A neurocientista brasileira Juliane Midori Ikebara, da Universidade Federal do ABC (UFABC), comenta seu estudo envolvendo a importância dos neurônios inibitórios na codificação da informação espacial. Segundo ela, essas células funcionam como um GPS no nosso cérebro – estão localizadas no hipocampo, uma região relacionada à memória.
A pesquisa envolve técnicas de engenharia genética e imagens de cálcio “in vivo” para mapear esses neurônios enquanto o rato executa alguma tarefa ou explora um ambiente. Imagem de cálcio é um método de captura da atividade elétrica dos neurônios, que geram movimento de cálcio dentro deles. O método é obtido por meio de emissão de fluorescência de proteínas especiais.
Atualmente, a neurocientista está realizando o doutorado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, sob supervisão do neurocientista brasileiro Avishek Adhikari e colaboração do psicólogo brasileiro Fernando Midea Cuccovia Vasconcelos Reis.
Ikebara pretende retornar ao Brasil para se dedicar ao seu estudo sobre a privação de oxigênio (anóxia) em recém-nascidos. A pesquisadora lembra que as consequências dessa privação incluem paralisia cerebral, epilepsia, déficits motores e cognitivos. Alguns estudos indicam que essa privação é um fator de risco para surgimento de outras doenças neurológicas, como autismo e esquizofrenia.
Na privação de oxigênio neonatal, há morte de muitos neurônios no hipocampo ao longo do desenvolvimento, com alteração no número de neurônios inibitórios e uma diminuição na produção de células nervosas (neurogênese) na fase adulta. Esses fatores alteram o resultado de testes comportamentais relacionados à memória, observando-se déficit de memória espacial e memória de trabalho.
A pesquisadora é bacharel em Ciência e Tecnologia e mestre pelo programa de Neurociência e Cognição pela Universidade Federal do ABC. Atualmente, é aluna de doutorado pela mesma instituição, integrando a equipe do laboratório chefiado pelo neurocientista brasileiro Alexandre Hiroaki Kihara desde 2013.
Em 2018, recebeu o prêmio Juarez Aranha Ricardo, prêmio máximo em neurociência para alunos de pós-graduação pela Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento (SBNeC) pela sua pesquisa sobre os efeitos da privação de oxigênio neonatal em ratos na memória de longo prazo na vida adulta.
Em que estudo está trabalhando atualmente?
Atualmente estou trabalhando com “place cells”, que são neurônios excitatórios que codificam informação espacial. Essas células foram descobertas por John O’Keefe [neurocientista da Universidade de Londres], e Jonathan Dostrovsky [neurocientista da Universidade de Toronto] em 1971, e mais tarde, junto com outro pesquisadores, May-Britt Moser e Edvard Moser [do Instituto Norueguês de Tecnologia] receberam o prêmio Nobel em Fisiologia. Essas células são como um GPS no nosso cérebro. Elas se encontram no hipocampo, uma estrutura relacionada à memória. A minha pesquisa visa entender qual é o papel dos neurônios inibitórios para essa codificação. Assim, utilizando técnicas de engenharia genética e imageamento de cálcio ‘in vivo’, nós conseguimos mapear esses neurônios enquanto o animal executa alguma tarefa ou explora um ambiente.
Qual o impacto da privação de oxigênio para o cérebro?
O encéfalo humano é um órgão que consome a maior parte da energia total que é gerada no corpo. Seu alto consumo energético corresponde a um gasto de cerca de 20% de oxigênio e 25% de glicose, que é utilizado para manter a atividade das células nervosas. Portanto, a redução de um desses fatores energéticos impacta em seu funcionamento adequado. Em casos de privação de oxigênio em neonatos, as consequências vão desde paralisia cerebral, epilepsia até déficits motores e cognitivos. Alguns estudos indicam que esta privação é um fator de risco para desenvolvimento de outras doenças neurológicas, como autismo e esquizofrenia.
De forma aguda, a privação de oxigênio leva a um aumento de morte celular e alterações nos níveis de algumas proteínas que podem estar relacionadas com a cascata de morte celular. A longo prazo, há uma redução de neurogênese hipocampal [parte integrante do sistema límbico, com papel na aprendizagem, na codificação e consolidação da memória e na navegação espacial]. Em nossos estudos atuais, temos observado que a privação de oxigênio neonatal afeta os neurônios inibitórios ao longo do desenvolvimento. Estes neurônios inibitórios são importantes para modular a atividade neuronal, criando padrões e ritmos que vão armazenar informações.
A privação de oxigênio é uma das causas mais prevalentes de mortalidade neonatal, principalmente em recém-nascidos prematuros. Poderia comentar?
A prevalência de mortalidade neonatal maior em recém-nascidos prematuros se deve principalmente ao centro respiratório imaturo desses bebês, que falham na sinalização do ato de respirar. Mas não só o pulmão ainda não está completamente desenvolvido, como todos os outros órgãos são mais frágeis, o que pode levar a diversas complicações. Portanto, é necessário um suporte maior para estes recém-nascidos prematuros. Além disso, há muitas pesquisas e desenvolvimento de técnicas terapêuticas para recém-nascidos que tenham sofrido uma injúria hipóxica-isquêmica [sofrida pelo sistema nervoso central do recém-nascido por asfixia]. No entanto, ainda são necessários muitos estudos em prematuros.
Qual a importância do ATP para os neurônios?
