Pioneira no Brasil do estudo do amor patológico, a psicóloga Eglacy Cristina Sophia, doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP, explica quais são os processos neurobiológicos envolvidos na paixão. Ela é especialista em psicodrama clínico, em tratamento de dependência química e psicologia clínica.

Autora do livro “Como Lidar com Amor Patológico”, Sophia dedicou-se ao estudo do tema pelo Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-AMITI), do Instituto de Psiquiatria da USP. Ela mantém uma escola voltada para ensino e pesquisa sobre esse tema – a Escola de Reabilitação do Amor Patológico.

Apesar de não ser reconhecido oficialmente como transtorno, pois não consta no DSM-5, o quadro do amor patológico é conhecido popularmente como transtorno de amor patológico.

A antropóloga Helen Fisher, da Universidade de Rutgers, nos Estados Unidos, ao lado do psicólogo Art Aron e da neurocientista Lucy Brown, fizeram exames de ressonância magnética no cérebro de 37 pessoas loucamente apaixonadas. Então ela escaneou cérebros de pessoas olhando para uma foto da pessoa que amavam e olhando para uma foto neutra.

Os exames mostraram atividade numa pequena região junto da base do cérebro chamada área tegmental ventral. Trata-se de um dos principais centros de dopamina, neurotransmissor que está relacionado com diversas funções do nosso organismo, incluindo a sensação de prazer e o humor. Esse “estimulante natural” é então pulverizado para muitas regiões do cérebro. 

Essa área do cérebro faz parte do sistema de recompensas, que é o circuito que processa a informação relacionada à sensação de prazer ou de satisfação. Ela antecede o processo de raciocínio cognitivo e das emoções e integra o núcleo reptiliano do cérebro, associado ao querer, à motivação, à concentração e ao cobiçar. O curioso é que essa região também se torna ativa quando se sente a excitação da cocaína.

Os exames de ressonância magnética ainda demonstraram que outra região cerebral envolvida na paixão – é o núcleo accumbens. Essa área é “o centro do prazer”, localizado numa posição central e inferior do cérebro, que está relacionada ao prazer, ao vício, ao risco e ao medo. É também a região do cérebro que se torna ativa quando se está disposto a correr enormes riscos para grandes ganhos e grandes perdas. 

O funcionamento cerebral de uma pessoa apaixonada é semelhante a situações como fome ou sede. As respostas são excessiva energia. O resultado é a sensação de bem-estar ao lado da pessoa amada, a perda do apetite e do sono, o emagrecimento e a obsessão pelo outro.

 O que leva a crer que a paixão nada mais é do que uma necessidade primária à espera de ser saciada. É uma espécie de força motivadora e não de emoção, como estamos acostumados a defini-la. Isso explica o que já conhecemos na prática: uma boa dose de irracionalidade e desejos incontroláveis.

A dinâmica cerebral varia de acordo com a duração do relacionamento. Quando o ímpeto da paixão se esvazia e a ligação entre as pessoas caminha para o amor, um estado mais sereno, verifica-se pequenas alterações nos circuitos do cérebro. Então, áreas ligadas a sentimentos mais duradouros são ativadas.

A exaltação e a obsessão pelo ser amado, comportamento habitual dos apaixonados, se inicia com um impulso básico de acasalamento. Provavelmente os circuitos do cérebro envolvidos no amor romântico de desenvolveram há milhões de anos para permitir que nossos antepassados concentrassem energia de acasalamento em apenas uma pessoa por vez.

“Estamos também testemunhando a ascensão do amor romântico.  Nos EUA, 91% das mulheres e 86% dos homens não se casariam com alguém que tem todas as qualidades que procuram em um parceiro ou parceira,  se não estivessem apaixonados por aquela pessoa”, disse Fisher.

Fisher observou que os relacionamentos passam por três fases: a atração, a paixão e a vinculação. A atração seria promovida pela ação de um hormônio sexual, a testosterona. Já na paixão, ocorrem descargas de neurotransmissores chamados dopamina, noradrenalina e serotonina. Na vinculação, desempenham um papel importante os hormônios como a vasopressina e oxitocina.

O problema é que essas etapas não estão sempre conectadas. É possível sentir um profundo apego por um parceiro de longa data, enquanto sente uma intensa paixão por outra pessoa.  Resumindo, nós somos capazes de amar mais de uma pessoa por vez.

