O número crescente de crianças com autismo vem gerando questionamentos sobre os motivos. Trata-se é um transtorno do neurodesenvolvimento que engloba uma variedade de sintomas e graus de severidade e uma série de condições caracterizadas por algum tipo de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem e por comportamentos repetitivos. Suas variadas formas e intensidades de manifestação, assim como a falta de investigações detalhadas, podem conduzir a erros de diagnóstico e tratamentos inadequados.

Nesta entrevista, o tema transtorno do espectro autista (TEA) é aprofundado pela neurocientista Emanoele Freitas, especialista em psicopatologia e neurodesenvolvimento. Ela também é psicanalista clínica, psicoterapeuta ABA (Applied Behavior Analysis), homeopata e está cursando graduação em biomedicina e pós-graduação em ortomolecular. É autora dos livros ‘Mediação escolar: recriando a arte de ensinar’ e ‘Transtornos do neurodesenvolvimento’, pela editora WAK.

O que é o transtorno do espectro autista e como ele se manifesta?

A primeira vez que li sobre autismo foi o significado da palavra no dicionário, em que está escrito: “Polarização privilegiada do mundo dos pensamentos, das representações e sentimentos pessoais, com perda, em maior ou menor grau, da relação com os dados e as exigências do mundo circundante”. (Oxford Languages). Trazendo para os aspectos psiquiátricos, autismo é uma condição caracterizada por três eixos de prejuízo em que ocorrem os sintomas até os três anos de idade; em geral, o quadro fica mais acentuado aos dois anos e três meses em diante.

Os prejuízos relacionados ao autismo são comprometimento na comunicação e interação social, padrões de comportamentos restritivos e repetitivos. Isso no que tange a análise de base no DSM-5, mas atualmente os estudos vêm apontando para fatores genéticos, ambientais, entre outros. Ainda não temos uma etiologia específica, mas, como abrange uma série de fatores, foi designado como espectro.

Cada pessoa tem sua particularidade quanto aos sintomas, e isso já é um ponto de observação quando se vai fechar o diagnóstico. Por isso, foi classificado por níveis e graus de comprometimento, sendo nível leve, moderado e severo e, dentro deles, seus prejuízos associados, com deficiência intelectual ou não e com prejuízo na comunicação verbal ou não. Mas isso é só a ponta do iceberg quando se fala de uma patologia tão abrangente.

Como é o cérebro de pessoas com TEA em comparação ao cérebro de quem não tem?

Os estudos estão avançando em relação ao cérebro de uma pessoa com TEA. O que se pode descrever atualmente é que o cérebro é mais rápido em certas áreas e mais lento em outras. Por exemplo, áreas como o cerebelo, o sistema límbico e o hipocampo apresentam, em alguns casos, uma distorção no funcionamento. Variações químicas nos neurotransmissores dopamina, noradrenalina e adrenalina também podem apresentar algumas alterações.

O exame de imagem que hoje traz mais informação é a RMI (ressonância magnética por espectroscopia de prótons), pois analisa em conjunto com a parte da anatomia as funções químicas cerebrais. Isso vem possibilitando uma melhor avaliação do quadro e dos pontos mais afetados em cada pessoa.

O que já se sabe sobre as causas do TEA e o que ainda é preciso avançar nesse sentido?

Em relação ao autismo, ainda são necessários muitos estudos. Ainda não se tem uma etiologia específica ou um fenótipo que possa esclarecer o que está acontecendo, mas a linha principal é a genética. Além de fatores relacionados à gestação, como, por exemplo, infecções por patógenos, baixa vitamina D e problemas sistêmicos, que podem afetar o desenvolvimento neurológico fetal e, com isso, prejudicar seu pleno funcionamento.

Na genética, fatores como alteração nas mitocôndrias podem alterar também o desenvolvimento. E em linhas mais tênues, temos estudos relacionados aos metais pesados, o que, ao meu ver, está interligado a todos, pois, tanto na gestação quanto após, os metais pesados podem acarretar toxicidade e também atingir diretamente o pleno funcionamento mitocondrial.

Os estudos estão avançando, mas, a meu ver, se tornou muito comum, em dados gerais, só dar o diagnóstico sem investigar as causas, o que dificulta bastante encontrar pontos-chaves para o autismo, seja ele de qual nível for. A investigação deveria ser a priori no que tange o autismo e, com isso, ampliar as frentes de pesquisa.

Como é feito e quais as principais dificuldades ainda existentes no que diz respeito ao diagnóstico correto do TEA?

