Com o avanço da pandemia gerada pela COVID-19, temos visto uma variação grande de respostas frente a situação: alguns setores da sociedade seguiram suas vidas com um certo grau de normalidade, transferindo suas rotinas para dentro de casa com pouca ou nenhuma perturbação, outros sofreram com mais gravidade, com a perda de empregos (ou parte do tempo de seu trabalho), tendo que também lidar com os filhos em casa e com pouca ou nenhuma possibilidade destes seguirem suas rotinas de estudo.

O poder público, com discursos contraditórios, entre o negacionismo explícito do governo federal ou uma defesa dos procedimentos de biossegurança, mas direcionada a agradar o setor econômico, não fizeram o suficiente para garantir ou amenizar a situação grave de violação de direitos em que algumas famílias, especialmente aquelas que moram em territórios periféricos, se encontravam e continuam a se encontrar. 

Movimentos coletivos

Diante da situação vimos, por outro lado, germinarem uma gama de movimentos coletivos de ajuda mútua, de cunho mais ou menos assistencialistas, mais ou menos comunitários, que passaram a criar estratégias de enfrentamentos à situação. Esses movimentos indicam que a organização e a participação popular não institucional se configuram como importantes saídas para contextos nos quais o Estado não garante direitos humanos e dignidade para a população.

No território Jardim Irmã Dolores, conhecido como Quarentenário, situado na área continental de São Vicente/SP, uma dessas estratégias também germinou e continua a criar ações de cuidado, convivência e cultura. A região, distante do centro comercial municipal,  é marcada pela ausência da política pública de qualidade, pela contaminação de resíduos tóxicos  provenientes do descarte irregular da empresa Rhodea, pela falta de mobilidade e pela concentração de violações de direitos (situação que se perpetua em decorrência da forte  presença do tráfico de drogas organizado, das incursões policiais violentas, do fundamentalismo  religioso e da dependência e cooptação da população pelos políticos municipais).

Na perspectiva de enfrentamento à situação, alguns integrantes dos coletivos do Instituto  Camará Calunga (OSC do município, com vinte e três anos de atuação na região em ações de  mobilização e garantia de direitos humanos, especialmente de crianças e jovens), em sua grande  maioria de mulheres e jovens, passaram a se organizar e garantir que os processos de  convivência formativa, ampliação de repertório cultural, mobilização pela garantia de direitos  e apoio continuassem mesmo com as medidas sanitárias, em um movimento de cogestão das  ações territoriais (CAMPOS, 2000). 

Assembleias comunitárias

Uma das principais ações necessárias para sustentar essas ações (virtuais e presenciais) consiste no dispositivo de gestão chamado assembleias comunitárias (que acontece  semanalmente em todos os territórios em que o Instituto atua), nas quais se desenhou um plano  de contingência e deliberou-se pela criação de comissões de apoio às famílias na pandemia,  além de serem espaços de contínua análise e discussão acerca das ações que continuam  virtualmente (grupos de estudo com crianças e jovens, encontros de convivência, grupos com  mulheres) e de articulação com políticas públicas municipais, como a assistência social,  educação, saúde e a defensoria pública.

 Assim, o território, e não uma organização constituída, passa a ser compreendido como a base para a organização popular e comunitária. “A atividade comunitária numa sociedade de classes antagônicas pode ser comparada com uma situação em que estivéssemos com um pé em cada barco, descendo um rio — só chegaremos a um lugar seguro se cada movimento for pensado e revisto para se decidir sobre o próximo, e ainda assim haverá desvios, impasses, para, lentamente, avançarmos até o ponto desejado. Se o conviver de algumas pessoas, igualitariamente, em uma casa, é tão difícil, pode-se imaginar as dificuldades existentes para que instituições se tornem comunidades, tais como escolas, hospitais e outras”. (LANE, 2009,  p.72).

Apoio social e psicológico

Descreveremos uma dessas experiências, organizada e sustentada por jovens e mulheres dos territórios, que contribuíram para a sustentação da organização comunitária. Essas experiências contribuem para o apoio social, mas também para o equilíbrio psicológico, pois é um processo construído através de um vínculo. Vínculo que vem de compartilhar experiências, de vivências juntos. Acompanhar e viver junto cria laço forte.