O amor patológico é marcado pela postura obcecada, o objeto do desejo torna-se prioridade, a pessoa não consegue mudar o foco?

Exatamente. Um dos critérios de diagnóstico do amor patológico é a pessoa despender muito tempo e energia com o parceiro ou a relação afetiva e, por consequência, abandonar suas atividades anteriores ao relacionamento, como cuidados à família, vínculos sociais, atividades profissionais e até o autocuidado, priorizando o outro a si próprio. Então, há uma característica altruística nesse quadro. Desde o meu estudo de mestrado, confirmei, em 2009, que uma das características que diferencia as pessoas com amor patológico em relação às pessoas saudáveis é que elas tentam manter o relacionamento a qualquer custo, apesar de estarem insatisfeitas, apesar de terem consciência de elas não estão felizes e os parceiros também não. Uma das frases comuns no discurso da pessoa com amor patológico é: “Eu me sinto preso a esse relacionamento”.

Essas pessoas produzem desarranjos do passado, a vivência em famílias desajustadas, por exemplo?

A pessoa com amor patológico costuma reproduzir um modelo relacionamento que ela desenvolveu com a mãe ou o primeiro cuidador. Ela normalmente tem um tipo de apego John Bowlby [psicólogo, psiquiatra e psicanalista britânico] chamou de ansioso ambivalente. É aquela relação em que a criança tinha uma ambivalência da mãe, em que ela não sabia quando poderia contar com a mãe numa situação amedrontadora ou nova e quando não. Ela permanece sob ameaça, ansiedade a maior parte do tempo. Por exemplo, numa determinada situação em que a criança espalhava os brinquedos pelo chão, a mãe, quando de mau humor, ameaçava se separar, brigava e batia a porta. Num outro momento, a mãe era acolhedora, ensinava e orientava. A criança então nunca sabe se ela vai poder contar com aquele modelo ou não, gerando na vida adulta uma ansiedade de separação, o qual ela costuma repetir nos modelos de relacionamentos futuros. Há vários estudos que confirmam a repetição desse modelo mais desajustado e patológico de se relacionar.

O amor patológico surge em pessoas que cresceram em famílias desajustadas?

Em relação a famílias desajustadas, não temos estudos. Mas Robin Norwood [terapeuta familiar norte-americana], autora de “Mulheres que Amam Demais”, cita casos de pacientes que ela atendeu como psicoterapeuta de casal. A partir dessas experiências, ela constatou que mulheres com amor patológico vêm de famílias desajustadas e pais alcoolistas, com uma carência afetiva muito grande.

O medo é a essência desse amor ou o amor patológico se assemelha a dependência química?

O medo excessivo é uma característica emocional ou psicológica que está associada às pessoas com amor patológico. Elas costumam ter medo, ansiedade, carência emocional. Também possuem muito medo de perder o parceiro, permanecem em desespero, não conseguem controlar esse comportamento patológico. Na psicoterapia, precisamos tratar esse medo excessivo para a pessoa conseguir superar as dificuldades relacionamento. Há também uma semelhança do amor patológico com dependência química, diagnosticada por critérios psiquiátricos. Em 2004, publicamos o primeiro artigo sobre o assunto e fizemos uma correlação entre o diagnóstico de dependência química e o amor patológico e encontramos seis critérios em comum entre esses quadros. Por exemplo, sinais de abstinência quando o parceiro está distante. Surgem, por exemplo, sintomas como taquicardia, tensão muscular, insônia, mudança de apetite. Ou seja, o quadro de abstinência se reflete no organismo, exatamente como acontece na dependência química, quando o dependente não encontra sua droga de escolha. Um segundo critério é que ato de cuidar do parceiro ocorre em maior quantidade que o indivíduo gostaria. Ele passa a focar todo esse cuidado no parceiro. Outro critério é que o amor patológico é mantido, apesar dos problemas pessoais e familiares decorrentes do relacionamento problemático. O sujeito não consegue modificar ou controlar essa conduta. Fomos nós que elencamos esses critérios desde o primeiro artigo científico. Nossos estudos sobre amor patológico são pioneiros no Brasil. Começamos em 2004 no ambulatório dos múltiplos transtornos do impulso do AMITI.

Quais os fenômenos químicos envolvidos na paixão?

