A década de 1990, eleita a “Década do Cérebro”, foi marcada por maciços investimentos em pesquisa e desenvolvimento em neurociências, que não só promoveram as condições para que o conhecimento sobre o cérebro avançasse exponencialmente, mas também, e como consequência destes esforços, deram origem a uma profusão de avanços, especialmente na área de neuroimagem. Isso culminou no surgimento de tecnologias extremamente sofisticadas, precisas e, mesmo, baratas, que permitem, hoje, literalmente tornar acessível ao clínico, no próprio ambiente de consultório, não só observar o cérebro em plena atividade dentro da cabeça, mas efetivamente acompanhar, em tempo real, as mudanças em curso que busca promover no tratamento. E tudo com base em valores normativos populacionais para a idade e sexo do paciente, o que torna a coisa toda extremamente – mas extremamente, mesmo! – segura e confiável, não só em termos de diagnóstico, mas e principalmente, em termos dos resultados do tratamento.

Ainda assim, e por mais incrível que possa parecer, mesmo hoje, mais de duas décadas depois, estes avanços não alcançam a realidade da maioria dos consultórios, sendo a questão diagnóstica – de identificação, de forma clara e objetivamente determinada, da verdadeira natureza do comprometimento ou desordem diante do qual se está – a que mais poderia se beneficiar.

Em outras palavras, hoje em dia, no campo da saúde mental, quando o assunto é fechar um diagnóstico para uma condição, mesmo já podendo contar com este verdadeiro arsenal de ferramentas que nos permitem dar uma bela sapeada neste mundo ultra privado e por milênios recluso de nosso cérebro, pouco ou nenhum uso se faz, ainda, destas tecnologias na prática clínica. Isto significa que as desordens mentais continuam sendo diagnosticadas apenas e tão somente com base em sintomas clínicos, desconsiderando quase que por completo a realidade cerebral do paciente.

Diferentes desordens, mesmos sintomas…diferentes sintomas, mesma desordem

No entanto – e é aqui que esta discussão mostra seu real valor – hoje se sabe que uma mesma desordem pode envolver diferentes combinações de comprometimentos de áreas e estruturas neurológicas, integrantes de uma mesma rede ou de mais de uma rede no cérebro, com isso levando à maior ou menor variabilidade de domínios cognitivos afetados, mesmo que para uma mesma categoria diagnóstica, uma mesma condição. Esta é a razão pela qual diferentes pacientes, ainda que diagnosticados dentro de uma mesma categoria diagnóstica de desordem, como depressão ou TDAH, possam apresentar sintomas tão variados e distintos entre si.

Inversamente, também, diferentes desordens, no cérebro, podem se dever a comprometimentos de circuitos neurológicos envolvendo o processamento de domínios cognitivos (executivo, afetivo, motivacional e social) comuns entre si, culminando, enfim, na variedade de sintomas clínicos, também comuns a mais de uma condição – os sintomas transdiagnósticos – o que faz com que tanto diagnósticos baseados em sinais e sintomas clínicos se apresentem com maior probabilidade de erro, quanto – como consequência – resultem em condutas terapêuticas muitas vezes equivocadas, algo tão comumente observado no campo da saúde mental.

E justamente por conta disso, desde 2009, com o lançamento do programa intitulado RDoC (Research Domain Criteria, ou “Pesquisa em Critérios de Domínios Cognitivos”), o Instituto de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH-USA) vem propondo que, adicionalmente à observação e registro da sintomatologia clínica trazida pelo(a) paciente, sejam também consideradas as informações provenientes de mapeamentos de eventuais desregulações presentes no funcionamento de circuitos neurológicos de áreas e estruturas das grandes redes funcionais do cérebro, de modo a minimizar a probabilidade de erros na identificação das diferentes desordens mentais.

Aliás, uma outra consequência de toda essa discussão e deste entendimento atualizado – de que as desordens mentais se enraízam em desregulações no funcionamento em redes do cérebro – é que, hoje, as ditas desordens mentais devem ser mais precisamente entendidas e nomeadas “desordens neurocomportamentais”. Com isso, e levando em conta os pressupostos que estabelecem e organizam o RdoC, que determinam que as diferentes categorias de desordens neurocomportamentais deverão ser definidas com base em informações de neurociência clínica, relacionando aspectos cognitivos e comportamentais àqueles provenientes da atividade da circuitaria das grandes redes funcionais do cérebro, o foco de tratamento em saúde mental deve partir, em primeiro lugar, justamente destes mapeamentos que correlacionem tais desregulações neurológicas e domínios cognitivos eventualmente afetados em cada caso, o que viabiliza não só maior precisão diagnóstica, mas o delineamento de estratégias de tratamento muito mais precisas, sempre baseadas em dados individuais, próprios de cada paciente.

Discurso polêmico e relevante

Nas palavras do Dr. Thomas Insel, médico e então diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos EUA, em discurso proferido ainda no ano de 2005, para psiquiatras presentes à reunião anual da Associação Americana de Psiquiatria (APA – American Psychiatric Association), e já preparando o terreno para o lançamento do RDoC, alguns anos depois:

“Enquanto o DSM tem sido descrito como a “Bíblia” para o campo [da saúde mental], ele é, na melhor das hipóteses, um dicionário, criando um conjunto de rótulos, e definindo-os individualmente. O ponto forte de cada uma das edições do DSM tem sido sua confiabilidade – cada edição tem garantido que os profissionais da área da saúde mental façam uso dos mesmos termos, de uma mesma forma. Sua fragilidade é sua falta de validade. De forma distinta de nossas definições para doença isquêmica cardíaca, linfoma, ou AIDS, os diagnósticos realizados com o uso do DSM estão baseados em um consenso sobre agrupamentos de sintomas clínicos, e não em nenhuma medida laboratorial objetiva. No restante da medicina, isto seria o equivalente à criação de sistemas diagnósticos com base na natureza da dor no peito ou na qualidade da febre. De fato, diagnosticar com base em sintomas, prática tão comum no passado, tem sido amplamente abandonada em outras áreas da medicina no último meio século, na medida em que entendemos que os sintomas por si só raramente indicam o melhor curso de tratamento. Os pacientes que sofrem de desordens mentais merecem mais do que isso. ”

E MAIS…

Proposta de nova prática clínica

Mediante o delineamento de estratégias de análise baseadas no mapeamento funcional da atividade em redes da circuitaria cerebral, o programa RDoC – Research Domain Criteria,do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos EUA – apresenta os dois pressupostos fundamentais orientadores do que se propõe uma nova prática clínica em saúde mental, tanto na dimensão diagnóstica, quanto na terapêutica. Assim:

1-       as “desordens mentais” devem ser entendidas como derivadas de falhas no funcionamento de redes e circuitos neurológicos do cérebro, implicados no processamento de domínios específicos da cognição, emoção e comportamento, devendo ser, então, consideradas mais apropriadamente com outra nomenclatura, a de “desordens neurocomportamentais”.

2-       A classificação adotada pelo RDoC para as diferentes categorias de desordens mentais assume que estas disfunções e desregulações presentes nos circuitos neurológicos do cérebro podem ser identificadas pelo uso de ferramentas da neurociência clínica moderna, que permitem a realização de mapeamentos que correlacionam comprometimentos funcionais da atividade em redes do cérebro com os diferentes domínios cognitivos afetados e, destes, com os sintomas clinicamente expressos, o que permite que efetiva adequação e customização do tratamento a seguir, que passa a ser concebido e elaborado tomando por base, além da sintomatologia clínica manifesta, a realidade neurofuncional de cada paciente.