A utilização de drogas é considerada atualmente pela saúde pública um problema grave, perigoso e de difícil solução. Conforme o autor do livro ‘Dependência química: causas, consequências e tratamento’, Paulo Miguel Velasco, falar sobre drogadição é questionar o sistema saúde/doença, tendo em consideração os modelos que concorrem para a compreensão desse fantasma que ainda assusta nos dias de hoje e, também, das estratégias montadas nas profilaxias estabelecidas por órgãos competentes.

Nascido em Niterói, Rio de Janeiro, onde reside até hoje, Velasco é formado em psicanálise clínica e atua diariamente em seu consultório no centro da cidade. Também desenvolve estudos e pesquisas na área de saúde mental, especializando-se em psicopatologia, psicofarmacologia e psicossomática humana.

Fale um pouco sobre a relação do ser humano com as drogas desde os primórdios.

O ponto da descoberta de drogas, em princípio, estava em uma altitude de 3.900 metros acima da superfície marítima e continha provas de presenças de civilizações pelo menos precedentes dos últimos 4.000 anos. Foram descobertos traços químicos de harmina, composto do ayahuasca, cocaína, bufotenina, droga alucinógena inalatória e DMT, que tem como princípio ativo o dimetiltriptamina. Essas substâncias faziam, essencialmente, parte das práticas cerimoniais dos xamãs. Foi a maior quantidade de elementos psicoativos descobertos, excepcionalmente, em uma única área arqueológica da América do Sul.

Dizem antropólogos sul-americanos que ninguém, até então, tinha conhecimento de que os psicotrópicos eram imprescindíveis nas práticas espiritualistas das civilizações andinas. Também não se tinha conhecimento de que esses povos estavam utilizando tantas substâncias diferentes e, elementarmente, associando-as conjuntamente. Ficou-se sabendo posteriormente que os xamãs já tinham certa noção sobre botânica e, que além disso, cultivavam uma variedade de plantas exóticas concernentes aos rituais no intuído de reverenciar ancestrais para os processos de cura dos povos integrantes.

Em épocas mais antigas, os aborígines da América do Sul tinham por hábito mascar folhas de coca para suportar o trabalho em altitudes. No entanto, é difícil saber ao certo quando o hábito de mascar as folhas da coca se principiou. Supõe-se que desde o século seis antes de Cristo isso já se sucedia por hipóteses de que múmias eram sepultadas com componentes da folha. No século 19, foi isolada a cocaína, alcaloide obtido da folha da coca. Considerada como elemento gerador de sensação de bem-estar, a cocaína foi empregada como antídoto dos depressores do sistema nervoso e no tratamento do alcoolismo e da morfinomania. Nesse mesmo período, foi empregada como anestésico local em cirurgia oftalmológica.

Com o avanço dos anos e das práticas de manejo das drogas, o contexto catártico e expiatório foi desenvolvendo-se no sentido de desprender-se da dimensão religiosa e transcendental para ganhar maior autonomia no campo da cura objetiva de males. Passa-se, então, a identificar as enfermidades como algo comum a todos os homens, já não como resposta divina a feitos transgressores. As técnicas médicas passaram a fundamentar-se na observação empírica das doenças.

Quais as principais causas que levam o ser humano ao uso e à dependência das drogas?

O uso de drogas está envolvido com diferentes fatores, sejam eles externos, sejam internos, que têm a ver com a própria pessoa ou uma simples curiosidade. Ou até mesmo a busca por sensação de prazer e felicidade, fuga de sofrimento emocional e influência de amigos. As pessoas que possuem familiares que consomem ou já consumiram substâncias químicas podem ter uma maior probabilidade de entrar no mundo das drogas.

A família é o principal pilar do estabelecimento e da construção da personalidade da pessoa e pode influenciar de forma negativa e precoce o consumo de substâncias químicas. Além disso, a história familiar da pessoa e as suas vivências nesse ambiente são um fator considerável, pois, se esse for um local em que não se é possível encontrar apoio e suporte emocional, a pessoa pode acabar buscando um refúgio no consumo de drogas.

