Em certa ocasião, acompanhei uma amiga na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Tijuca, no Rio de Janeiro. À medida que o letreiro avisava o número do próximo a ser atendido, acompanhado de um aviso sonoro, me dei conta de um burburinho que acontecia na recepção: chegara uma mulher surda procurando ajuda médica, mas ninguém ali sabia Libras, tampouco existia algum intérprete no local, apesar de a acessibilidade ser um direito da pessoa surda assegurada por Lei.
Para além do desfecho do episódio, me pergunto sobre o quão corriqueiro é, em nosso país, cenas como esta. Recordo-me da indignação de uma amiga surda, professora pós-graduada, que foi a uma delegacia prestar queixa e leu, nos lábios de quem a atendeu, as seguintes palavras: “Libras? Que língua é essa? Ninguém conhece essa linguagem aqui não! Essa mulher não vai ser atendida aqui, não. Isso que ela tá dizendo ninguém entende”.
E ninguém entende!… Porque faltam políticas públicas afirmativas da língua e da cultura surda. Porque na maioria das escolas inclusivas o surdo é obrigado a “aprender” a sua segunda língua (a língua portuguesa) como se fosse a primeira, às vezes inclusive uma língua estrangeira, porém sua língua, a de sinais, é desconhecida de toda a escola, e o sentido de ser surdo é invisibilizado.
A negação da língua
Ora, quando falamos de língua, não é (só) exatamente de língua que estamos falando. Trata-se de todo um oceano de sentidos que ela (a língua) carrega consigo: a possibilidade de conceituar e atribuir sentido ao mundo, de compartilhar experiências, de conhecer sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesmo… O que se nega quando se “nega” a língua?
A história dos surdos é também a história dessa negação. Em 1880, em Milão, reunidos em um Congresso, professores ouvintes decidiram, em votação da qual os professores surdos foram impedidos de participar, que o uso de sinais era prejudicial ao desenvolvimento dos alunos surdos, motivos pelo qual seria proibido. Muitos países, inclusive o Brasil, aderiram à ideia. No Instituto Nacional de Educação de Surdos, conforme lembra a historiadora e professora do próprio INES, Solange Rocha, os alunos foram proibidos de se comunicar em língua de sinais.
No entanto, se é verdade que a história dos surdos fala de negações, também é verdade que fala de lutas, conquistas e resistências! Da data de hoje, 23 de abril, dia Nacional da Educação de Surdos, é um marco na celebração do orgulho surdo, da força, da resistência de um povo que mantem viva sua língua, sua cultura, sua arte, sua literatura!
Política linguística de legitimação
É necessário estarmos abertos a perceber e a aprender com a experiência do sujeito surdo, a assumir que estamos sempre em formação, que nossos saberes sobre nós e sobre o outro são insuficientes para compreender a “surdidade”, tão diferente que é da experiência do ser ouvinte neste mundo que nos toca viver.
E qual a aposta, portanto? Por que não uma política linguística de legitimação e desinvisibilização do surdo e de seus artefatos culturais e linguísticos? Onde circula a Libras no nosso cotidiano? Nas escolas? E as histórias com protagonistas surdos? E a arte surda? Já ouvimos falar de Surdolimpíadas? Por que não ensurdecer a escola e a sociedade, no sentido de abarcar a Língua de sinais como de e para todos?
Representatividade importa, faz parte do movimento de retirar de nosso olhar a mancha com que enxergamos o outro de antemão. Questiono-me sobre aquela moça, naquela UPA na Tijuca que tentei ajudar, mas que, envergonhada, preferiu escrever, a seu modo, para a recepcionista… Lembro dos muitos surdos que não têm acesso a escolas e/ou classes… Que escrita têm produzido e aprendido a produzir em espaços onde sua língua é negada e sua cultura inexistente?
Um ensurdecer social
Sim, fico imaginando como será um atendimento médico de cuidado quando não se há uma língua comum… Também penso na minha amiga surda… Que ideia é possível de justiça quando esta nos é negada pelo fato de ser como somos? O que significa para a vida da criança surda quando um médico diz para a família para ela não ter contato com a língua de sinais?
Por isso, ensurdecer a escola. Para que talvez possamos exercitar a escuta visual e aprender com os próprios surdos.
A luta por uma Educação de Surdos
O Dia Nacional da Educação de Surdos é 23 de abril. Temos a comemorar a reconhecimento da LIBRAS como língua de instrução, temos muito mais motivos para lutar: pelo acesso de professores à LIBRAS, pela garantia de professores surdos nas escolas que atendem a alunos surdos, pelo direito das pessoas surdas a aprenderem a LIBRAS, pela inserção da cultura surda nas escolas… Parece que, em vez de comemorar, o verbo de hoje é lutar. Que continuemos lutando por uma Educação de Surdos Bilíngue!