Estudo de caso
Renata, tem 23 anos de idade, é mãe solteira, se autodeclara parda, trabalha num hospital privado, mas está prestes a iniciar faculdade de História em uma universidade pública. Ela relata, ainda, que encontra na bebida alcoólica uma forma de lidar com sua angústia e ansiedades. Em crise depressiva recente procurou ajuda de um psiquiatra, o qual, efetivamente, a diagnosticou com transtornos de depressão e ansiedade, que ela considera ter desde a adolescência.
Observação do histórico
Em psicoterapia há três meses, Renata sinaliza o retorno de ideações suicidas como um gatilho para os quadros ansiosos e depressivos. Essa é a demanda principal para fazer psicoterapia. Relatou, ainda, que isso não aparecia desde o nascimento do filho, atualmente com 2 anos de idade.
No seu histórico, Renata relata duas tentativas de suicídio, sendo a primeira quando ela ainda estava grávida de 8 meses e a segunda, mais recente, quando já estava sob acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Nessas duas tentativas, o que a impediu de executar o suicídio foi o amor pelo filho. Embora o ciclo gravídico gere grandes angústias na mulher, com prevalência relativamente alta de sintomas depressivos e comportamento suicida entre gestantes, a gravidez e a maternidade podem ser fatores protetivos ao suicídio, principalmente nos anos seguintes à gestação (BOTEGA, 2006). No caso de Renata podemos observar como seu vínculo afetivo e a relação amorosa com o filho a protegeu de cometer suicídio. Porém, nos questionamos: O que pode estar envolvido nas tentativas de suicídio em um período tão significativo da vida de uma mulher, que é o de tornar-se mãe?
Avaliando o histórico de Renata, não à toa a primeira tentativa de suicido ocorreu durante a gravidez aos 8 meses de gestação, bem na reta final quando ela se viu diante da iminência de dar a vida em uma maternidade desamparada e sem modelos maternos de amparo. No terceiro trimestre da gestação a ambivalência afetiva da mulher grávida chega ao auge. Medo e preocupação com o parto se somam às preocupações quanto a sua capacidade de parir e maternar, totalmente ligadas à autoestima da mulher e à necessidade de apoio do parceiro e da família (SARMENTO & SETÚBAL, 2003), o que pode ter feito Renata se sentir ainda mais desamparada, já que, embora ela tivesse um parceiro (que na época já era abusivo!), passava por uma maternidade solo num contexto de franca violência doméstica.
“O pior momento da minha vida!” é como Renata descreve seu período gravídico. A gravidez para ela foi um momento em que sua relação com o parceiro piorou, agravando-se o histórico de agressões psicológicas e físicas perpetradas por ele. Com uma dinâmica conturbada com constantes distanciamentos por conta dos desentendimentos familiares, Renata ficou sozinha durante a gravidez, inclusive, com períodos sem falar com a mãe, que não a acompanhou na reta final da gestação e nem no parto. Se a gravidez já é um processo de grandes transformações na vida de toda mulher, imagina quando se passa por isso tudo sozinha. Naturalmente cada mulher expressa, de maneira singular, reações próprias diante desse processo, as quais desencadeiam mudanças profundas e situações inéditas.
Suicídio no Brasil e no mundo
Não é possível apontar uma causa única para o ato suicida, já que o suicídio é um fenômeno multifatorial que envolve questões psicológicas, psiquiátricas, biológicas, culturais, sociais, econômicas e ambientais, as quais compõem a história de vida da pessoa. O suicídio pode ser a uma consequência final (e fatal!) de uma longa vivência de sofrimento psíquico, que envolve desde a ideação suicida até tentativas de suicídio e o suicídio consumado. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2016), a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo, sendo o número alarmante de 800 mil pessoas/ano no mundo que morrem por suicídio.
Por conta disso, é imprescindível que esse fenômeno com repercussão mundial seja tratado como uma questão de saúde pública e sua prevenção seja uma prioridade global. É necessário discutir sobre o suicídio sem medos ou reservas, mas principalmente problematizando o viés estigmatizante que o assunto encerra. Ressalta-se, ainda, que os dados estatísticos sobre suicídio podem não corresponder à realidade, devido aos muitos preconceitos que recaem sobre aquele que atenta contra a própria vida. Soma-se a isso, a subnotificação nos registros dos casos de suicídio pela omissão da família ou dos hospitais (OLIVEIRA et al., 2018).
