O Eu carrega as imagens do trauma e as conserva por um determinado período, até serem lançadas para a consciência. Todas essas imagens são frutos de acontecimentos traumáticos que estavam recalcadas e são transferidas para o corpo em forma de sintomas. Como se estrutura a formação do trauma no psiquismo? Essa pergunta foi tema de muitos debates e questionamentos na evolução do conhecimento psicanalítico.

A formação do trauma equivale a um forte investimento que se caracteriza por susto, choque, algo muito impactante. Esses fatos ao serem jogados ao psiquismo criarão raízes, vida própria, como fluxo de energia, que intervém, bloqueia e reprime a evolução da pessoa. Há acontecimentos traumáticos dos quais não temos lembranças, outros, porém, poderão ser vagas. A sua natureza deriva de um ambiente familiar vinculado à dor e ao sofrimento, aos segredos e desejos dos pais, os quais sublimam a perversidade, falsidade e mentiras. Os filhos são a transferência dessas expressões neuróticas.  Traumas não tratados e não curados podem ser transmitidos entre gerações.

É importante entender o choque traumático e a sua permanência no psiquismo. O evento traumático interfere no sistema biológico e imunológico. Esse período de latência permite que o choque se fortaleça. A própria pessoa se identificará com ele, criando um vínculo afetivo.

Causas reais da doenças

Quando falamos ou pesquisamos sobre doenças e suas causas reais, não podemos descartar a manifestação de traumas. Essas experiências deixam marcas constantes e devastadoras na vida de uma pessoa. As cicatrizes se perpetuarão, criando uma segunda natureza no caráter, assim, desenvolvendo uma ‘persona’, máscara, que se entrega ao desejo e à vontade da neurose, “entretanto, as experiências traumáticas deixam marcas, seja em grande escala (na história dos países e nas culturas), seja em nossos lares e famílias, com seus segredos tenebrosos que passam de uma geração a outra. Também imprimem marcas na mente, nas emoções, na capacidade de desfrutar de alegrias e prazeres e até no sistema biológico e imunológico” (KOLK, 2020, p. 09).

A causa real parte do choque traumático, que agride com muita intensidade o psiquismo. Imaginemos o grau desta situação, numa criança que passa por um abuso. O ato violento e agressivo vai, com certeza, causar lesões em seu psiquismo, no corpo, na mente, assim como em sua vida. A hipótese é que essa criança na vida adulta poderá ser muito infeliz, em buscar parceiros que vão agredi-la e violentá-la. Como não consegue ter consciência e muito menos ressignificar, tende a repetir a cena traumática, no caso, do abuso. Quanto mais repeti-la, mais vai se fortalecer com muita intensidade.

O tempo de incubação é a ponte que marca a trajetória do fortalecimento da neurose. Qualquer acontecimento marcante que a criança passa na infância deixa marcas, capazes de produzir sintomas aleatórios. Quando adulta, o acontecimento permanece vivo e atuante, ressurgindo com muita intensidade. “Uma experiência traumática pode se reativar ao menor sinal de perigo, mesmo muito tempo depois de ela ter acontecido, mobilizando circuitos cerebrais prejudicados e produzindo uma quantidade absurda de hormônios do estresse” (KOLK, 2020, p.10).

Repetição do trauma

Não há como deixar o trauma para trás, muito menos fingir que nada  aconteceu. O que se manifesta é a cena do acontecimento, que nunca é a mesma, logo semelhante. Quanto mais repetir, mais vai se fortalecer a ponto de ser uma marca constante. Qualquer acontecimento semelhante dispara o alerta da cena traumática, que se revela com mais força e vitalidade.

Na verdade, a vertente traumática é a repetição, se isso não acontecer, não seria diagnosticado como trauma. Os neurônios da lembrança traumática guardam todas as informações, que ao acionar as imagens do acontecimento, reproduzem a cena semelhante, que é, desse modo, revivida pela pessoa, como se fosse à primeira vez.

Por isso, muitas pessoas, ao despertar o sinal de alerta, entram em pânico, ataques de ansiedade ou mesmo em desespero. Por detrás dos sintomas, há na verdade um trauma que permanece vivo e ativo. Quando se passa por um trauma, experimenta-se um mundo totalmente diferente, a energia se concentra em alimenta-lo e dar existência.

Conflito psíquico

O trauma não afeta somente o psiquismo da pessoa e sim toda sua vida, inclusive daqueles que a rodeiam. Toda experiência traumática deixa marcas no corpo e na mente. Ao afetar o organismo, desencadeia uma reação em cadeia de autodestruição. Freud percebeu isso no estudo das neuroses de guerra, que afetavam não somente os soldados que tinham voltado, mas também suas famílias. O choque causado por transtornos de tanta violência causavam um vazio existencial, com ataques de pânico ou mesmo de violência. Ele afirma, “qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos, tais como susto, angústia, vergonha ou dor física, pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer, de verdade, depende naturalmente da suscetibilidade da pessoa afetada” (FREUD, 1987 [1893a], p.43).

Filhos de mães que são violentadas tanto fisicamente, sexualmente ou emocionalmente podem crescer inseguros, ansiosos ou mesmo violentos. Ao se instalar na vida da pessoa, a neurose causa danos a todos que contemplam aquela família. O choque é tão forte que rompe com as estruturas do Eu, possibilitando reviver esta experiência sem consciência. “Essas mudanças explicam por que pessoas traumatizadas se tornam hipervigilantes em relação a ameaças, mesmo que isso venha a prejudicar a espontaneidade em sua rotina diária” (KOLK, 2020, p.11).

Crianças que foram abusadas na infância, por exemplo, procuram esquecer o fato, no entanto, as danos são desastrosos. Quando adultas podem tornar-se frias, depressivas, infelizes. Segundo Bessel Van Der Kolk, “as vítimas de estupro, os soldados que tiveram em combate, assim como as crianças molestadas sexualmente, em sua maioria, ficam perturbadas ao refletir sobre suas experiências que tentam expulsar essas lembranças da mente e ir em frente como nada tivesse acontecido” (KOLK, 2020, p.11).

E MAIS…

As imagens da cena traumática carregam representações, emoções e energia.

Ao ser registrada no psiquismo, a cena primária do trauma fica por um tempo incubada, até começar a se manifestar em forma de sintomas sobre o corpo. Ao ser arquivada no inconsciente, começa a tomar forma e estrutura, como um corpo estranho. Tendo total controle sobre a vida da pessoa, ela pensa, vive, faz suas escolhas segundo a vontade e o desejo da neurose.

A lembrança traumática constitui valor e peso sobre o psiquismo, manifestando uma ação sobre o corpo. Ao ser inscrita (como processo de identificação), inicia um processo de investimento e repetição. É importante reforçar que quanto mais repetir, mais vai se fortalecer. 

Freud fala das percepções sensoriais do visto e do ouvido, pontos marcantes do que podemos constituir como trauma. Aquilo que a criança ouviu (uma palavra), ou mesmo viu (por exemplo, o pai agredir a mãe), é o método da neurose traumática. As imagens da cena traumática carregam representações, emoções e energia. O fator do trauma é marcado por um forte e intenso acontecimento, que possibilitou rupturas das defesas do ego. Sem defesas, o ego não reage, abrindo espaço para que esse processo repetitivo possa continuar.

Referência
KOLK, Van Der Bessel. O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, Mente e Corpo na Cura do Trauma. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
FREUD. Sigmund. (1893a). Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Comunicação preliminar (Breuer e Freud). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v.II, Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.41-53.