O Brasil é o segundo país em número de cirurgias bariátricas no mundo, estando atrás apenas dos Estados Unidos. “Esse é um dado que nos chama atenção enquanto uma questão de saúde pública e para pensarmos em estratégias de prevenção e promoção à saúde”, afirma a psicóloga clínica Martina Sobral Barreto. Nesta entrevista, ela aprofunda as causas e consequências dos transtornos alimentares e também o papel da psicologia no pré e pós-operatório de intervenções cirúrgicas bariátricas e metabólicas.

Atuando com a terapia cognitivo-comportamental (TCC), Martina compõe uma equipe multiprofissional que atende pacientes nas fases pré e pós-operatórias de cirurgia bariátrica ou implante de balão intragástrico e segue o acompanhamento deles em consultório. Também é especialista em psicologia hospitalar e possui experiência com pacientes em cuidados intensivos, doenças crônicas e cuidados em fim de vida.

Os transtornos alimentares, especialmente o da compulsão alimentar, são casos frequentes em seu consultório. Fale sobre as principais causas.

É muito comum recebermos pacientes que nomeiam episódios de descontrole alimentar pontuais, ou eventuais, como compulsivos. No entanto, um olhar sensível e individual sobre cada ser humano e sua relação com o comportamento alimentar faz-se necessário. Quando falamos em transtorno em saúde mental, lança-se uma máxima: não há uma única condição clínica que justifique esse quadro. Existem múltiplos fatores que levam um sujeito a desenvolver quadros psicopatológicos. Genética, fatores ambientais, habilidades sociais, gerenciamento e regulação emocional, história de vida, hábitos familiares, vulnerabilidades psíquicas, quadros psicopatológicos prévios não diagnosticados.

Com os transtornos alimentares, não seria diferente. Vivemos uma sociedade com a mentalidade das dietas restritivas, em que alimentos são percebidos sob a ótica da dicotomia (alimentos bons x ruins) ou ainda tiranizados (“porcarias”, “besteiras”, “dia do lixo”). Estudos científicos coesos e a escuta clínica nos mostram que esse tipo de estratégia não se sustenta a longo prazo e, ainda, estamos correndo o risco de potencializar o ciclo de frustração, sentimento de fracasso e incapacidade dos nossos pacientes.

Quais as principais características dos transtornos de compulsão alimentar?

As principais características dos transtornos de compulsão alimentar são episódios recorrentes da ingesta de uma quantidade de alimentos muito superior ao que a maioria dos indivíduos seria capaz de comer, em um mesmo período e circunstâncias semelhantes, acompanhados da sensação importante da perda de controle. A frequência também é um critério diagnóstico considerado, colaborando para o aumento do peso corpóreo, tendo em vista que ocorrem episódios ao menos uma vez por semana durante três meses segundo a American Psychological Association (APA).

Comida é afeto. Não podemos dissociar. E muitas pessoas encontram no alimento um alívio, uma sensação de “merecimento” após um dia difícil, fuga ou, frequentemente, não conseguem fazer associações com relação aos episódios e ao momento em que os mesmos ocorrem, tamanha desconexão com o seu corpo (e sensação de saciedade, por exemplo).

Nos episódios compulsivos, os pacientes podem alternar entre doces e salgados, alimentos que não são do seu paladar habitual, crus, congelados ou buscar, num movimento desenfreado, alimentos vencidos, inclusive. Habitualmente o fazem de maneira escondida das demais pessoas que convivem. Sentimentos de vergonha, culpa, raiva, frustração, e de serem “reféns” são comuns nesses pacientes.

De que forma a psicologia podre contribuir na prevenção e no tratamento dos transtornos alimentares?

Percebemos aqui um nível grave do sofrimento humano. Será que frases repetidas como “isso é preguiça”, “é só fechar a boca”, “é só comer menos” se encaixam quando lidamos com pessoas que passam por esses quadros? O trabalho da psicologia, nesse sentido, é de compreender a relação que esses sujeitos estabelecem com a comida, qual o lugar ela ocupa, entendendo quais são os pensamentos disfuncionais associados e crenças mantenedoras desses comportamentos não saudáveis. Podemos pensar também no auxílio e fortalecimento de recursos cognitivos e comportamentais alternativos, técnicas para aquisição de novos hábitos, como o automonitoramento, manejo de contingências, desenvolvimento de habilidades sociais e regulação emocional, aumento de autoeficácia e prevenção à recaída.

Em que situações físicas e psicológicas do paciente são indicados cirurgia bariátrica e/ou implante de balão intragástrico?

A indicação para as intervenções cirúrgicas bariátricas e metabólicas devem levar em conta, especialmente, o histórico de vida de cada sujeito, com uma avaliação individual e pormenorizada. Existem critérios estabelecidos e alinhados cientificamente, embasados em documentos norteadores do Consenso Bariátrico. IMC, idade, comorbidades, histórico da doença, patologias associadas, tentativas prévias de tratamentos frustrados ou que não foram possíveis de serem mantidos a longo prazo. No entanto, destaca-se a importância de um trabalho realizado por uma equipe composta por, em geral, médicos (endocrinologista, cardiologista), cirurgião, nutricionista, psicólogo e, eventualmente, psiquiatra.