A partir de 2004, exatamente quando iniciei meu estudo de mestrado no Brasil, começaram a surgir nos Estados Unidos e na Europa vários estudos sobre a neurobiologia da paixão ou a química do amor, como foi chamada pela mídia. Uma das autoras pioneiras foi Helen Fisher, nos Estados Unidos, e também Donatella Marazziti, na Itália. Helen Fisher conduziu um estudo em que foram feitos exames de neuroimagem com indivíduos olhando para a foto da pessoa por quem eles estavam apaixonados. A pesquisadora observou que os fenômenos químicos presentes no organismo dos enamorados passam por três fases. O primeiro momento seria atração, que está sob responsabilidade biológica da testosterona [hormônio sexual], presente tanto em meninos quanto em meninas. A segunda fase é a paixão, um impulso associado à atividade de neurotransmissores como dopamina, noradrelina e serotonina.  A noradrelina aumenta excitação e batimento cardíaco quando a pessoa olha para a foto do apaixonado. A serotonina traz aquela sensação descontrole do apaixonado. Já a dopamina, traz sensação de bem-estar relativa ao momento da paixão. Se a pessoa conseguiu passar pela fase paixão, ela poderia chegar à terceira etapa, que é a vinculação. Nessa fase há um laço para que os parceiros permaneçam juntos. Há dois hormônios importantes nesse processo, que é oxitocina, conhecida também como o hormônio que promove sentimentos de amor, união social e bem-estar, e a vasopressina, que é o hormônio da fidelidade. Isso já era confirmado entre animais, como ratazanas da pradaria, que conseguiam manter parceiro fixo quando influenciados pela vasopressina. Fisher confirmou que nos humanos esse fenômeno se repete. No meu livro “Como Lidar com o Amor Patológico”, faço um gráfico que mostra que a pessoa com amor patológico estaria presa na fase paixão. Apesar de ter passado muitos anos, ela não consegue evoluir para vinculação, que é fase mais tranquila do relacionamento, o que gera um sofrimento biológico.

Algumas pessoas estariam mais sujeitas a paixão do que outras? Tem a ver com temperamento?

Provavelmente sim, aquelas pessoas que sob efeito de hormônios específicos estariam mais sujeitas à paixão. Temperamento para nós psicólogos é componente hereditário da personalidade; e o caráter é o componente aprendido a partir de estímulos do ambiente, que pode ser modificado em terapia. Observamos que temperamento da pessoa da com amor patológico é predominantemente de esquiva ao dano, ou seja, uma elevada ansiedade e pessimismo e medo excessivo de ficar só. No que se refere ao caráter, a pessoa com amor patológico tem a característica de baixo autodirecionamento, isto é, elas tendem a se culpar pelos acontecimentos, têm pouca meta e baixa autoestima. O lado bom é que pode ser modificado. Outra característica é a elevada autotranscedência, a pessoa tem baixo autoconhecimento e alta idealização do outro, que considera como alma gêmea.

O que acontece no cérebro quando o ímpeto da paixão se esvazia?

O relacionamento inicia-se na atração e depois progride para a fase da paixão. As pessoas saudáveis evoluem para o amor, que seria o momento de maior estabilidade em se aceita o outro para com ele é. Ou então decidem que a outra pessoa não é adequada para que haja uma continuidade no relacionamento. A pessoa com amor patológico não tem opção, ela fica presa na paixão, mesmo em relacionamentos longos e com tempo bastante superior ao esperado. Segundo estudos, a paixão teria duração de seis meses a dois anos, aproximadamente. Eu já atendi pacientes que estão presos na ebulição da paixão mesmo quando o parceiro já saiu de casa e formou outra família, por exemplo.

O que determina o patológico do normal é a cultura? Nossa sociedade cultua o desapego?

O amor patológico não é determinado somente pela questão cultural, há critérios biológicos, psicológicos e familiares envolvidos. Acho que hoje sim, que nossa sociedade cultua o desapego. Zygmunt Bauman [sociólogo e filósofo polonês, autor de “Amor Líquido”] fala sobre o amor líquido, sobre as relações terem sido transformadas em mercadoria, da tendência a não vinculação. É o contrário do amor patológico, em que a pessoa se sente muito apegada a ponto de se sentir presa à relação. É um comportamento disfuncional que traz prejuízos para ela e para o parceiro.