Precisamos, ainda, refletir: O que a morte representaria para o suicida? Uma fuga, um encontro com a paz, uma solução para todos os problemas, uma resolução de conflitos ou, simplesmente, uma escolha genuína para acabar com seu sofrimento insuportável. Pode ser tudo isso e mais um pouco, mas escolhemos pensar que o suicídio é um pedido de ajuda. As pessoas que buscam o suicídio se encontram num momento de completo desespero e querem se livrar dessa situação, o que muitas vezes pode demonstrar que, na verdade, elas não procuram a morte em si, mas sim cessar o que as aflige.
Por se encontrarem num momento de perturbação, a percepção sobre suas alternativas e sua capacidade de escolha ficam limitadas (OLIVEIRA et al., 2018), fazendo com que elas não consigam tomar decisões mais conscientes. No caso de Renata, foi possível perceber isso em algumas sessões de psicoterapia. Não foram poucas as vezes em que ela expressou não ter uma vontade genuína de tirar a própria vida, mas sim de morrer para acabar com seu sofrimento. Sofrimento perante as coisas que não davam certo. Sofrimento perante uma vida na qual ela não encontrava sentido!
Frustração existencial
O suicídio pode ser entendido por pessoas como Renata como a única saída. Para alguns, é a porta estreita que leva ao encontro de uma vida sem sentido e ao desencontro com seu sentido e razão para viver. É essa frustração existencial, causadora de grande tensão psíquica, que faz com que a pessoa desloque seu sentido da vida na direção da morte (OLIVEIRA et al., 2018). Dessa maneira, é importante investigar: qual o sentido que a pessoa com ideação suicida ou que tentou suicídio atribui ao ato em si de tirar a própria vida? Vivendo num contexto de desamparo e de impossibilidades de ajuda, as diversas tentativas de suicídio podem ser vistas por terceiros como simplesmente um “Querer chamar a atenção dos outros!”. Porém, defendemos que, na verdade, se trata de um pedido de ajuda de uma pessoa sem os recursos necessários para lidar com as adversidades e que precisa ser amparada e auxiliada no encontro de outras possibilidades para amenizar seu sofrimento. Para isso, uma psicoterapia que invoque sua busca pelo encontro do sentido de vida pode ajudar!
Logoterapia para o caso
A aposta logoterapêutica para Renata tem sido incentivar seu encontro com os sentidos de vida na direção de dar algo ao mundo por meio da vivência dos seus valores criativos, que pareceram ser primordiais para ela face à suas habilidades artísticas e artesanais (crochê, artesanato e desenhos). Com a mobilização dos seus valores de criação, Renata encontra recursos para enfrentar o vazio existencial, seu sofrimento e suas ideações suicidas. Como projeto psicoterapêutico, foi proposto a ela fazer uma imersão na criação por meio da realização de desenhos a fim de dar vazão aos seus sentimentos negativos e, assim, ressignificar o seu desamparo vivenciado desde a infância e potencializado durante a gestação. Percebe-se que Renata é uma mulher praticamente sozinha, sem apoio nos cuidados ao filho e com uma grande sobrecarga física e emocional, que a faz questionar seu desempenho como mãe. Isso tudo coloca em jogo o que o entorno (sua mãe) espera dela e o seu ideal de boa mãe, em contraposição ao cuidado desejado e efetivamente recebido pela própria mãe.
Toda a vivência dos valores existenciais por Renata a levam a outro encontro com seu sentido de vida. Tais valores a impulsionam, por sua vez, a um processo de autotranscendência, uma das resoluções para encontrar seu sentido de vida na experiência do sofrimento. Sobre a autotranscendência, Frankl (2019) afirma que é uma condição imperativa para a busca e o encontro de sentidos. Por meio da transcendência, Renata consegue sair de si mesma e ir em direção ao outro (seu filho) e ao mundo (seus sonhos, sua capacidade criativa). Com isso, favorecer a autotranscendência de Renata tem como objetivo auxiliá-la a sair de um lugar autocentrado no sofrimento para se endereçar a alguma coisa que não seja ela mesma, como por exemplo seu filho e sua formação profissional. Como uma capacidade potencial de todo ser humano, Renata precisa transcender para experimentar sua humanidade em plenitude. Ao fazer isso, ela encontra um caminho para o sentido de sua vida, quando ela se envereda no caminho da autotranscendência por meio do amor ao filho e do encontro de sentido pela vivência dos seus valores criativos a partir dos seus desenhos. Isso tudo tem contribuído para que Renata vislumbre outras possibilidades que não seja por um fim à sua vida por meio do suicídio.
