A meditação é uma prática pessoal que visa abrir o acesso à via da serenidade e do vazio interior. É importante assinalar que a meditação é um instrumento que prescinde de sua apropriação por vertentes religiosas.

As diversas práticas meditativas se inscrevem na tradição que abrange vertentes orientais e ocidentais multimilenares, numa trama complexa de relações. Quando falo em ocidental e oriental, me refiro a uma geografia abstrata, não inclusiva nem excludente. Assim, o nome Tao ganha aqui um significado genérico e sintético de vertentes que vão do Vedanta ao Zen-Budismo e a todo o leque atual de suas manifestações.

Já a vertente mística meditativa judaico-cristã se expande do nascente ao poente. Lendariamente, ela surge para a História há 3.800 anos com o Sêfer Yetsirá (Livro da Formação) atribuído ao patriarca Abram, criador dos fundamentos da Cabala. Outros momentos fundantes: o “Zohar”, de Shimon bar Yochai (séc. I) e os “Yechudim” (“Unificações”), do Rabi Isaac Luria, o Ari (séc. XVI).

Um fenômeno transcultural

É provavelmente através dos Essênios, sejam eles históricos, lendários ou míticos, que se prenuncia a bifurcação que levará a Jesus e à Mística Cristã, fontes essenciais e ainda despojadas do poder burocrático da instituição Igreja. Essa transmissão é retomada ininterruptamente por nomes como Juan de la Cruz, Teresa de Ávila, Jacob Boehme e Mestre Eckhart, citados por Bion.

Séculos depois, outra vertente conduz à mística-meditativa Sufi, de Maomé a Ibn-Arabi, Rumi e outros. Certamente, todas essas vertentes foram informadas pela cultura primordial africana, talvez via Etiópia, Núbia e Egito, e podemos encontrar práticas semelhantes nas Américas pré-colombianas e na Oceania. A meditação é, pois, um fenômeno transcultural, inerente ao ser humano, visando integrar à nossa usual vivência fragmentária do mundo uma visão transcendente totalizante.

A aproximação da Psicanálise

Não me proponho a exercitar articulações intelectuais e muito menos forçar uma integração entre Psicanálise e a Meditação, mas apenas sugerir aproximações possíveis – num outro nível de realidade – e projetar focos que possam iluminar e refletir suas especificidades, pois são absolutamente específicas as circunstâncias de Freud ou Bion por um lado e de Lao-Tse e Krishnamurti por outro. Proponho aproximações entre a atitude meditativa ou contemplativa, e a atitude de atenção flutuante, proposta por Freud, e o Rêverie, sem memória, sem desejo, sem entendimento, proposto por Bion para o analista em sessão.

Origem de Bion

Bion nasceu na Índia, colônia inglesa. Sua maternagem foi compartilhada pela aia hindu até seus oito anos, quando deixou esse velho continente. Como psicanalistas, sabemos bem como esses anos foram estruturantes; tomando em consideração essa impregnação do homem Bion pelo “pensar oriental”, penso que poderíamos compreendê-lo melhor. Nos esboços póstumos de “Cogitations”, vão aparecer explicitamente citações sobre o Tao, o Yin-Yang, o ideograma chinês (através do estudo clássico de Fenollosa) e também sobre o “Baghavad Gita”.

Tomando o Tao com um exemplo dessa filosofia prática, ela não se esgota na decodificação intelectual de I-Ching e dos textos de Lao-Tse, Chuang-Tsu e outros. Muitos dos sentidos dos textos referem-se às experiências vividas na mente-corpo de quem escreve, resultado de uma prática pessoal de meditação. Portanto, para compartilhar da essência do que está escrito é indispensável compartilhar da vivência pessoal da meditação. A compreensão pressupõe uma experiência comum – ou seja, uma iniciação. Reiterando as especificidades, penso que dá-se o mesmo na Psicanálise. A análise pessoal é a iniciação, a experiência comum, a cumplicidade. Em termos bionianos, o ser psicanalítico seria produto do ato de fé que o impregna a partir da iniciação.

A palavra usual para denominar essa volta para dentro, meditação, já nos coloca problemas. Ela se impôs pelo uso, é uma palavra bonita e a estética é indispensável. Meditação desperta, porém, reverberações de “pensamento”, que é exatamente o que ela não é. Ainda que pensamento mais solto, meditativo, cismarento: em português diríamos “devaneio”, em espanhol, “ensoñación”, em inglês, “rêverie”, derivado do original francês, também “rêverie”. Alegorias pensadas como sonhos de vigília. RÊVERIE que estende sobre nós sua penumbra de associações.

Curar e medir

Vale lembrar que meditação e Medicina derivam da raiz latina “Mederi” (curar e medir). Isto reflete uma visão da saúde (física e mental) com resultado de um estado de “justa medida” interna de todas as partes e processos.

O nome taoísta para essa prática meditativa é “Sentar na Calma”. Penso que ele define bem o que se pretende: alcançar um estado de serenidade. Esta é a condição inicial e básica para que algo mais aconteça. E como aferi-la? Pelo coração, privilegiado órgão sensorial de emoções. Sentir num nível corporal amplo que o coração está calmo, o peito vazio. Dar-se conta dessa serenidade possível, oposta, por exemplo, a uma sensação de cavalos em galope. A serenidade é a condição propiciadora e o silêncio é o instrumento para se atingir o vazio, finalidade da meditação. Esvaziar a mente da palavra sabida, criando um vácuo que atraia o que não se sabe. É como reinterpreto a Rêverie de Bion – um acolhimento propiciatório à criação do novo no outro (e em nós) a partir de uma postura vazia de pressupostos. Não nos apresentarmos saturados (sempre em termos bionianos) ante a palavra do outro, ou da nossa. O exemplo mais expressivo é o rêverie materno, uma capacidade de conter suas próprias ansiedades diante das ansiedades de seu bebê, e com isso se oferecer para contê-las.