Atualmente não se faz uma linha de investigação mais aprofundada. O diagnóstico ainda é feito de forma observacional por muitos profissionais, quando, na realidade, deveria ser uma investigação. Temos mais de 29 patologias que se parecem com autismo ou possuem alguma característica autística, mas não são autismo. Investigar leva tempo e muito estudo, sim, mas é de extrema importância. Atualmente executo nas avaliações tanto a investigação clínica quanto a execução dos protocolos e nove entre dez pacientes apresentam alterações metabólicas que precisam ser tratadas antes mesmo de uma terapia, pois os sintomas são diretamente agravados por eles. Tem pacientes com alterações por metais pesados, outros com alteração genética, outros com alterações hormonais e que nunca foram tratados nessas questões, pois só viam o quadro do autismo. Com isso, os resultados no que diz respeito ao seu desenvolvimento eram mais lentos e, em alguns, casos nem surtiam efeito. E eu ouvia muito dos pais: “Por que ele(a) regride tanto?”. Não é que regredisse, é que o ponto crucial não estava sendo tratado.

Como é feito e quais as principais dificuldades ainda existentes no que diz respeito ao tratamento do TEA?

O tratamento do TEA não é só medicamentoso, engloba também as questões alimentares (e não estou me referindo a intolerâncias ou alergias, que abrangem outra patologia que não autismo), as terapias, a conscientização familiar e das pessoas que irão lidar diretamente. São diversos fatores interligados. Costumo falar que se monta uma rede em torno da pessoa com TEA, pois todos são afetados. Mas principalmente a orientação e o esclarecimento aos familiares da patologia, do nível que a pessoa apresenta, isso é de suma importância no tratamento, pois a família é o principal eixo, a base daquela pessoa. E se ela não estiver firme e consciente, o processo se torna mais demorado e pesado, o que também abrange a questão financeira. Devemos ter consciência de que não é toda família que pode arcar com custos elevados de tratamento. Já atendi famílias com listas de terapias imensas, sendo que não tinham condição nem do básico, o que trouxe desespero a elas. Autismo não é assim. Quando se tem uma investigação, se sabe realmente qual é a linha de ação inicial e o planejamento futuro conforme a pessoa vai se desenvolvendo.

Como saber se um adulto tem TEA (quando não houve o diagnóstico na infância)?

Essa parte é ainda um grande e complexo processo. Vejo pessoas se colocando como autistas por testes feitos na internet. Autismo é uma patologia complexa e que tem suas especificidades durante toda a vida da pessoa, não existe cura para autismo, existe tratamento. Então não tem como burlar os sintomas. Quando o adulto tem TEA, ele sempre teve, os sintomas já estão lá, as dificuldades, em maior ou menor grau. Mas também existem outras patologias que afetam na infância e que passam despercebidas. Existem outras que só irão se manifestar a partir dos 15 ou 16 anos e outras que seus gatilhos ocorrem aos 25 anos. Todas são neurológicas como o autismo, mas cada uma com sua particularidade. Por isso, retorno a falar sobre a investigação. No adulto o processo não é diferente de uma criança. Os exames e os protocolos precisam ser utilizados, o quadro precisa ser avaliado para se chegar a um diagnóstico. E é preciso tratamento nas áreas que mais afetam o paciente, sempre buscando a qualidade de vida.

Por que há um número cada vez mais elevado de crianças com diagnóstico de TEA? E existe alguma estatística a respeito?

Hoje se busca mais por avaliação, por médicos. As pessoas estão mais conscientes e não há tanto tabu como existia antigamente. Então os números para várias patologias e transtornos aumentaram, não só do autismo. Mas atualmente o TEA é a que mais cresce. Na prática do dia a dia, sendo bem direta, muitos têm comportamento autístico, mas são de nível secundário, pois possuem outra patologia principal. Entretanto, no contexto, recebem laudo como autistas. Recentemente, recebemos da Organização Mundial da Saúde (OMS) novos números sobre o autismo: a cada 36 crianças, uma é autista. Há menos de quatro anos, era uma a cada 55 crianças. A meu ver, esses números vêm aumentando por fatores mais específicos e complexos que envolvem muito da nossa nova realidade de vida, começando com a gestação e o preparo para tal, a correria do dia a dia, o estresse, a poluição, a alimentação, tudo está envolvido com o aumento dos quadros de autismo no mundo. Para se ter uma ideia, a estatística de sepse neonatal (não fatal), que é uma das principais linhas de investigação que sigo, é de 75,42 por cada mil nascidos vivos. Esse número é extremamente alarmante, pois é o que mais leva ao atraso de neurodesenvolvimento da criança.