Enfrentar adversidades
A pressão da vida adulta, com os questionamentos e as demandas pela necessidade de um emprego que suprisse suas necessidades e as do seu filho eram traduzidos por Renata, como por exemplo, seu aperfeiçoamento profissional e a construção de uma carreira em nível superior se agregavam a essas demandas. Tomar decisões e traçar caminhos possíveis para seguir seus planos e sonhos futuros pareciam para ela serem grandes desafios. Enfrentar as exigências como mãe solteira, trabalhadora e estudante pode ser ao mesmo tempo um fator protetivo face a rede de apoio disponível no trabalho, mas também um fator de risco face a ansiedade em cumprir todos os papeis exigidos e responder as dificuldades de solução para seus problemas, dos mais básicos aos mais complexos.
Destaca-se que dados de diversos países apontam que a maioria de quem tenta suicídio são mulheres jovens, com idades inferiores a 30 anos, de classe social baixa e que utilizam como principal método para se suicidar a overdose de medicamentos ou o uso de veneno (LIMA e SÁ, 2018), o que é exatamente o perfil de Renata. Ela é uma mulher jovem de 23 anos, de baixa renda, sem uma rede de apoio sólida e que utilizou medicamentos na primeira tentativa de suicídio aos 8 meses da gestação. Ela representa o clássico perfil epidemiológico de mulheres que cometem suicídio, mas que mobilizou seus parcos recursos pessoais para lutar contra a angústia avassaladora que a levou ao desejo de morrer e que a fez buscar psicoterapia.
A busca pelos sentidos na vida
Com o histórico de tentativas de suicídio e imersa em pensamentos de ideação suicida, a abordagem teórica-conceitual proposta por Viktor E. Frankl impactou Renata. Nessa abordagem, o ser humano é impulsionado pela busca de sentidos na vida, a qual é possível ocorrer mesmo nos momentos de maior adversidade. Buscar e dar sentido à vida é possível mesmo em experiências de sofrimento inevitável (FRANKL, 2019). Não o negando e indo propositalmente de encontro ao sofrimento, sem ser masoquista, mas sim exercendo seu potencial genuinamente humano de transformar o sofrimento numa conquista, enfrentar o sofrimento que leva ao suicídio é possível por meio da liberdade de escolha e da responsabilidade diante das escolhas.
Esses valores eram vivenciados por Renata por meio de sua criatividade, exercida em atividades propostas pela abordagem como crochê, artesanato e desenho, sendo esse último um sinal do seu sonho adolescente de ser desenhista. Os valores experienciais se sustentam na percepção da pessoa de que, além de dar, é possível receber no encontro e na conexão com o outro por meio do exercício das suas potencialidades genuinamente humanas, como a vivência do amor. No caso de Renata, seu encontro amoroso com o filho, para o qual ela se direciona, era a experiência na qual ela vivenciava valores experienciais. Os valores atitudinais, ou seja, as atitudes que tomamos frente ao sofrimento para extrair sentidos mesmo habitando nossas dores existenciais, eram vivenciados por Renata na busca efetiva por ajuda em seus momentos de crise. Mesmo diante de um sofrimento insuportável é possível tomar atitudes para dizer sim a vida por meio da vivência dos valores (FRANKL, 2011).
Parece que para Renata o apego e vínculo afetivo ao filho, bem como a representação do amor materno como sentido de vida, mobilizaram nela a autotranscendência na necessidade de seguir em frente com sua vida. Renata parece enxergar no filho uma forma e um conteúdo para preencher seu vazio existencial. Ao retornar aos pensamentos suicidas, ela procura ajuda pensando no bem do filho, porque “─ Ele precisa de mim!”. Infelizmente, isso ainda não é o suficiente para impedi-la de tentar novamente o suicídio, evidenciando, assim, como o suicídio é um fenômeno complexo e multicausal. Isso nos convoca, como psicoterapeutas, a trabalhar no manejo clínico de todos os fatores protetivos que conseguirmos identificar, para além da maternidade que já impulsiona Renata a desejar viver!