Do ponto de vista psicológico, abordamos algumas questões importantes. Um dos primeiros questionamentos em entrevista psicológica é sobre a história da obesidade no sentido de como a doença se instalou. Infância, adolescência, algum tratamento médico, o gestar para as mulheres ou uma história que quando contada não se sabe ao certo o início. A escutatória da relação com esse corpo como palco de sofrimento humano precisa de notoriedade em função das perdas reais e simbólicas, do preconceito, isolamento social, quadros psicopatológicos prévios e/ou potencializados pela obesidade diante das frustrações das diversas tentativas de emagrecimento, impacto nas atividades do dia a dia (mobilidade por exemplo), dependência do outro e interferência nas relações intrapessoais.

O Brasil é o segundo país em número de cirurgias bariátricas no mundo, estando atrás apenas dos Estados Unidos. Esse é um dado que nos chama atenção enquanto uma questão de saúde pública e para pensarmos em estratégias de prevenção e promoção à saúde.

Qual o papel dos psicólogos no pré-operatório?

A avaliação é, antes de qualquer outra coisa, um momento de acolhimento. Abordo com meus pacientes questões que vão além do IMC, pregas, percentuais, relatórios. Números que apontam e marcam. Lugares onde eles não cabem. Vejo pessoas com sofrimento genuíno. Anos de sentimento de frustração. Pessoas extremamente bem-sucedidas em diversos âmbitos da vida, mas que se sentem fracassadas por não conseguirem emagrecer. Proponho um olhar mais gentil diante do processo. A cirurgia bariátrica não é a cura da obesidade. Ninguém entra em uma sala de intervenção em um corpo obeso e sai magro. O processo é difícil e precisamos, juntos, torná-lo possível.

Avaliaremos juntos o padrão de comportamento alimentar, como essa pessoa se relaciona consigo mesma e com o mundo; é através da comida? O alimento faz função de pilar central de quem ela é? Sem a comida, o que sobra? Isso nos indica qual a função do alimento para esse paciente, de modo individual, com o objetivo de elaborarmos um planejamento terapêutico e o desenvolvimento de novos padrões e repertórios diante da vida e, especialmente, dos momentos adversos.

É importante entender quais são as crenças e os pensamentos disfuncionais desse paciente, favorecendo uma relação mais saudável com o se alimentar e com o seu corto, por vezes tentando reduzir comportamentos punitivos ou compensatórios, ressignificar a função de prazer do alimento (prazer x necessidade), realizar psicoeducação sobre os tipos de fome (física, específica ou emocional), avaliar e estabilizar quadros psicopatológicos prévios, verificar motivação para a submissão do procedimento.

Onde a família do paciente se encaixa nesse contexto?

A avaliação com a família também é um momento muito importante, tendo em vista que esse paciente precisará de suporte social e expectativas alinhadas junto à equipe. Entrevistamos a família para avaliar seu ponto de vista sobre a doença do paciente, com o objetivo de conscientizar sobre o quadro atual, avaliar o conhecimento que todos têm sobre o procedimento cirúrgico e desdobramentos no pré, peri e pós, sobretudo fases da alimentação – que por vezes pode impactar na dinâmica da alimentação da casa. A família é aliada da equipe com o objetivo de resultados mais satisfatórios e de um processo mais possível de ser vivenciado.

E qual o papel dos psicólogos no pós-operatório?

O pós-operatório será trabalhado de modo individualizado. Por mais que tenhamos elaborado um planejamento terapêutico, precisamos considerar que cada um corpo foi atravessado de muitos modos e suas respostas são singulares, as fisiológicas, as subjetivas, as emocionais. O paciente precisa sentir segurança de que existe uma equipe multiprofissional para assisti-lo nessas esferas diversas e acolher os seus medos, dúvidas, dores e ansiedade do que está por vir. Afinal, serão etapas. A psicologia participa de cada uma delas entendendo que mente e corpo não se separam e as nossas emoções estarão presentes em todas elas, seja na adequação da restrição alimentar inicial, na ansiedade pela perda de peso, seja nos pensamentos antecipatórios com relação às cirurgias reparadoras, por exemplo.

Nosso fazer inclui trabalhar a autonomia e o papel ativo no paciente no seu processo a longo prazo, auxiliar nas mudanças do novo padrão e comportamento alimentar, lidando com as dificuldades de adequação à dietoterapia, ressignificar a função do alimento na vida paciente – entendendo que ainda pode ser prazeroso, trabalhando aspectos de pensamentos punitivos, extremamente restritivos ou catastróficos, acompanhar deslocamento da compulsão, estabelecer objetivos e metas realistas para a perda de peso e mudança de estilo de vida, trabalhar a mudança de mentalidade para a adequação e aceitação da nova imagem corporal, acompanhar a reintegração social e adequação da autoestima e autoconceito.

Abrir um novo olhar sobre o que é ser saudável é de extrema importância. E, certamente, não conseguimos isso tão rapidamente. Hábitos, estilos de vida que acompanharam aquele sujeito por tantos anos precisam ser considerados de uma maneira leve para que seja sustentável. É preciso aprender e reaprender a falar o que se pensa em vez de comer o que se sente. E é para isso que estamos aqui.