da ArcelorMittal em Serra (ES) e professor, escritor, palestrante, artista e defensor da Sustentabilidade em Seis Dimensões, incluindo a cultural e a espiritual, cuja elaboração teve a participação de Karel.

“A imprensa repercutiu. Acho importante isso, quando a imprensa é a imprensa, em seu papel social, pode ser decisivo! As notícias acabaram ganhando notoriedade internacional. Então, a rainha da Holanda, na época a Sra. Beatriz Armgard, escreveu uma carta de próprio punho para o governo brasileiro, exigindo explicações e isso foi bastante noticiado. Então me soltaram”, conta Karel.

Ao som da Harpa

Na última semana de vida ele estava oscilando entre a lucidez e a sonolência, respondendo pouco aos estímulos, quando no último domingo o harpista Marcelo o visitou com um arranjo para o Hino Nacional da Holanda. Para surpresa de todos, Karel acordou e ficou sentado ouvindo ao que seria sua última sinfonia ao vivo. “Só a música importa”, dizia Karel ao seu amigo Sidemberg, que entrevistou o músico e filósofo em 2020, e publicou um texto em outubro daquele ano na coluna do seu perfil no Linkedin.

“A música foi sempre muito importante na vida do Karel, desde criança”, explica Maria Luísa Carvalho van den Bergen, há 54 anos parceira do músico e filósofo, que deixou de ser padre quando atuava numa paróquia em Muriaé, em Minas Gerais, e conheceu Luísa. “Eu acho que ele aprendeu a letra junto com as notas, quando ele era criança. E desde pequeno tocou na banda e cresceu com toda a musicalidade junto com a família dele. E que, apesar de estar com 105 anos, ele ainda arriscava a tocar sempre o que ele conseguia, diariamente”, explicou-me Luísa, em entrevista na segunda-feira, dia 4 de novembro.

“Casei-me com um intelectual que era o pároco da minha pequena cidade (Muriaé – MG), Quando ainda era o ‘padre da cidade’, ele confessava minha família. Assim entrou para a família conhecendo alguns ‘pecados’. O mais interessante é que minha vida com ele foi maravilhosa, mesmo ele tendo vinte anos a mais que eu”, explicou Luísa, artista e escritora, ao citar fatos curiosos de sua vida, em entrevista a Sidemberg, publicada em maio de 2022.

“Com certeza a música tem um papel fundamental no processo de cura, seja ele de qualquer enfermidade. Eu vejo isso no dia-a-dia porque convivo com o pessoal da Musicoterapia na escola da UFMG, e eles têm um programa muito forte, muito sólido, de uns 10 anos”, diz o músico Marcelo, que conheceu Karel há um ano. “Quando comecei a tocar a música para ele, ele mudou, assim, sabe? Ele deu um despertar, a própria Luísa e a outra filha dele, a Carla, que estavam lá com as cuidadoras, ficaram muito impressionadas”, diz ele, explicando que sua atuação como músico é diferente da ação de um Musicoterapeuta, que utiliza a música como forma de tratamento, mas nem sempre seguindo padrões do que conhecemos por canção.

A arte de se despedir

Vista com preconceito até hoje por alguns médicos, a área de Cuidados Paliativos vem ganhando espaço no Brasil, apesar de ainda exigir avanços. A consciência de que não haverá tratamento capaz de curar uma pessoa deve se seguir a uma série de cuidados para preparar família e paciente para a morte, que pode compreender uma equipe multidiscisplinar, com médicos e terapeutas.

Uma das principais defensoras de Cuidados Paliativos é a médica Ana Claudia Quintana Arantes, escritora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver – E um excelente motivo para se buscar um novo olhar para a vida” (Editora Sextante). Neste livro belíssimo, Ana Claudia defende que, antes de nos assustarmos com a morte, devemos aproveitar a vida até o último momento, de forma consciente e plena. Ela também critica a visão do médico de ter foco na doença e não no paciente, algo que causa muito mal estar em momento em que não se há remédio para a finitude da vida.