Os problemas emocionais também podem ser a causa de uma pessoa ir à procura de drogas com a ilusão de aliviar o seu sofrimento. Com a dependência química já instalada e o consumo excessivo dessas substâncias, pode-se acabar desenvolvendo também problemas mentais, como depressão ou ansiedade, por exemplo. E isso pode fazer a pessoa ir em busca de doses cada vez maiores para aliviar os sintomas. Conflitos nas relações interpessoais ou a morte de um ente querido pode agravar ainda mais os problemas de ordem emocional, fazendo buscar alívio nas drogas.

Outro fator se inicia simplesmente pela curiosidade do indivíduo de conhecer os efeitos dessas substâncias, pensando até que nunca iria tornar-se dependente. E isso, no entanto, acaba se tornando prejudicial para a sua vida, sem que consiga mais parar sozinho. A curiosidade faz as pessoas terem certas atitudes das quais não possuem consciência de que vão se prejudicar e que esse prejuízo não será necessariamente a curto prazo.

A influência de amigos também é um fator considerável para o início do consumo de drogas. Simplesmente por querer ser aprovado no grupo, ou por proporcionar sensações prazerosas, ou por serem substâncias perigosas que gostaria de usar para se dar bem com o grupo a que pertence. Já no caso de doenças dolorosas, a utilização de algumas drogas pode ter efeitos analgésicos e proporcionar alívio de dores, porém isso é temporário e pode acabar prejudicando a saúde física e mental da pessoa. As drogas podem até gerar essa sensação, mas, quando seus efeitos cessam, podem acabar agravando ainda mais a situação.

Quais as principais consequências do uso de drogas à saúde física e mental?

As consequências dos efeitos físicos a curto e longo prazo são: aumento da frequência cardíaca; aumento da temperatura corporal; aumento da frequência respiratória; aumento da transpiração; tremor leve; contrações musculares involuntárias (língua e mandíbula); tiques; dilatação da pupila (midríase); micção frequente; hiperglicemia; salivação intensa e com textura grossa; dentes anestesiados; alterações estruturais de parênquima pulmonar; destruição do septo nasal; perda de peso; cefaleias; síncopes.

E as consequências dos efeitos psíquicos a curto e longo prazo são: aceleração do pensamento; inquietação psicomotora; aumento do estado de alerta; insônia; depressão; ansiedade; inibição do apetite; labilidade do humor; sensação de poder; ausência de medo; ansiedade; agressividade; delírios e alucinações; perda da capacidade de concentração mental; transtornos psicóticos e de humor; perda da memória.

Quais as drogas hoje mais em uso no mundo e no Brasil?

Álcool, tabaco, maconha, medicamentos sem prescrição médica, cocaína, LSD, ecstasy, drogas injetáveis e heroína.

Há drogas que são piores que outras? Explique.

As drogas sintéticas são mais perigosas do que as naturais. São, basicamente, feitas a partir de processos químicos. Podemos dizer que as drogas sintéticas são aquelas produzidas total e exclusivamente em laboratórios. Dessa forma, todos os componentes dessas drogas são pensados e estruturados de forma que, quando misturados entre si, possam oferecer ao usuário um alto efeito psicoativo e alucinógeno. O uso abusivo de drogas sintéticas pode ser fatal. Exemplos: LSD, krokodil, ecstasy, anfetaminas, poppers, efedrina, anfetaminas, metanfetaminas e metadona.

Como saber se a pessoa está usando ou é dependente de drogas?

