Na história das civilizações, muitas disputas de poder entre as diferentes correntes de pensamento científico ocorreram na busca por compreender a humanidade e seu principal protagonista: o ser humano. Contudo, é próprio dessas correntes científicas e seus pensadores, hoje chamados cientistas, se desafiarem para descobrir e tentar responder qual dimensão da existência humana (corporal, psíquica ou espiritual) governaria a vida e a saúde da humanidade de sua época. Cada uma dessas dimensões foi destacada no pensamento      científico majoritário de uma época, atribuindo contornos às formas de pensar e conceber o ser humano e seus modos de existir. Freud, por exemplo, teorizou com a Psicanálise que o homem é um ser movido por pulsões na busca de um prazer obtido pela redução de tensões entre instâncias psíquicas, no caso o Id, o Ego e o Superego.

Saúde sob perspectiva holística    

Nos dias atuais, embora existam várias correntes de pensamento científico, todas são unânimes em admitir que o ser tenha uma totalidade integrada por aquelas diferentes dimensões. Nisso reside o conceito atual de saúde: não como oposto de doença, mas sim como um completo bem estar físico, psíquico, social e espiritual. O ser humano é tomado sob uma perspectiva holística, que ultrapassa, inclusive, o modelo biopsicossocial para propor um conceito ampliado de saúde, que extrapola a ideia de saúde como ausência de doenças e estabelece interseções, principalmente, entre corpo e mente (OMS, 2006).

Corpo e mente nunca estiveram tão conectados como nos últimos nove meses, quando teve início, em dezembro de 2019, a pandemia da Covid-19 na província de Wuhan na China, mas que rapidamente se propagou para o mundo. Desde então, as pessoas têm experimentado um novo modo de ser e existir, com impactos não somente para a saúde física e mental, mas em todas as esferas da vida humana.

Estudos confirmam que essa pandemia teve prejuízos incontestáveis para a humanidade, especialmente para sua saúde mental. Mudanças compulsórias e abruptas se tornaram desafios para grande parte da população, que viu sua rotina alterada significativamente pelas exigências do isolamento social, das rígidas medidas sanitárias, do trabalho remoto (em casa), da hiperconvivência com a família ou mesmo de uma solidão sentida pelo distanciamento dos seus queridos.

Não demorou muito para que a Internet se tornasse o principal meio de contato social e, com isso, protagonista com papel positivo, mas também negativo para o drama humano e as relações pessoais. Tanto as fakenews, divulgando tratamentos preventivos, mas não devidamente comprovados para Covid-19, como as diversas piadas sobre o “antes e depois da pandemia”, figuraram na Internet como verdadeiros vilões para o bem estar das pessoas. A dimensão do corpo, indissociável da mente, foi satirizada com comparações entre o corpo pré e pós-pandemia.

O peso da Pandemia

As preocupações com o corpo e a aparência física se pautaram, em sua grande maioria, no engordar e não “perder o que ganhou” de peso durante a pandemia. Nessa onda do humor sarcástico da Internet sobre o corpo pandêmico, não demoraram a aparecer memes do tipo “quando acabar tudo isso vai ser um tal de: ´nossa como você engordou!´”. Sem a intenção de criminalizar o humor, até porque ele pode ser uma estratégia engajada para enfrentar desafios e ameaças, esse sarcasmo martirizou nossos corpos na pandemia. As mudanças vividas no corpo durante uma pandemia precisam ser entendidas para além do desejo de ter uma silhueta e beleza física “socialmente aceitáveis”. São adaptações possíveis a um novo estado de ser e existir durante um momento de existência crítico nunca antes vivido ou sequer imaginado na contemporaneidade. Logo, o peso da pandemia resultou na combinação entre      o estresse, próprio de um momento como esse, e outros fatores, como, o sedentarismo compulsório provocado pelas medidas de restrição e isolamento social. Mas será que estas mudanças corporais podem indicar algo mais?

Diríamos que sim, mas antes achamos importante refletir sobre como os padrões estéticos se estabelecem relacionados a uma época, uma cultura e um contexto social historicamente determinado. Os contextos social, histórico e cultural definem o que é ou não esteticamente aceitável. Na compreensão contemporânea da existência humana, a dimensão do corpo vem ganhando um status preditivo e classificatório do valor da pessoa. As culturas da beleza, do consumo, do fitness e tantos outros mercados vendem a ideia de que o corpo bonito é o corpo magro, reafirmando que, para ser feliz, a pessoa deve se enquadrar em um padrão estético social e culturalmente prescrito. Nisso, estabelece-se a tradição de nossa época, para a qual existe um livre comércio entre quem vende e quem compra a beleza e a magreza como sinônimos de felicidade.

Logoterapia e o Ser na Pandemia    

A maneira como nossa época prescreve o ser e o existir é um retrato fidedigno da perda das tradições, como Viktor E. Frankl já enunciou nos idos dos anos de 1930, mas publicou em 1946 (1946/2005). Fundador da Logoterapia e Análise Existencial, Frankl apresenta uma visão vanguardista sobre o ser humano e sua existência, desenvolvendo uma ontologia dimensional que integra três dimensões para compreensão da pessoa: somática (corpo), psíquica (mente) e noética (espírito). Cabe esclarecer que a dimensão      espiritual para Frankl      não está atrelada ao sentido do divino ou religioso, mas sim da espiritualidade, ou seja, o potencial humano para a busca de significados para a vida, transcendendo o que é tangível/material para alcançar uma conexão com um propósito e sentidos de vida além de si mesmo.