No livro, ela usa a metáfora oriental sobre os quatro elementos da natureza (terra, água, fogo e ar) para abordar o processo de morte. A terra simboliza a perda de nossos músculos e força física; a água, a desidratação; o fogo, o momento no qual as células “percebem” que estão próximas do fim e trabalham ao máximo, como naquele momento em que o paciente apresenta repentina melhora.

“Terminado a dissolução do fogo, o encontro com sua essência, a pessoa descobrirá o sagrado que mora no mais profundo espaço dentro dela. Nesse espaço mais profundo e sagrado está o sopro vital”, explica a médica, correlacionando-o ao elemento ar, que começa a se dissolver. “A pessoa que morre está nua, liberta de todas as vestes físicas, emocionais, sociais, familiares e espirituais. E, por estar nua, consegue nos ver da mesma forma. As pessoas que estão morrendo desenvolvem uma habilidade única de ver.”

Musicoterapia

Ao ouvir a música do harpista Marcelo, talvez Karel estivesse no momento da dissolução do fogo, buscando encaminhar toda a sua energia para aquele momento sublime, embora a família tivesse plena consciência que ele estava se despedindo, como revelam sua esposa em entrevista na segunda e sua filha Luciana Bergen, médica clínica geral, em mensagem às cuidadoras de seu pai, compartilhada com a reportagem.

E a música, muitas vezes, tem papel essencial nos cuidados paliativos. Segundo o musicoterapeuta Daniel Braga Lima, a música tem um poder muito grande de movimentar nossas emoções, resgatando sentimentos, memórias, lembranças e sensações que podem ser benéficas não apenas para o paciente, mas também para a família, que está igualmente em um processo de transição nessa delicada fase da vida.

Ao ver o vídeo da reação de Karel ao ouvir a harpa que circulou entre amigos por whatsapp, Braga Lima identificou como é importante o efeito que o som proporcionou para todos, inclusive as filhas. E o musicoterapeuta lembra que o harpista apresentou uma composição com forte vínculo com o paciente, trazendo as sensações de sua terra natal.

O potencial da música

“A gente sabe que a pessoa em coma, muitas vezes, ela tem acesso a sons. Então se você conversa com ela, ela vai escutar. A música tem o potencial pra despertar memórias e trazer essa reação para o corpo. Na minha opinião, pode ser um potencial muito grande para o paciente e também para a família. Quem está fazendo a transição não é só a pessoa, mas quem convive com ela. Então se você conhece a história da pessoa, a memória da pessoa, conhece um pouco, entende que existe uma identidade cultural, musical, uma identidade pessoal, sonora, pessoal, você pode usar esse conhecimento a seu favor”, afirma Braga Lima. Ele explica que, no entanto, sem o conhecimento da história do paciente, a música pode ter efeito contrário, gerando angústia, tristeza e outras emoções negativas.

Mas a última “sinfonia” que Karel ouviu reflete uma vida toda dedicada à arte, à cultura e a filosofia, que vai muito além de uma vida extraordinária, vivida plenamente em meio à família, músicos, alunos. Revela, também, o quão importante é o cuidado com essa nossa única verdade, que a todos nos espera, para qual precisamos estar plenos quando esse momento chegar. Por isso, a área de Cuidados Paliativos merece cada vez mais atenção da sociedade e de governantes, pois é onde há a síntese de nossa vida. “Para mim, não existe nada mais sagrado do que estar ao lado de quem está morrendo. Porque não haverá a próxima vez. Independentemente da religião, se tem ou não tem, nessa vida morremos só uma vez. Não tem ensaio”, conclui a médica Ana Claudia, na página 101 de seu livro. Para quem só a música importava, a longevidade de Karel mostra que o som e o amor são a receita de uma vida plena e uma passagem digna ao plano espiritual.

Crédito imagem – Érica Dias.