Como as escolas brasileiras estão preparadas e/ou se preparando para atender alunos com autismo? E quais são os principais obstáculos ainda existentes nesse sentido?

Atualmente ainda enfrentamos muitas dificuldades escolares, mas houve muita melhora. As pessoas estão estudando mais, buscando mais. Mas o que sempre digo é que precisamos nos lembrar de que estamos lidando com uma patologia extremamente ampla, o que funciona com um não funciona com o outro. Lidamos também não só com as questões acadêmicas, precisamos lidar com a família e com suas dificuldades também. Entrave normal de ocorrer é quando a família ainda não tem plena consciência e orientação da real condição da criança e aí se toma como parâmetro o desenvolvimento de uma criança típica, quando o desenvolvimento da criança com autismo será um pouco mais lento em alguns casos. Ou na escola, que, por ter um laudo de autismo, já rotula a criança como se fosse incapaz. São controvérsias e tabus que, aos poucos, estão sendo quebrados. Se todos trabalharem em conjunto, família, escola, terapeutas, médicos, muitos obstáculos irão acabar, pois cada um terá a real visão do desenvolvimento daquela criança ou daquele jovem.

Como os pais/cuidadores precisam se preparar para o desenvolvimento saudável de seus filhos com TEA e quais os principais obstáculos que ainda precisam ser superados?

Por mais que tenhamos informação nos dias atuais, o baque ainda é doloroso quando chega o diagnóstico. Mas quando se explica bem e se orienta, isso é minimizado. Os primeiros a serem preparados, sem dúvida alguma, são a família, os pais, os cuidadores. É de suma importância. Costumo falar: pais saudáveis, filhos saudáveis. E é uma realidade, pois, quando os pais estão estruturados e realmente aceitam tal condição, as questões fluem mais fáceis, a criança se desenvolve dentro do seu tempo e sua condição. Sempre irei bater na mesma tecla de treinamento parental, treinamento familiar. Se for necessário, oriento o tratamento primeiro dos pais e depois da criança caso a família não possua condições financeiras para executar em conjunto. Mas não podemos deixar os pais largados, pois eles são o pilar, a base de tudo nesse processo.

O principal obstáculo é social mesmo. Algumas frases de que não gosto, e falo isso como mãe de um autista severo, são “você é uma guerreira”, “nossa, como você é forte, eu não aguentaria” e muitas outras que já ouvi e sei que muitas mães e pais escutam. Como se fosse verdade, o que não é, você ter que apresentar algo que a sociedade acha que você é. É muito doloroso. Por isso, falo sobre o olhar para os pais. Não fomos escolhidos ou coisa parecida, somos pais e pronto. Tem deficiências que se apresentam na infância e tem outras que surgem na vida adulta. Não podemos classificar uma pessoa como forte porque ela está seguindo em frente. Ela precisa de ajuda tanto quanto o(a) filho(a) para seguir em frente, e é se cuidando emocionalmente e fisicamente que isso irá acontecer, não esquecer de si mesmo para continuar lembrando dos que precisam.

Como a sociedade ainda precisa se preparar no que diz respeito à inclusão e à melhor qualidade de vida de pessoas com TEA?

Não sou de julgar a sociedade. Eu olho para dentro de casa. Quando nossa postura muda, as pessoas ao nosso redor mudam. Preconceito existe em qualquer situação, com deficiência ou sem deficiência, bonito ou feio, alto ou baixo, magro ou gordo. Eu passei a ver como parte do ser humano julgar, mas faz parte de mim mostrar outra realidade e lutar por ela. Inclusão é uma palavra linda em seu contexto, mas demanda ação de todos os envolvidos. Inclusão é aceitar a pessoa como ela é, do jeito que ela é, não que ela siga o contexto de todos para estar inserida. É respeitar as especificidades de cada um e fazer o melhor para que se tenha qualidade, seja na escola, seja em casa, na rua, seja onde for. Qualidade e não quantidade é o que se busca na inclusão.

As políticas públicas existem, as leis existem, não precisamos de mais nenhuma. O Brasil é um dos primeiros em leis para a pessoa com deficiência, mas quem fiscaliza e faz elas serem cumpridas somos nós. A conscientização fazemos todos os dias, todas as horas e comemorando o 2 de abril, que é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. E me passa um filme na mente todos os anos sobre as lutas árduas que muitos de nós enfrentamos antes da lei nº 12.764/2012 e do decreto nº 8.368/2014. Hoje temos a lei a nosso favor, mas precisamos também fazer a nossa parte. A inclusão começa dentro da nossa casa.