ESTUDO DE CASO

Paula, 21 anos, universitária, procurou a psicoterapia por conta de “aperto no peito” concomitante com crises de choro. Os sintomas coincidiram com o início da pandemia de Covid-19 e o isolamento social, porém Paula atribuía suas crises de choro ao fato de não saber se estava tomando a decisão profissional correta, visto que seu desejo sempre foi seguir a área acadêmica, mas por questões financeiras pensava que o mais adequado seria migrar para o mundo corporativo, que lhe ofereceria melhores salários, possibilitando assim sua pronta independência financeira. Sempre teve bom desempenho acadêmico, mora sozinha próximo a universidade e não tem problemas com isso, pois faz sua própria rotina. Apenas relatou que sente falta do convívio social com amigos, que foi perdido por conta da pandemia.

Preparada para o pior desfecho

Durante as sessões demonstrou ansiedade, relatou sofrer por antecipação, ter pensamentos pessimistas e receio de atrapalhar as pessoas a sua volta. Ao ser convidada para ir à casa de alguém comparecia, mas ficava na dúvida se estava incomodando ou se já estava há muitas horas na casa da pessoa, devendo ir embora para não atrapalhar a rotina do anfitrião. Não vivia, portanto, a espontaneidade e consequentemente não relaxava nos momentos de lazer. Sempre reprimia as próprias expectativas para não se frustrar depois, esperando sempre o pior desfecho para as situações.

Paula apresentava ainda uma postura controladora, isto é, planejava o futuro de forma sistemática, tentando evitar o imprevisível, não lidando bem com imprevistos e esperando sempre o pior desfecho para cada situação, pois se o melhor desfecho ocorresse, ela poderia comemorar; em contrapartida, se o desfecho fosse o pior, ela já estaria supostamente preparada e sofreria menos.

De acordo com Heidegger, o ente não pode se manifestar quando não consegue se localizar dentro de algum mundo.   “Manifestar-se  é  fazer  parte de  um  mundo”2. Qual era o mundo de Paula? O mundo acadêmico? O mundo corporativo? Um mundo longe dos amigos por conta da pandemia? Paula não se manifestava de forma espontânea e completa em suas relações sociais ao visitar as pessoas pelo fato de não se encontrar inserida em algum mundo. Paula estava perdida em sua existência, em suas questões profissionais, bem com em sua relação com o mundo. Ela não se sentia parte de um mundo e nem parte de si mesma, estava distante de si. No fundo, esse era o cenário de sensações que a fez procurar a psicoterapia. A dor no peito foi apenas uma reação a todos esses conflitos.

Existência autêntica

O aperto no peito nos remete à sensação de angústia, que de acordo com o mesmo autor, está diretamente relacionada ao ser humano como ser-no-mundo, como um ser que foi jogado no mundo, ser que necessita edificar-se a si mesmo diariamente ao longo de toda a sua existência.  A angústia possibilita ao ser humano sair da publicidade do cotidiano e assumir o seu ser1.

Paula precisava edificar-se a si mesma, agora em uma nova etapa da vida, o início da vida adulta, que lhe cobrava uma escolha profissional, que determinará o seu fazer ao longo de quase toda a sua existência. Era a hora de Paula transcender rumo à autenticidade ou se fechar em uma existência inautêntica.

É sabido que as preocupações cotidianas do inautêntico existir nos desviam do nosso projeto essencial, dificultando que nos tornemos nós mesmos2 e a preocupação cotidiana de Paula com relação à própria capacidade financeira para o seu sustento a afastava do seu projeto essencial e dificultava o seu vir a ser. Paula havia se distanciado de si mesma quando pensou em abraçar o mundo corporativo e fugir da sua essência. Estava entregue à impessoalidade do cotidiano, misturada aos outros, aos desejos dos outros, longe da própria essência e da própria subjetividade.

Edificar o projeto de vida

Distanciar-se da própria essência em detrimento da impessoalidade cotidiana1 nos remete ao conceito de decadência do ser em Heidegger. Para o autor, decadência não significa a queda de um estado superior para um estado inferior, mas indica que o ser humano se encontra entregue à impessoalidade do cotidiano, que está caído no mundo, junto ao mundo e ocupado com o mundo, do público, coletivo.

Se pensarmos na autenticidade, esta marca a singularização da existência, isto é, o ser humano se apropria de si, toma consciência do Ser-aí  e se abre para novas possibilidades e inclui no seu projeto de existência o Ser-mais2. Paula escolheu transcender rumo à autenticidade através da busca pela psicoterapia, decidiu Ser-mais, edificar a si mesma e olhar para seu projeto de vida.

A questão da escolha profissional é relativa ao projeto de vida, apesar de se tratar de um único aspecto da vida, é algo que também dá significado à existência. Conforme Heidegger,

cada um é aquilo que ele empreende e de que se ocupa.  Quotidianamente a gente se compreende e compreende sua existência a partir daquilo que a gente empreende e daquilo com que a gente se ocupa2.

Com relação à ansiedade, controle e sofrimento por antecipação, podemos pensar em Kierkegaard, que relaciona a ansiedade à liberdade de escolha. Ao se perceber como sujeito singular, o ser humano começa a questionar suas próprias atitudes, porém ao negar a própria liberdade de escolha passa a vivenciar um quadro de desespero3, desespero diante de ser o que não se quer ser ou desespero de não conseguir ser o que se quer ser.  A ansiedade de Paula tinha relação com a negação de sua liberdade de escolher a área acadêmica e o desespero oscilava entre o desespero diante de ser uma executiva (ser o que não se quer ser) e o desespero de não conseguir ser uma acadêmica (não conseguir ser o que se quer ser).

E MAIS…

A responsabilidade das escolhas

Paula já está há 7 meses em psicoterapia, nunca mais teve aperto no peito, nem tampouco crise de choro. Não sofre mais por antecipação, pois percebeu que não podemos controlar certas coisas. Não sente mais que atrapalha a rotina das pessoas quando é convidada para estar na casa destas e consegue se demonstrar autêntica em suas relações com o outro e com o mundo. Percebeu que a escolha profissional deveria ir de encontro com a sua essência para que pudesse ter uma vida plena de sentido. Responsabilizou-se então pelas suas escolhas e decidiu seguir a área acadêmica, ainda que leve mais tempo para se tornar financeiramente independente. Para o seu ser, a área corporativa é da ordem do inautêntico.

REFERÊNCIAS
1.     Ferreira AMC. Culpa e angústia em Heidegger. Cógito. 2002;4.
2.     Bicca L. Ipseidade, angústia e autenticidade. Rev Síntese. 1997;87(24 (76)).
3.     Muller A. Ansiedade e o Desespero Humano [Internet]. Renov Psicologia. 2018 [citado 2 de Setembro de 2021]. Disponível em: https://www.renovpsicologia.com/post/ansiedade-o-desespero-humano