A Logoterapia e Análise Existencial é um modelo teórico-clínico baseado no pressuposto de que todo ser humano é capaz de evocar sua liberdade de escolha e responsabilidade diante de condições falsamente todo-poderosas na busca de um sentido de vida (Frankl, 1974/2003). Baseado em uma visão antropológica do ser humano, que se fundamenta no Existencialismo e na Fenomenologia, para esse modelo, tanto usado na clínica como em outras áreas, como a educação, por exemplo, não há sentido de vida a priori. Ele pode ser alcançado na medida em que se transcende o presente da existência na direção de se investir nas potencialidades humanas, ou seja, naquilo que a pessoa pode experimentar em termos de valores vivenciais, criativos e de atitude, para preencher de sentido um vazio existencial (1946/2005; 1974/2003). Esse vazio existencial origina-se,fundamentalmente, na perda de tradições, o que nos remete a entender a pandemia como um condicionante, mas não determinante, desse vazio, para o qual a liberdade de escolha humana é interrogada.

Pessoas desamparadas pela falta de tradições são facilmente encontradas em todos os lugares, especialmente nas nossas práticas clínicas. A grande dificuldade para elas é enfrentar os momentos de sofrimento, somada aos sentimentos de angústia e de inseguranças sobre si mesmas. Vivenciar uma falta generalizada de sentido na vida aparece como mandatória de muitas épocas, e nesta não é diferente, especialmente neste momento de pandemia. Tudo isso tem impactos significativos nos processos de saúde e adoecimento, seja na dimensão corporal, psíquica ou espiritual do Ser, o que tem originado os mal-estares contemporâneos travestidos de problemas psicossomáticos.

Comendo nossos afetos?          

Dentre as mudanças provocadas pela pandemia da Covid-19 a que teve maior impacto na rotina das pessoas foi o isolamento social. A rotina, ora perdida e tão importante para nossa organização e previsibilidade na vida, foi desordenada pela pandemia. Estudos afirmam que situações ameaçadoras, como a da pandemia da Covid-19, são disparadoras do aumento da produção de cortisol, o hormônio do estresse. Responsável por controlar funções importantes do organismo humano, a produção do cortisol está diretamente ligada a mecanismos estressores, com respostas fisiológicas, como taquicardia, insônia, dor de cabeça, e psicológicas, como irritabilidade, impaciência, transtornos alimentares, ansiedade e até depressão.

Embora seja um estado esperado de prontidão e alerta para responder a ameaças e desafios, o estresse é um problema complexo no contemporâneo devido suas manifestações psicossomáticas e impacto significativo na saúde e qualidade de vida. Logo, não precisamos dizer que o cortisol foi um grande vilão no aumento e piora do estresse para a população neste momento da pandemia. Estima-se que em situações de isolamento prolongado e privação de convívio social, como na pandemia da Covid-19, os níveis de cortisol possam aumentar significativamente.

Para dar conta de tamanha ansiedade face à imprevisibilidade do futuro pós-pandemia, nossas relações com a comida e nossas escolhas alimentares são influenciadas pela “indigestão” das informações, por vezes desencontradas em tantos outros fatores que surgem neste cenário caótico e desorganizador. Lidar com isso exige o exercício da nossa liberdade de fazer escolhas para transcender este sofrimento inevitável, como diria Frankl (1946/2005). Daí, podemos então nos perguntar: Será que não estamos comendo menos com a fome do corpo e mais com a fome do sofrimento da alma?

E MAIS…

O fenômeno da “Infodemia

Com o isolamento social, as pessoas passaram a se atualizar praticamente em tempo real sobre a evolução da pandemia, no país e no mundo. Com isso, o excesso de informações, que mais estressa do que ajuda, e o sensacionalismo midiático em torno do tema, passaram a ser estressores responsáveis por adoecimento e sofrimento psíquicos. A isso se deu o nome de Infodemia que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2020), ocorre em paralelo à pandemia. A Infodemia é o acesso excessivo às informações, que nem sempre são fidedignas e confiáveis      ou têm o intuito real de informar. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2020) esse fluxo desmedido de informações pode agravar os efeitos da pandemia da Covid-19. Sem conseguirem se certificar do que estão acessando, on line e on time (em tempo real), as pessoas ficam mais ansiosas, inseguras, deprimidas e emocionalmente exaustas. Isso também provoca a compulsão por comer.

Paradoxalmente, instaura-se uma urgência subjetiva que imprime uma corrida para se atualizar o tempo todo, sem necessariamente refletir e ter tempo      para “digerir” todas as informações. Nesse frenesi da Infodemia, decisões e atitudes desesperadas são tomadas impulsivamente, na tentativa de retomar o mínimo controle da vida. Afinal, nenhuma informação que devolva a “normalidade” da existência e preencha o vazio existencial que a pandemia impôs pode ser perdida.

REFERÊNCIAS:
Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
Frankl, V.E. (1946/2005). Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. (21a. ed.) Petrópolis. Ed. Vozes.
Frankl, V. E. (1974/2003). Sede de sentido. São Paulo: Quadrante.
Organização Mundial da Saúde (OMS, 2006). Constituição da Organização Mundial da Saúde. Documentos básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol em: https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_sp.pdf
Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020). Infodemic Management – Infodemiology. Disponível em: https://www.who.int/teams/risk-communication/infodemic-management
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2020). Entenda a Infodemia e a Desinformação na Luta Contra a COVIDA-19. Departamento de Evidência e Inteligência para Ação em Saúde. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf?sequence=14