A psicóloga Maria Helena Pereira Franco, mestre e doutora em Psicologia Clinica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), com pós-doutorado na London School of Hygiene and Tropical Medicine e na University College London, na Inglaterra, comenta as dificuldades que envolvem a morte e o luto.  A pesquisadora é professora titular da PUCSP, no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clinica. Ela é também fundadora e coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto e ainda supervisora clinica no aprimoramento em psicoterapia para pessoas enlutadas, na Clinica Psicológica Ana Maria Poppovic, da mesma universidade.

Segundo Freud, nosso inconsciente não acredita em sua própria morte, comporta-se como se fosse imortal. A perda por morte pode trazer um conflito de ambivalência, a partir de estados obsessivos, que oscila entre sentimentos opostos, como amor e ódio. 

A renúncia do amor ao objeto, para o melancólico, é o perigo da extinção do próprio amor. Por isso, Freud observou que o enlutado perece punir o objeto perdido por meio da autopunição. “É uma vingança do objeto original através da própria doença. Assim, dá-se curso à hostilidade para o objeto, mas de forma indireta”, escreveu o psicanalista.

O homem medieval encarava a morte como natural, devido à influência da religião. A morte tornou-se tabu a partir do século 19, com a “morte de Deus”. Então, a ciência se separou do sobrenatural, dando espaço a um sofrimento inesgotável. Como o processo de industrialização, a morte representa um cessar da vida produtiva.

Na pós-modernidade, assistimos à dificuldade em aceitar limitações da vida. Segundo Franco, com os avanços científicos, que são postos à disposição da manutenção da vida, constrói-se a ideia subjacente de que a morte é um fracasso que deve ser evitado a todo custo.

A psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, em sua obra “Sobre a Morte e o Morrer”, mostra que o processo de luto se desenvolve em estágios: fase 1- o enlutado tem sensação de choque e costuma duvidar que a morte realmente ocorreu, é a negação da morte; fase 2-  a pessoa deseja o retorno da pessoa falecida, ela experimenta dificuldades de concentração em outros assuntos que não sejam a morte do falecido, há muita raiva, choro e dor; fase 3- a pessoa entra em desorganização e desespero, é quando surgem as dificuldades de adaptação, ocorre muita tristeza; fase 4- é a fase de adaptação à perda, o enlutado precisa construir uma nova identidade, além de estabelecer outras relações.

Para a Franco, entretanto, os estágios do luto não são tão bem determinados, tampouco lineares. Segundo ela, o processo de luto envolveria um processo dual, com alternância entre o sofrimento psíquico e a restauração, até que haja a retomada da vida cotidiana, com a possibilidade de crescimento do enlutado.

A pesquisadora lembra que o luto não é uma questão a se “superar”, pois a perda não é obstáculo, mas sim uma experiência de um grande valor, importante na vida dos indivíduos. Portanto, o luto precisa ser vivenciado a partir da reconstrução do significado para a perda, que permite ao enlutado desenvolver outra concepção de si e do mundo.

O luto na infância pode provocar distúrbios psicológicos na vida adulta. Há uma associação entre trauma na infância – como perda de um dos pais, separação e abandono – e a presença de doenças mentais na fase adulta. A ausência de rituais de morte contribui para esse quadro.

Como a experiência do luto pode ser vivenciada em tempos de pandemia?

A experiência do luto tem sido muito mais difícil de ser experimentada na pandemia, porque parece que a crise sanitária não chega ao fim, contamos com o fato de que uma nova morte irá ocorrer. Então, o luto individual se transforma no luto coletivo, e esse coletivo nem sempre reflete o que individualmente se vive. Às vezes, existe uma lacuna entre o individual e o coletivo. E, para ser de fato coletivo, é necessário que o indivíduo se sinta pertencente àquele grupo, do contrário, não é um agrupamento de pessoas. O resultado disso é que aquelas mortes se tornam sem significado para o indivíduo. A experiência do luto também se torna mais complicada na pandemia pela dificuldade de realizar os rituais, os quais são necessários para construção de significado para aquela perda.

Alguns especialistas defendem que o medo da morte é a raiz de muitos sintomas e doenças psíquicas, como insônia, depressão, doenças psicossomáticas e obsessões. O que a acha disso?

O medo da morte é próprio daqueles indivíduos que não têm uma concepção de vida e morte além do concreto, além desse cotidiano previsível de todo mundo. Quando as pessoas não desenvolvem um sentido para a sua vida, seja por meio da filosofia, seja por meio da espiritualidade, essa falta de significado para a própria existência acarreta no medo do “não ser”, o medo de “deixar de ser”. Esse medo é simbolizado, muitas vezes, como representação da morte na forma de uma figura terrível, amedrontadora. Essas pessoas ficam, portanto, muito desagradadas em pensar no “deixar de ser”. Tornar-se memória, para elas, não é bom. Uma reflexão a partir da pandemia, com esse número expressivo de mortes ocorrendo tão próximo das pessoas, é que esse assunto deixou ser algo que não se aborda, que é uma definição para tabu. Ou seja, as pessoas se puseram a pensar na própria morte. Para concluir, atualmente, pensa-se na morte, embora as pessoas temam ser privadas de suas vidas, de seus projetos.

A morte permanece como um tabu. Por outro lado, tornou-se num show explorado pela mídia. Como encarar esse paradoxo?

