O estresse é uma resposta natural do organismo – envolvendo os sistemas neurológico, psicológico e fisiológico – a situações percebidas como perigosas à integridade. Essa resposta preparatória de luta, reação, ação ou fuga está presente em todas as situações que geram demandas e pode apresentar aspectos positivos, como aumentar a disposição da pessoa. No entanto, se perdurar por longo período, pode desencadear ou potencializar doenças físicas e mentais.

Nesta entrevista, o tema é aprofundado pelo psicólogo Milton José Cazassa, mestre e doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio de doutoramento no Laboratory for Stress Assessment and Research da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). Sua tese de doutorado foi condecorada com o Prêmio Monográfico Bernard Rangé pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Atualmente, é pós-doutorando em psicologia clínica pela PUCRS, trabalha na prefeitura de Gramado e é professor de psicologia das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT), no RS.

Baralho

Cazassa é um dos autores do ‘Baralho stresstegy: 13 caminhos para driblar o estresse’, publicado pela Sinopsys Editora. A ferramenta terapêutica visa facilitar o mapeamento e a organização das experiências estressantes, dos processos que o indivíduo estabelece com tais experiências e da avaliação de recursos para o manejo do estresse, visando o desenvolvimento da flexibilidade psicológica e de resiliência. Trata-se de um recurso lúdico adicional ao trabalho do profissional de saúde para uso nos âmbitos da clínica, da pesquisa, da saúde pública ou em contextos diversos.

O baralho foi desenvolvido em coautoria com a psicóloga Margareth da Silva Oliveira, doutora em psiquiatria e psicologia médica, professora e coordenadora do Grupo de Avaliação e Atendimento em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (GAAPCC) e do Laboratório de Intervenções Cognitivas (LABICO) da PUCRS; e com o psicólogo doutor George Slavich, professor do Departamento de Psiquiatria e Ciências Biocomportamentais e diretor-fundador do Laboratory for Stress Assessment and Research, ambos da UCLA.

Como surgiu a ideia do baralho e qual seu objetivo?

Tive a oportunidade de ter a professora Margareth como orientadora e o professor George como coorientador, e nós conformamos o baralho que, basicamente, busca psicoeducar, fazer um processo de educação sobre o estresse, dentro de uma trilha lúdica. O grande desafio foi construir a compilação dessas informações de um modo palatável, agradável, convidativo e lúdico para o enfrentamento de situações dolorosas, situações de conflito. Para os profissionais de saúde, nosso intento é que a ferramenta contribua para o desenvolvimento da flexibilidade psicológica e da resiliência, que é a capacidade de enfrentar situações estressoras e, por consequência, o estresse advindo dessas situações no cotidiano e ao longo das experiências da vida.

É possível viver sem estresse?

Esta pergunta me remete ao médico austro-húngaro Hans Seyle, um dos grandes pesquisadores sobre a temática do estresse. Ele dizia que não sentir estresse não deveria ser algo a ser perseguido e o comparava a um tempero: o “estresse é o sal da vida”. Ou seja, uma comida sem sal é uma comida sem gosto. Por outro lado, uma comida muito salgada é prejudicial. O estresse da mesma forma. Ele é extremamente importante, pois nos prepara para agir, reagir, lutar e fugir, gerando toda uma organização do corpo para isso. Contudo, por distorções ou dificuldades de administração das próprias emoções, das questões psicológicas, se nós tivermos o engajamento do nosso organismo frequentemente nos processos de estresse, teremos, a médio e longo prazos, prejuízos e tendências ao adoecimento e ao envelhecimento precoce.

Nesse sentido, quando situações estressoras que não necessariamente precisam ficar gerando engajamento do nosso organismo, podemos ter um treinamento para a prevenção. Ou seja, podemos desenvolver resiliência, flexibilidade psicológica, condições e recursos para lidar melhor com as situações que se apresentam; para pensarmos melhor sobre essas situações.

O filósofo e psicólogo norte-americano William James, um dos grandes teóricos da psicologia, afirmava que a maior arma contra o estresse envolve a nossa habilidade de escolher um pensamento em vez de outro. Nós temos essa condição de interpretar, organizar e significar a realidade de modo que possamos nos movimentar na direção da saúde.

Esse inclusive é um dos passos da flexibilidade psicológica, que é um dos conceitos inseridos no baralho. Um dos passos da flexibilidade é ‘parar’, pois temos um padrão automatizado de reação, para ‘notar’ quais são esses automatismos e que tipo de reações eles estão trazendo, para chegarmos ao passo que é se ‘mover’ para escolher comportamentos, ações de compromisso, que possam nos aproximar daquilo que é mais importante.

Segundo a terapia de aceitação e compromisso, o ser humano tem dois motivos centrais que o levam a se comportar. O primeiro é para se aproximar daquilo que é mais importante. E o segundo, para evitar o sofrimento. Por vezes, evitar o sofrimento é, ao mesmo tempo, se aproximar do que é mais importante. Por vezes, evitar o sofrimento gera o afastamento do que é mais importante. E aí temos estabelecidos conflitos. O baralho propõe caminhos para trabalhar essa dimensão também.

Qual sua principal dica para driblar o estresse no dia a dia?

O nono caminho do baralho trabalha com o que chamamos de regra de ouro, que é justamente nessa perspectiva de dica envolvendo a ideia de administração de situações extremas: nunca tomar decisões diante de um momento de desespero, de raiva ou mobilizado por emoções como a culpa. Trata-se de momentos em que não estamos em condições de tomar decisões, que limitam nossa capacidade de raciocínio. Claro que há situações que não nos dão tempo para processamento, mas a grande maioria das experiências nos permite espaços para poder tomar decisões mais refletidas, ou buscar aconselhamentos, ou buscar outras perspectivas para enfrentar aquele problema.

