Não é nada fácil ser uma figura pública e se assumir gay, na imensa maioria dos casos. Na política, que é discutida no país com uma maturidade de quinta série, o desafio é enorme. No futebol, impossível. Com 24 jogadores convocados, a seleção brasileira joga com a numeração de 1 a 23, pula o 24, e aí vem a camisa 25, para Douglas Luiz. Cumprindo decisão judicial de explicação, os advogados da CBF alegam que a “numeração utilizada pelos atletas tem relação com questões desportivas apenas”. Será mesmo? É de se duvidar e muito, considerando o preconceito ainda presente nesse mundo.

Acordo de bastidores

Nas artes, o cenário não é muito diferente. Hollywood tem uma história enorme de astros e estrelas que saíam das telas para os armários, onde passavam a vida toda. Uma cumplicidade entre estúdios e imprensa garantiu que o segredo ficasse escondido, inclusive, recorrendo-se a o que lá se chamava de “lavender marriages”, o que em português chamamos de “casamento de fachada”. Essa era uma solução encontrada para contornar as cláusulas morais dos contratos com os estúdios. Sim, elas existiam, e diziam que o contrato poderia ser rompido se os artistas “perdessem o respeito do público”.

Viver sob tanta repressão tinha consequências, como o comportamento destrutivo de James Dean, morto instantaneamente em um acidente de automóvel. Ou o caso de Montgomery Clift, que sobreviveu a um acidente, mas acabou viciado em drogas e álcool a partir daí, morrendo 10 anos depois, no que foi chamado de “o mais longo suicídio de Hollywood”.

Um passo importante

E com todo esse histórico, chegamos à política, onde até bem pouco tempo atrás, a situação era pior que no futebol. Mas os tempos foram mudando, políticos homossexuais foram ganhando espaço (ainda pequeno). Segundo a Aliança Nacional LGBTI+, o Brasil tem hoje 104 políticos LGBTI+ eleitos para cargos tanto no executivo como no legislativo. No mês passado, Eduardo Leite, governador de um dos estados mais conservadores do país, o Rio Grande do Sul, se juntou a eles. Em rede nacional, no programa Conversa com o Bial, ele se declarou gay.

Claro que o anúncio trouxe a habitual enxurrada de declarações homofóbicas, como era de se esperar. Disso, não precisamos nem tratar aqui, só lamentar.

O que é interessante ver é como esse gesto foi percebido como um passo importante, em termos de representatividade. Ter um político em um alto cargo executivo, pré-candidato à presidência da República, assumindo sua homossexualidade, é um passo a mais para aumentar a Diversidade e Inclusão na sociedade. Até aí, há um consenso. Passando deste ponto, começam as divergências, já que mesmo na comunidade LGBTQIA+ as críticas foram fortes, em vários aspectos, seja pelo oportunismo e suas intenções mais escusas, seja por ter apoiado Bolsonaro nas eleições de 2018 ou mesmo por nunca ter declarado apoio às causas LGBT.

Não podemos esquecer do exemplo da governadora do outro Rio Grande, o do Norte, Fátima Bezerra, também homossexual se posicionando e se solidarizando com Eduardo Leite: “Na minha vida pública ou privada nunca existiram armários. Sempre demarquei minhas posições através da minha atuação política, sem jamais me omitir na luta contra o machismo, o racismo, a LGBTfobia e qualquer outro tipo de opressão e de violência. O governador Eduardo Leite fez um gesto importante e tem minha solidariedade por ataques que venha a sofrer em razão de sua declaração. Eu sei o que é a dor da discriminação e do preconceito

Essa declaração de Fátima foi vista por muitos, como mais importante do que o próprio anúncio de Eduardo Leite, pela profundidade e pelo retrato que traz da sociedade em que vivemos.

E não é uma sociedade tranquila, sabemos. A temperatura em que estamos leva a questionamentos sobre as próprias intenções de Eduardo Leite. Para muitos, é uma forma de desvincular sua imagem da de Bolsonaro, se colocar como uma possibilidade de terceira via em 2022, testar a boa imagem que tem junto ao eleitorado mais conservador, atrair eleitores de um campo mais progressista, por essas ou outras intenções, não podemos deixar de destacar a coragem pelo feito.  

No mundo das organizações

Tudo indica que estamos em um momento de mudança, é só observar o mundo das organizações, já que grandes quebras de paradigma em uma sociedade geralmente estão associadas a fatores econômicos. Se for assim, os sinais são excelentes, já que mais e mais empresas estão apoiando causas LGBTI+ e destinado recursos financeiros para elas, como Natura, Disney, Absolut, Dow, Doritos, Havaianas, Levi’s, Renner, Mercado Livre, entre muitas outras.

Analistas também já afirmam que campanhas com diversidade geram mais retorno do que críticas. O Burger King, por exemplo, vem construindo uma marca ligada a posicionamentos marcantes em várias questões sociais, gerando grande identificação com o público mais jovem e mais progressista. Claro que as críticas são grandes. Sua campanha mais recente, no mês do orgulho LGBTQIA+, foi inclusive atacada em um programa em rede nacional, mas a resposta veio rápida: o programa em questão passou a perder patrocinadores, levando o apresentador a uma retratação.

Seja como vitrine, imagem ou posicionamento genuíno nota-se mais inclusão de profissionais LGBTQIA+ nas empresas. Áreas de D&I (Diversidade e Inclusão) foram criadas, programas implementados e a discussão de temas ligados a diversidade se multiplicam em rodas de diálogos dentro das empresas.

É impossível saber a real motivação de cada um, só podemos ficar com as consequências. Com a sua declaração, Eduardo Leite deu um grande passo e se colocou ao lado de uma causa, podendo colaborar muito em termos de representatividade.

Mais que um gesto esperamos que a sociedade evolua o suficiente para que cada um possa ser quem realmente é.

E MAIS…

Ainda nos deparamos com o preconceito velado

Diferente do que muitos pensam, a área artística não está à frente de seu tempo, como muitas vezes ouvimos nos discursos sobre a diversidade. É fato que é sim um campo em que muitas pessoas tem mais facilidade para assumir a homossexualidade, mas mesmo hoje em dia, não está mais fácil para os artistas que tomam essa iniciativa.

Muitos ainda se esforçam para esconder a orientação sexual e há casos como Leonardo Vieira, que recentemente relatou ameaças de morte por ser gay. Isso o levou a se mudar para Portugal. As ofertas de trabalho, segundo ele, também desapareceram.