Você pode mensurar quantas pessoas morreram hoje de Covid-19, quantas pessoas foram vacinadas ou quantas pessoas receberam alta. Por mais assustador seja, é essencial pensar na morte. Do contrário, nos privamos de uma experiência humana, que é fazer reflexões sobre nossa existência e condição de finitude. A mídia pode noticiar o que quiser, com a intensidade que lhe for conveniente, mas eu posso ter minha própria concepção sobre a minha morte, como eu gostaria de viver os últimos dias de vida, etc. Hoje o tema é historicamente menos tabu do que no passado devido ao número expressivo de mortes. É algo que as pessoas devem pensar a respeito.  

A dificuldade em se conscientizar sobre a morte é resultado de valores pós-modernos, uma vez que vivemos uma fantasia coletiva de vida eterna?

 Eu discordo que sejam valores pós-modernos que estão associados à fantasia de vida eterna. Essa ideia de vida eterna já foi mais forte em tempos anteriores. Atualmente, as pessoas são mais expostas a diferentes concepções, valores e crenças. As culturas são mais permeáveis, nós nos permitimos conhecer outros significados. Isso leva a uma reflexão que possibilita o entendimento de que as pessoas vão morrer. Os recursos da ciência (que não são democráticos), empregados no tratamento de doenças, trazem a ideia subjacente de que a morte é um fracasso, e isso sim é um pensamento pós-moderno. Tudo o que a ciência já construiu precisa ser colocado à disposição da manutenção da vida. Assistimos ao desenvolvimento científico sem precedentes, mas pessoas continuam morrendo, pois faz parte da natureza humana. Existe, portanto, um desapontamento quando as pessoas pensam de forma radical, tudo ou nada, e deixam de considerar sutilezas importantes acerca das considerações sobre vida e morte.

O ambiente natural da morte é substituído por UTIs. Qual o impacto disso na vida das pessoas?

Qual o ambiente natural de morrer? É em casa? Num quarto de hospital? UTI significa Unidade de Tratamentos Intensivos. Uma pessoa pode estar próxima da morte, mas poderá não se beneficiar de tratamentos intensivos para mantê-la viva.  Alguém que está próximo da morte precisa de cuidados para garantir qualidade de vida, para morrer sem sofrimento e sem dor e para que seus entes queridos possam perceber que esse processo se desenvolveu de forma natural. Já os cuidados paliativos não têm o objetivo de deixar a pessoa morrer, nem apressar a morte. Nesse caso, a morte será natural, ou seja, ela deverá acontecer a seu tempo. Mas a UTI não é o lugar para isso. Talvez os cuidados intensivos não sejam a melhor escolha no processo de morrer. 

Quais são os estágios pelos quais o enlutado passa até a superação da perda?

A concepção de que o processo de luto se desenrola em determinados estágios foi muito disseminada a partir dos estudos de Elisabeth Kübler-Ross. Porém, não entendo que o processo de luto se desenvolve em uma sequência de etapas lineares. Trabalho com ideia de um processo dinâmico que permite a construção de significado para aquela perda, que passa por viver a dor, a intensidade de dor e não estar muito disponível para realizar as tarefas cotidianas e, alternadamente, também estar numa outra condição em que o indivíduo possa responder aos chamados da vida, desenvolver as atividades do dia a dia que são da sua competência, ou seja, a restauração da vida. O processo dual entre esses dois domínios, do sofrimento psíquico à restauração, estão mais acordo com o encontro em minhas pesquisas. Esse processo dual não fala de sequência de fases, mas do movimento entre “me ver bem” e “me ver não bem”. Não é uma questão de “superar”, pois a perda não é obstáculo, mas sim uma experiência de um grande valor, importantíssima na vida das pessoas, e que precisa ser vivenciada. Não quer dizer que aquela dor não vai terminar, mas trata-se de uma possibilidade do enlutado crescer, desenvolver outra compreensão de si e do mundo. Portanto, é importante que o luto seja experimentado.

Qual o papel da religião e da fé no contexto de atenção à saúde de pacientes terminais internados?

A compreensão de algo que transcende o objetivo, o palpável, o concreto é muito importante para muitas pessoas, sobretudo para aquelas que já vêm por esse percurso, que já constroem um significado relativo à espiritualidade ou à determinada religião, que fazem os rituais, etc. Se isso faz parte do cotidiano da pessoa, é importante que ela tenha um lugar de consideração sobre a morte e tente entender o que está ocorrendo com ela. Não acredito que seja de algum resultado positivo que essa visão religiosa seja imposta ao sujeito. A pessoa poderá decidir se deseja um religioso próximo dela ou um amigo com quem possa compartilhar essas questões de caráter espiritual, pois faz parte do processo de viver e de morrer.

O luto pode ser vivenciado de duas formas: de forma mascarada ou sob forma de conduta mal adaptada. Qual a diferença?

 O luto é o processo natural para ser vivenciado quando há o rompimento de um vínculo. Há vários fatores para o luto ser expresso ou para ser adiado e inibido. Pode ser que o indivíduo viva seu luto sem conseguir apresentar uma linguagem para expressar a realidade que ele está experimentando. Pode, por exemplo, desenvolver uma doença, que é uma forma de significar aquela perda.  É algo importante para considerar. No luto mascarado, a pessoa pode passar uma falsa impressão de que ela não sofre. Retomando os conceitos de perda e da restauração, nesse processo dual, a pessoa que se apresenta como uma fortaleza, que aparenta estar bem, permanece na restauração. Não é a forma ideal de vivenciar o luto, pois ela pode estar escondendo aquela dor.  É preciso prestar atenção nisso, para não se chegar à negação de sofrimento, até que aquela condição se converta numa doença. No polo oposto, há o indivíduo que se torna apático e incomunicável, que também é outra forma de reação ao luto.