A busca de alternativas e recursos para o enfrentamento também é abordada no baralho. Aqui se encaixa a gratidão. Em 2002, quando eu estava recém-formado, fazendo minha primeira pós-graduação, conheci o Irto, um senhor que tinha perto dos 70 anos e que estava se reciclando. Certo dia, ele comentou que estava me achando ansioso com o início da trajetória profissional e compartilhou comigo uma experiência pela qual havia passado em 1996.

Na época, ele prestava consultoria em uma multinacional e precisou viajar para São Paulo e, depois, iria para o Rio de Janeiro a trabalho. Com seu dever já cumprido na capital paulista, pegou um táxi rumo ao aeroporto e, no meio do caminho, o pneu do carro furou, o atrasando um minuto para dar entrada no sistema que o permitiria acessar o avião que o levaria ao Rio. Em resumo, não o autorizaram a pegar aquele voo. Inicialmente, ficou indignado e reclamou à companhia, pois nem bagagem precisava despachar. Não demorou muito para receber a notícia de que a aeronave na qual ele estaria havia caído minutos após a decolagem. Prontamente (e em choque), ele se deu conta de que o mesmo motivo que o estava levando a brigar passou a ser o motivo que o levou a agradecer profundamente.

Então, é preciso exercitar a gratidão sempre que possível. Essa foi a lição que Irto me passou e pela qual sou muito grato. Com esse exemplo real, ele me ensinou uma estratégia de reavaliação e automatizei esse mecanismo de exercitar a gratidão sempre que possível quando as coisas parecem que estão erradas, ou seja, diante da frustração e do estresse.

Existe um ranking das situações estressoras?

O estresse e as situações estressoras dependem de algumas variáveis. Podemos considerar o fator percepção e o fator de análise de recursos para o enfrentamento da situação. Uma situação vai ser entendida como estressora quando a pessoa avaliá-la e não se sentir em condições de lidar com ela. Essa é uma perspectiva trazida pelo psicólogo clínico e pesquisador norte-americano Richard Lazarus, incluído entre os 100 psicólogos mais proeminentes do século 20, com a teoria de estresse e coping (coping pode ser traduzido como a capacidade de enfrentamento do estresse).

Segundo essa teoria, quando nos deparamos com uma situação estressora, temos dois níveis de avaliação: primeiro avaliamos o tamanho do problema; segundo, os recursos que temos para enfrentá-lo. Como isso varia muito de pessoa para pessoa, é difícil haver um ranking do que seja mais estressor ou não. Evidentemente que situações de tragédia, situações inesperadas, que envolvem perdas, de violência e agressividade são extremamente traumáticas. Saindo desse universo, quando entramos no universo da margem de percepção e de recursos de enfrentamento, teremos muitas oscilações. Para uma pessoa, um aperto de mão pode ser estressor. Para outra, falar em público pode ser estressor. E para outra não. Então teremos essas variações a depender dessas duas questões fundamentais que Lazarus agrega aos estudos sobre o estresse.

As pessoas estão cada vez mais ansiosas. O futuro será de pessoas mais estressadas ou será possível fazer a prevenção? E qual o papel da psicologia nesse contexto?

Estes questionamentos me fazem pensar no processo mais constante de todos que é a mudança. A mudança é o que há de mais constante na vida. O que não muda é a mudança. Temos um movimento de mudança cada vez mais acelerado, mais rápido, mais imediatista, haja vista as questões tecnológicas, as questões de comunicação e como elas vão impactando e conversando com a experiência humana, como vão mudando a necessidade de adaptação, a necessidade de inserção dentro dos contextos. Do ponto de vista da área da saúde, estamos trabalhando para gerar um manancial de recursos que possa favorecer o controle, a readaptação, o reequilíbrio, os processos de flexibilidade adaptativa diante dos “temporais”.

O grande velejador brasileiro Amir Klink, que tem diversos livros publicados, conta que, quando estava em mar aberto, enfrentando ondas de 25 metros, entendeu por que as velas do veleiro têm um ponto de rigidez, mas têm um ponto de flexibilidade. Quando os ventos de través se apresentam, as velas se mantêm fixas, mas jogam de um lado para que o veleiro se ajuste naquele momento e possa reencontrar o equilíbrio. Se fossem totalmente rígidas, quebrariam ou fariam o veleiro virar e afundar. Os recursos da psicologia podem ser comparados ao mastro de um veleiro para nos ajudar a encontrar espaços de adaptação dentro das dores e das situações difíceis que vão surgindo.

O grande ponto que precisamos observar e temos observado é que a velocidade das mudanças faz com que precisemos desenvolver sempre novos antídotos, novos materiais, que possam auxiliar no enfrentamento das situações de modo que tenhamos o desenvolvimento dessa flexibilidade psicológica. Sendo assim, não me arrisco a prever qualquer futuro, mas entendo que não evoluiremos para uma situação pior.

Sempre procuro ter uma visão otimista de tudo o que se produz, que se trabalha e se busca enquanto sociedade de que as experiências trágicas possam nos ajudar a evoluir enquanto humanidade no desenvolvimento de aspectos que sejam mais saudáveis, que contemplem visões mais empáticas, que contemplem dimensões como a gentileza, a gratidão e o perdão. E que contemplem, também, o desenvolvimento de energias e capacidades de assertividade que nos permitam estabelecer fronteiras e limites saudáveis para que se construa saúde sempre.