Quando a pessoa está usando drogas, os primeiros sinais são: mudanças repentinas de comportamento; olhos avermelhados; sensação de perseguição; amizades ou companhias suspeitas; isolamento social; mudanças de comportamento com cônjuge; queda do rendimento no trabalho. Já a pessoa dependente pode apresentar: humor oscilante; euforia; depressão; impaciência; desânimo; frustração; agressividade; desinteresse; impulsividade; irritabilidade; perda do interesse em tudo o que se pode fazer na vida (é a chamada síndrome amotivacional). As alterações comportamentais dependem diretamente de cada tipo de substância psicoativa.

Há pessoas que são mais propensas à dependência? Por quê? Como a neurociência explica isso?

Elas podem desenvolver problemas devido a uma série de influências externas, como traumas ou modelos sociais de uso de drogas. Porém, estudos ainda em andamento na neurociência, no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal de Minas Gerais, mostram que os efeitos das drogas e possíveis contribuições na composição genética de quem é dependente químico são passados para seus filhos. Isso quer dizer que filhos de dependentes químicos são mais propensos à utilização de drogas do que os não dependentes. Na maior parte das análises feitas, fica evidenciada a possível predisposição hereditária à dependência química. Principalmente em pesquisas sobre drogas mais pesadas, como o crack, até as mais sociáveis, como o álcool, a genética é citada como uma possível causa para que o uso de substâncias químicas seja replicado na família.

Qual a melhor forma de prevenir a dependência das drogas?

Algumas dicas de prevenção às drogas: saber dizer não (o primeiro cuidado que uma pessoa deve ter para se manter distante do consumo de drogas é saber recusar seu consumo sem se preocupar com o julgamento de outras pessoas); escolher bem as companhias; contar com sua família e participar de grupos de apoio; praticar esportes; alimentação saudável.

Qual a importância e o papel dos profissionais da saúde mental no combate?

O tratamento contra o vício é feito de forma multidisciplinar com acompanhamento médico e familiar, psicoterapia, terapia ocupacional, entre outras especialidades. O diagnóstico de dependência é feito sempre mediante avaliação química, além da realização de exames de triagem (urina, sangue e cabelo), que indicam o uso da substância.

Os enfoques iniciais de tratamento ao abuso de substância podem ser conduzidos em um contexto tanto de internação quanto ambulatorial (por isso é importante o papel dos profissionais da saúde mental nesses momentos). Embora um contexto ambulatorial seja mais natural do que um contexto de internação, as tentações disponíveis a um paciente ambulatorial podem representar um obstáculo demasiadamente alto para o início do tratamento. O tratamento com internação também é indicado na presença de sintomas físicos ou psíquicos severos, uma história de tratamentos ambulatoriais fracassados, falta de apoio psicossocial ou uma história particularmente severa de abuso de substância a longo prazo.

Após um período inicial de desintoxicação, o paciente precisa também de um período prolongado de reabilitação. Durante todo o período de tratamento, as terapias individual, familiar e de grupo podem ser efetivas. A educação médica e psicoterápica acerca do abuso de substância e o apoio aos esforços do paciente são fatores essenciais no tratamento. Em alguns casos, o uso de uma droga psicoterapêutica, a dissulfiram, pode ser indicado para desencorajar o paciente quanto ao uso da substância abusada, reduzir os efeitos da abstinência ou tratar um suposto transtorno psiquiátrico subjacente.

De maneira geral, como o mundo e o Brasil estão preparados para a prevenção e o combate à dependência das drogas?

A dependência de drogas lícitas ou ilícitas é considerada uma doença e um problema de saúde pública em escala internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas, aproximadamente 275 milhões de pessoas consumiram drogas no mundo inteiro no último ano, sendo que 36 milhões sofreram de transtornos associados ao uso de substâncias. Para alertar e conscientizar a população sobre os malefícios decorrentes do uso problemático de substâncias, foi criado o Dia Nacional de Combate às Drogas e Alcoolismo, celebrado em 20 de fevereiro.