Na procura desse vazio, experiencia-se a observação dos próprios pensamentos, de fora. Vamos acompanhando conforme passam por nós, sem maiores envolvimentos. Repentinamente, estamos vivendo dentro deles; fomos apanhados, nos perdemos. Tão subitamente como embarcamos, saltamos e nos sentimos novamente espectadores interessados no trem de pensamentos que passa. Um jogo sutil entre o pensador e os pensamentos.

A integração de nossos pedaços

Das pequenas pausas, nas passagens entre diferentes pensares, emerge o vazio. Percebemo-lo, registramos essa impressão insólita e nos habituamos devagar. Resta exercitar. Para isso, há muito caminhos, estilos originais, mas a finalidade é a mesma. Muitos se valem da própria palavra, um mantra, para neutralizar a palavra. Todos os caminhos são válidos quando o caminho buscado é a vivência de um “modo de ser” contemplativo.

Trabalhamos com pedaços de vidas alheias; para que possamos captá-los, devemos antes nos desapegar de nossos próprios pedaços, mesmo que na intenção – já é o bastante. O desapego propicia uma inserção equilibrada do homem no universo. Se concordamos que equilibrar as próprias energias é uma contribuição ao equilíbrio universal, esse efeito harmonizador se dará ainda mais fortemente no entorno próximo à pessoa – algo como um gradiente energético. Isto nos remete novamente à Rêverie de Bion, Holding de Winnicott e outras aproximações. Um equilíbrio – chamemos de energético interior – que o outro capta e sente como acolhimento. Dito de outra maneira, um equilíbrio interior menos instável antes os estímulos dos desequilíbrios exteriores.

A questão suscita inquietações. É viável para um analista assumir o “sem memória, sem desejo”, a não seletividade da atenção flutuante, o desapego de compreender (controlar?), apenas dentro do consultório, limitá-lo ao “setting” sem que esta atitude já tenha se originado e permeado antes toda uma atitude de desapego, no mundo? Desapego de compreender, de curar, de favores e desfavores…

Construções em análise

Ao postular o Inconsciente, Freud relativiza o Consciente, que perde assim sua importância totalizante e pode então ser repensado. De maneira semelhante, ele chega às suas “Construções em análise” visando criar alternativas para a história oficial, que determinou o analisando até então. Não pretende redescobrir a história verídica do outro, mas, sim, relativizar aquela que era julgada única e, com isso, expandir possibilidades. O que era tido como absoluto e, portanto, imutável, torna-se relativo e mutável. Desestruturam-se e reconstroem-se as relações estruturais entre fatos. É a função do KOAN – romper com o campo da lógica habitual para que o novo surpreenda. Assim também, a mudança catastrófica de Bion ocorre não nos conteúdos, mas nas regras de relação, nos vínculos. Talvez delas resultem vínculos mais desapegados.

O vazio mental pode ser pensado como um desapego aos pensamentos. Assim como o inconsciente rompe a identificação do homem a seu consciente, o vazio mental aponta para uma outra condição que relativiza o fluxo de nossos pensamentos; não nos confundimos mais com este fluxo, que se torna então menos importante e mais vivenciável.

Mensagens inconscientes

A atitude psicanalítica visa captar as mensagens inconscientes de seu analisando através de suas próprias mensagens inconscientes. Um sonho compartilhado.

Escutamos o que nos diz nosso parceiro no jogo psicanalítico, transitando entre o sonho infinito do Inconsciente e as demandas finitas de nosso consciente cotidiano.

Para fraseando Octavio Paz na sua introdução aos Haikais de Bashô: “O auge do instante contemplativo é um estado paradoxal: é um não ser, no que, de alguma maneira se dá o pleno ser”. (Plenitude do vazio).

E MAIS…

Origens históricas

O taoísmo é uma filosofia essencialmente prática e pragmática; sua meta é alcançarmos a paz interior integrando-nos a esse caminho natural, essa verdade imaterial que transcende suas manifestações materiais. Krishnamurti. Por sua vez, Lao-Tse é um grande pensador moderno que provém de outra linhagem filosófica milenar desenvolvida na Índia desde os Vedas até o budismo tradicional e deste ao Zen, a versão mais atual desse conhecimento universal. Ele é um conterrâneo contemporâneo de Bion. Ambos nasceram na Índia, mas Bion a abandona aos oito anos para cultivar sua cultura genealógica na Inglaterra, conservando em si a cultura tradicional indiana que absorveu no contato íntimo com sua aia, sua babá indiana.

REFERÊNCIAS
Bion, W. R. (1970). Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1973.
Bion, W. R. Learning from experience. Londres: Willian Heinemann, 1962.
Bion, W. R. Second Thoughts. Londres: Willian Heinemann, 1967.
Freud, S. Formulations on the two principles of mental functioning. S.E. Vol. XII. Londres: Hogarth Press, 1911.
Freud, S. Moses and monotheism. S.E. Vol. XXIII. Londres: Hogarth Press, 1939.
Freud, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
Gerber, I. De Freud a Bion, por los caminos de Lao-Tsu. Revista Psicoanálisis, Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires, v. XXI, n. 3, Buenos Aires, 1999, p. 255.
Gerber, I. O Jogo do Inconsciente. Percurso 40, São Paulo, junho de 2008, p. 55-68.
Gerber, I.; Figueiredo, L.C. Por que Bion? São Paulo: Zagodoni, 2019.
Lao Tsé. Tao Te Ching. Inúmeras edições.