O ATP, ou adenosina trifosfato, é uma molécula que fornece energia para conduzir muitos processos em células vivas. No caso dos neurônios, o ATP é importante para a geração do potencial de ação [a capacidade das células conduzirem sinais elétricos e assim conduzirem informações umas as outras, sendo crucial para a sobrevivência]. Alguns estudos mostraram que logo após a ocorrência de um potencial de ação, os níveis de ATP no neurônio caem muito, indicando que há um alto e rápido consumo do ATP. Este processo ocorre quando as correntes que chegam ao neurônio atingem um limiar de disparo e quando alcançam o axônio. O processo se inicia onde há a entrada de íons de sódio (Na+) e saída de íons de potássio (K+), fazendo com que o neurônio, que possui um estado de repouso com potencial negativo, se torne positivo, transmitindo, assim, uma corrente. Para que o neurônio retorne ao seu estado inicial de repouso, há bombas de sódio e potássio que gastam ATP para que funcionem adequadamente.
Quando há a privação de oxigênio, as mitocôndrias [estão relacionadas com o processo de respiração celular], responsáveis pela produção de ATP, passam a não ter mais oxigênio disponível para a sua produção. Isso pode causar falhas nas bombas dos neurônios, inclusive de sódio e potássio, levando a um acúmulo de íons como cálcio e como consequência, a excitotoxicidade [processo patológico pelo qual células nervosas são danificadas ou mortas por estimulação excessiva] e morte celular.
Os estudos indicam que a privação de oxigênio neonatal induziu déficits na aquisição e desempenho da memória de referência espacial em ratos…
O hipocampo é uma estrutura que está relacionada à memória. A descoberta de sua função se deu graças ao paciente H.M., que possuía uma forma severa de epilepsia, sendo necessária a remoção bilateral do hipocampo. A partir disso, observou-se que o paciente não conseguia adquirir novas memórias declarativas.
A formação de novas memórias requer a ocorrência de processos de plasticidade sináptica, que seria o aumento ou diminuição, e formação de novas sinapses. Portanto, é uma estrutura que há uma demanda metabólica muito alta. Na anóxia neonatal, de forma aguda, há morte de muitos neurônios no hipocampo, ao longo do desenvolvimento, uma alteração no número de neurônios inibitórios e, a longo prazo, uma diminuição na neurogênese adulta. Todos estes fatores refletem em testes comportamentais relacionados à memória, observando-se déficit de memória espacial e memória de trabalho.
Atualmente estamos realizando registros eletrofisiológicos ‘in vivo’ para entender se a privação de oxigênio causa alterações dos padrões de atividade neural e como as informações do hipocampo estão sendo transferidas e processadas no córtex pré-frontal [região cerebral está relacionada ao planejamento de comportamentos e pensamentos complexos, como a expressão da personalidade].
A Sra. estudou a hipotermia terapêutica em roedores. Os resultados mostraram que o TH reduziu a neurodegeneração hipocampal. O que isto significa?
A hipotermia terapêutica é um método que reduz a temperatura corporal para cerca de 35ºC. A aplicação na clínica já é realizada em bebês que sofrem anóxia e foi desenvolvida graças aos estudos em roedores. Os roedores neonatos em geral possuem uma temperatura corporal mais baixa que de um ser humano. Com as tentativas de se criar um modelo de hipóxia neonatal, observou-se que, com um controle de temperatura, as lesões causadas pela privação de oxigênio eram mínimas, ou seja, a hipotermia agiu como sendo neuroprotetora. No entanto o uso desta prática na clínica foi padronizada em bebês recém-nascidos à termo.
Em nosso estudo, investigamos principalmente a fase do desenvolvimento do roedor que corresponde à de um recém-nascido prematuro, mas ainda há poucos estudos. Por isso, queremos saber se, de fato, a hipotermia terapêutica também poderia se aplicar em prematuros que sofreram anóxia neonatal. Ainda não se sabe exatamente os mecanismos pelo qual a hipotermia é neuroprotetora, mas acredita-se que há uma diminuição do metabolismo, uma redução de geração de radicais livres e de inflamação e pela inibição da excitotoxicidade e apoptose, morte celular.
A atividade dos TLRs tem sido associada à esclerose lateral amiotrófica (ELA), acidente vascular cerebral, doença de Alzheimer e doença de Parkinson. O que são os TLRs e qual a sua importância para o sistema nervoso?
Os toll-like receptors, ou TLRs, são receptores que fazem parte do sistema imunológico inato das células e podem iniciar uma resposta imunológica após a exposição de microrganismos ou moléculas específicas, sendo, portanto, os principais sistemas de detecção. No cérebro, os TLRs são considerados parte de uma estrutura que faz a interação do sistema nervoso com o imunológico. Uma importante célula do sistema nervoso que possui função imunológica são as células da glia [são células não neuronais do sistema nervoso central que proporcionam suporte e nutrição aos neurônios] e, em especial, a microglia. [são as células imunológicas do cérebro]. Nas doenças citadas, há estudos que mostram que algumas proteínas, moléculas ou genes levam a ativação dos TLRs, que iniciam uma resposta microglial inflamatória e liberação de citocinas [proteínas que regulam a resposta imunológica]. A neuroinflamação é uma resposta fundamental do sistema nervoso, mas quando ela prolongada e não controlada, ela se torna potencialmente prejudicial podendo resultar em danos celulares.
Em nosso laboratório, atualmente há uma doutoranda, Débora Sterzeck, que está investigando o papel dos TLRs na anóxia neonatal e a resposta microglial.