Em 2019, representantes de vários países afetados pelos usos abusivos de drogas declararam uma nova política – incluindo o Brasil –, que prevê medidas mais rígidas em relação ao tratamento de usuários na rede de saúde, facilitando a internação involuntária e incentivando o tratamento baseado em abstinência em vez de redução de danos. A redução dos danos era uma estratégia que vinha sendo adotada anteriormente. Nela, diferentemente da abstinência, não necessariamente o usuário é incentivado a interromper completamente o uso de drogas. O que ocorre são a busca pela inclusão social e as orientações voltadas para evitar consequências mais graves do uso, estimulando uma redução gradual até que a pessoa interrompa o uso caso seja de sua vontade. As medidas relacionadas à saúde foram vistas com receio por especialistas da área, que indicaram um possível retrocesso, já que elas poderiam afastar usuários de uma busca efetiva por ajuda na rede de saúde.

Embora pesquisas apontem que há divergências e desafios para se calcular oficialmente quanto se gasta com a política de drogas, o posicionamento dos governantes atuais parece classificar a questão das drogas como de segurança pública. Principalmente quando consideramos os cortes nos recursos destinados às políticas públicas de saúde voltadas para o atendimento a usuários e dependentes e o aumento nas verbas destinadas às políticas de segurança e repressão. Esse posicionamento vai na contramão das principais políticas antidrogas do mundo que tiveram grandes avanços ao investir seus recursos em políticas públicas da área da saúde.

Também é necessário ressaltar que, embora tenhamos trazido as duas principais vertentes dessa discussão sobre a questão do combate às drogas e ao alcoolismo, ela não deve ser reduzida apenas à dualidade de saúde versus segurança, já que apenas a junção de diversas áreas e ações pode ser capaz de melhorar a realidade social como um todo. Isso implica investimentos em saúde e segurança, sim. Mas também em educação de qualidade, melhores condições de vida, emprego e renda para todos e todas.

No sentido de conquistas atuais e futuras, países de todo o mundo continuam buscando melhores soluções no combate às drogas. No Brasil, por exemplo, os ministérios da Cidadania e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos assinaram, em 2021, acordo de cooperação técnica junto à instituição Cruz Azul para a criação da campanha Refeição em Família. A ação pretende fortalecer os laços familiares e, assim, atuar na prevenção ao uso de drogas por crianças e adolescentes.

A campanha visa fortalecer a instituição família no objetivo de orientar os pais e estimular o hábito de que as refeições sejam feitas em conjunto, com pais, filhos e responsáveis. Estudos científicos apontam a refeição em família como forte fator protetor e preventivo ao uso de substâncias psicoativas pelos jovens, além de reduzir a incidência de doenças como depressão e favorecer o diálogo, melhor rendimento escolar e desenvolvimento de habilidades emocionais para esse público.

Na sua opinião, legalizar o uso das drogas é bom ou ruim? Explique.

Na minha opinião, como profissional da saúde mental, sou contra legalizar o uso de drogas, pois o consumo de drogas lícitas e ilícitas pode causar diversos efeitos colaterais no organismo em curto ou longo prazo: mudanças no apetite e no sono, alterações na frequência cardíaca e na pressão arterial, desenvolvimento de doenças mentais e de outras complicações, como o câncer. A longo prazo, o uso de drogas pode causar: destruição de neurônios, diminuindo a capacidade de pensar; desenvolvimento de doenças psiquiátricas como depressão ou esquizofrenia; lesões no fígado; desenvolvimento de doenças contagiosas, como aids e hepatite.

Quando falam em legalizar a maconha, por exemplo, entidades governamentais de todo o mundo estão esquecendo (ou não sabem) que já foram constatados vários casos de esquizofrenia originados pela maconha, causando lesões estruturais no cérebro, quando usada com frequência. Conhecendo especificamente essas moléstias causadoras de tais transtornos – às vezes muito graves, levando o indivíduo ao óbito – não tenho como achar correta a legalização.