Ao pensar no trabalho diário de um psicanalista, a imagem mais comum é a de um sujeito sentado em sua poltrona escutando o analisante deitado em um divã. Se adicionarmos som e movimento à imagem, certamente o analista teria poucas falas ou nenhuma. Esse profissional passaria aí dias, meses, anos, a vida sentado em sua poltrona escutando e dizendo poucas palavras.
Solidão estruturante
Certamente o trabalho do analista no consultório é prioritariamente solitário. Ele está ali sozinho a escutar seus pacientes, hora após hora. Mas não encontra a solidão somente aí, pois ela é estrutural do sujeito. O analista sabe disso. É um saber sentido na própria pele, desde a separação inicial da união com o sujeito que lhe delegou os primeiros cuidados, que o introduziu na linguagem, até o atravessamento da fantasia, o reencontro com o desamparo fundamental e a decisão de construir algo alicerçado nessa solidão estruturante.
É o sofrimento frente ao desencontro com seu semelhante e os descaminhos dele resultantes que levam alguém à análise. Mas disso não se faz um analista. A análise é um processo longo e que, embora traga algum alívio relativo à queixa inicial do sujeito, é permeada por períodos dolorosos, e uma decisão corajosa se faz necessária para continuar deitando-se no divã.
Vias pulsionais
Lacan escreve que o analisante deixa no divã “uma libra de carne”. Essa expressão está diretamente associada ao custo que o processo analítico tem para o analisante, que paga com o valor financeiro deixado no final de cada sessão, paga também deitando-se e pondo-se a falar e a escutar seu próprio discurso. Paga com seu próprio corpo, por meio das modificações das vias pulsionais que marcaram o gozo desse corpo por toda uma existência. Novas vias se fazem, outras marcas vão se escrevendo e se inscrevendo nesse corpo que passa pelo processo analítico. Marcas do trabalho árduo do sujeito que aposta a cada vez que atravessa a porta do consultório.
O atravessamento da fantasia
Lembro-me de um analisante que usava a expressão “Meu castelo de areia está desmoronando”. O atravessamento da fantasia é possibilitado pelos questionamentos do sujeito, e uma nova construção de sua posição frente ao próprio desejo é possibilitada pelo trabalho analítico. Esse processo é solitário. O processo analítico é iniciado e sustentado pelo próprio sujeito, é uma decisão, uma escolha feita sozinho. O analista corta, pontua, interpreta… fornece ao sujeito alguns indícios daquilo que escuta no discurso daquele que fala. Mas o analisante tem que se dispor a trabalhar.
Ainda: tem que escolher ultrapassar o horror de saber dessa solidão estrutural e decidir fazer outra coisa a partir daí. Já não cabe a escolha sintomática que o trouxe ao consultório, anos antes, para as primeiras entrevistas. O saber do horror da solidão adveio justamente do não cabimento, durante toda sua existência prévia, das respostas sintomáticas dadas para tamponar esse furo fundamental.
Uma das possibilidades do saber fazer com isso é o surgimento do desejo do analista. Desejo de levar outros a esse descobrimento, à retirada do véu que tampona a falta, o desencontro, e a decidir o que fazer diante do horror e das possibilidades que advêm desse novo saber. Na escolha pelo desejo do analista, em sua prática clínica, aquele que levou sua própria análise às últimas consequências segue só.
Só, mas com alguns outros
Lacan, em 1964, ao sair da IPA [International Psychoanalysis Association], funda sua Escola de Psicanálise. Ele inicia seu Ato de fundação (21. 06. 1964) dessa maneira: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise […]”. Ousamos afirmar que ele mata dois coelhos com uma cajadada só: afirma tanto que a Psicanálise é um processo e uma prática essencialmente solitária, quanto aponta para a necessidade de estar entre pares, por meio do pertencimento a uma Escola, para que a Psicanálise em intensão e extensão possa continuar.
Ainda nos primórdios da Psicanálise, essa necessidade foi percebida também por Freud, quando fundou a IPA, um trabalho registrado nas Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena, nas quais podemos acompanhar seu esforço em compartilhar suas descobertas, ouvir observações dos colegas e seguir rascunhando o que veio, ao longo dos anos, a ser a teoria psicanalítica.
Psicanálise extramuros
A prática da análise parte sempre da escuta solitária do analista a cada um dos pacientes. Mas não se resume e nem finaliza no consultório. A Psicanálise é extramuros, tanto a presença da Psicanálise na pólis, quanto os avanços teórico-clínicos conquistados a cada vez que esses analistas ímpares, dispersos disparatados, solitários, se arriscam a apostar que debruçar-se sobre a prática clínica de cada qual pode fazer avançar a Psicanálise. Isso, com todos os desencontros que acarreta, só pode ser feito em uma Escola.
Se apostamos quando cruzamos pela primeira vez o umbral do consultório de nosso analista e se tivemos a coragem de levar a análise até seu final, é porque somos teimosos. E estamos aqui de novo, apostando na Escola.
E a psicanálise freudiana se desdobra
A Psicanálise, com a escuta e o estudo dos psicanalistas que se dedicaram à continuidade da invenção de Sigmund Freud, deu origem a duas grandes linhas: a escola inglesa – nela incluímos Melanie Klein, Bion, Winnicott; e a escola francesa – com Lacan, Dolto.
Na próxima coluna, vamos apresentar um pouquinho de cada uma delas.