As Comissões de Apoio às Famílias nos Territórios se firmaram a partir de uma demanda apresentada nas assembleias comunitárias. Com o intuito de apoiar as famílias moradoras de territórios vulnerabilizados de São Vicente, devido à crise instalada por conta da pandemia do Covid-19. Como indicamos anteriormente, o contexto agravou as situações de desemprego e incerteza, gerando uma cadeia de violações de direitos. As comissões, formadas quase em sua totalidade por mulheres, passaram a buscar, organizar e higienizar doações de alimentos e itens de higiene e limpeza recebidas pelo Instituto Camará Calunga para serem distribuídas a famílias nos territórios a partir de um diagnóstico da situação dos moradores.

Esse processo não se trata só de entregar e pegar o alimento, mas de construir um vínculo, produzir encontros e experiências (BONDIA, 2000) que criem lastros e comunidade. É exercitar a escuta. Uma das principais ferramentas, inclusive, dos processos terapêuticos. Com a abertura ao encontro, as questões chegam, moradores que se conhecem há anos, mas pouco interagem, passam a compartilhar preocupações, situações graves, alegrias e curiosidades, a comissão se torna ponte no território.

E a cada situação, uma estratégia: repassar aos educadores do Instituto? Pensar junto as outras membras da Comissão?  Escutar, somente escutar? Às vezes sim, pois muitas vezes não há nada mais pra fazer do que escutar, porém esse é um recurso muito importante de pertencimento e de acolhimento psicológico.

Ampliação dos itens essenciais

Nesses encontros, também foi se desenhando uma releitura daquilo que se convencionou  chamar de itens essenciais ou básicos, para além do alimento e dos itens de higiene e livros, filmes, plantas e materiais artísticos passaram a compor o rol de itens essenciais e foram sendo  distribuídos às crianças, jovens e seus familiares, bem como foram sendo elaboradas estratégias para garantir o acesso à internet, tendo em vista que a política municipal não deu conta de  assegurar que todos os estudantes tivessem acesso aos materiais virtuais das escolas e para  possibilitar a presença dos integrantes dos grupos do Instituto Camará Calunga nas atividades  realizadas virtualmente.

O viver em grupos permite o confronto entre as pessoas e cada um vai construindo o seu “EU” neste processo de interação, através de constatações de diferenças e semelhanças entre nós e os outros. É neste processo que desenvolvemos a individualidade, a nossa identidade social e a consciência de-si-mesmo (LANE, 2009,  p.16).

A comissão aproxima mais do que o território, oferece uma simbologia à vida de cada um.

E MAIS…

A mescla entre política social e psicologia social

A continuidade e o investimento em ações co-geridas e a disponibilidade para inventar lugares potentes e carregados de sentido marcaram esse período de enfrentamento de uma pandemia que ainda não acabou por completo. E que trouxe reflexos profundos com problemas sociais que não serão solucionados em um prazo curto de tempo. Entretanto, uma vez dada a partida para essa experiência, ficou evidente o quanto o local de encontro das famílias com a Comissão virou uma espécie de “porto seguro”. Com tantos naufrágios e aventuras nos cotidianos, as mulheres responsáveis por suas famílias têm hoje um local de apoio efetivo, não apenas para as questões sociais que envolvem alimentos e materiais básicos, mas de acolhimento psicológico, afinal, o equilíbrio e saúde mental é tão importante nesse momento, quanto esses outros fatores.

A sustentação do encontro, a disposição e disponibilidade para a escuta foram essenciais em todo esse processo, bem como a troca de experiências com educadores e nos espaços de convívio e tomada de decisão dos grupos.

Grupos esses formados por mulheres e jovens que passam a ocupar um lugar singular, para além do plano legal que os reconhece no máximo como ‘’sujeito de direitos’’, em especial no que diz respeito a questões políticas (VOMMARO, 2014), colocando em jogo diferentes formas (algumas já conhecidas, outras inovadoras) de pensar e fazer Política Social. E incluir em todo o processo a importância de tratar também de temas que permeiam a Psicologia Social.  

REFERÊNCIAS
BONDIA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ.  Rio de Janeiro , n. 19, p. 20-28, Apr. 2002.
CAMPOS, G. W. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a construção do sujeito,  a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o Método da Roda. São Paulo:  Hucitec, 2000.
LANE, S. T. M. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2006. — (Coleção  primeiros passos 39).
VOMMARO, P. La disputa por lo público en América Latina. Las juventudes en las protestas  y en la construcción de lo común. Revista Nueva Sociedad. Nº 251, p. 55-69, junho, 2014.