Um tema delicado e ainda pouco abordado, o suicídio é uma epidemia silenciosa cujas taxas têm crescido significativamente entre crianças e adolescentes, independentemente da condição socioeconômica, especialmente após a pandemia da covid-19. Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicóloga Marilia Pereira, organizadora do livro ‘Suicídio na infância e na adolescência’, publicado pela Sinopsys Editora.

Direcionada a profissionais da saúde mental que atendem o público infantojuvenil e suas famílias, a obra enfoca a história do suicídio, ferramentas de rastreio e avaliação do comportamento suicida, mapa neurobiológico, manejo cognitivo-comportamental, recursos terapêuticos e tratamento farmacológico.

Marilia é mestra e doutora em neuropsiquiatria e ciências do comportamento pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Além de psicóloga clínica, é professora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Avaliação Comportamental em Grupo de Risco (NUPAC-GR) do Departamento de Neuropsiquiatria da UFPE. Também é especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC) e tem primary course em terapia racional-emotiva comportamental (TREC) no Albert Ellis Institute, Nova York, Estados Unidos.

Qual o objetivo do livro e como ele pode auxiliar na prática clínica?

Com uma linguagem acessível, este livro apresenta, mais do que o embasamento conceitual, técnicas para que psicólogos e profissionais da saúde mental como um todo possam utilizar na sua prática clínica, mesmo aqueles que não têm especialização na área ou nunca tiveram contato com suicídio. Inclusive pode ser utilizado por pessoas que trabalham em escolas, porque, via de regra, a porta de entrada para a identificação do comportamento suicida é nas escolas. E o profissional da educação precisa, sobretudo, de informação para poder conduzir essas crianças e jovens.

Fale mais sobre a importância da obra para a psicologia?

A subnotificação dos casos pode ser um dos motivos que mascaram o panorama do suicídio infantojuvenil no Brasil, onde a obrigatoriedade da notificação é recente. Além disso, muitas vezes, não é feito o registro por solicitação da própria família ou até pelo fato de a pessoa com comportamento suicida não se sentir à vontade de falar sobre o assunto com um entrevistador estranho que bate à sua porta com um questionário. No entanto, para meu doutorado, fiz um estudo acurado – com amostras, entrevistas e atendimentos individuais – com adolescentes de Recife/PE no qual se constatou que 18% dos entrevistados tiveram algum comportamento suicida.

Trata-se de um índice altíssimo, compatível com números de Estados Unidos e países europeus. Isso nos faz pensar que, provavelmente, eles notifiquem mais. Sendo assim, este livro traz à tona a ideia de que crianças e adolescentes se matam e não se trata apenas de chamar a atenção, não é apenas comportamento e automotivação. Até pode acontecer de não haver uma ideação suicida tão grave, mas, por comportamento impulsivo, ocasiona o acidente.

A obra começa com a história do suicídio, traz um capítulo sobre neurociência e, além das técnicas de manejo disponibilizadas, há um capítulo sobre psicofarmacologia do suicídio, que é algo mais atual. Normalmente, as pessoas acabam associando que tratar suicídio é apenas com psicoterapia, mas hoje já existe todo um protocolo psicofármaco com medicamentos específicos para esses casos.

Detalhe a história do suicídio na infância e adolescência.

Sabemos que o comportamento suicida atrelado à infância e à adolescência tem o componente importante da impulsividade, que é atrelada ao desenvolvimento do cérebro. O freio inibitório dos seres humanos vai se desenvolvendo ao longo da vida e não é tão consolidado em crianças e adolescentes como nos adultos. Sendo assim, acabou se associando o comportamento suicida na infância e adolescência como um comportamento de chamar a atenção, sem profundidade e não genuíno, o que fez com que se deixasse de dar a devida credibilidade a algo que mereceria atenção.

Até hoje há quem associe suicídio verdadeiro a suicídio falso, mas isso já não é mais tido como conduta. Na prática acadêmica e clínica, orientamos que todo comportamento suicida é verdadeiro, independentemente da gravidade da tentativa e da intensidade da ideação. Atualmente, já se sabe que há alterações no cérebro de quem tem um comportamento suicida. Não se fala mais em decisão voluntária pessoal pautada apenas na reflexão. Sabemos que há um conjunto de comportamentos e temos alguns pensamentos que se tornam mais obsessivos. Por isso, em vez de associar um comportamento suicida a uma tentativa de chamar atenção, é importante pensar que se trata de uma tentativa de conexão. Dessa forma, começaremos a olhar a questão sob outra perspectiva e mudar a história.

Como esse paciente chega à clínica de psicologia?

Algumas situações são encaminhadas pela escola, que percebe, por exemplo, aquele aluno que anda o tempo inteiro com casaco mesmo que seja dia de sol ou de educação física. O casaco serve, geralmente, para esconder as marcas de cortes do comportamento de automutilação. Às vezes, são pacientes que chegam por encaminhamento do psiquiatra depois que os pais já se deram conta e levaram o filho direto ao médico. Outras vezes, as crianças e os adolescentes podem pedir aos pais para fazerem terapia, porque estão com ansiedade, dificuldades de concentração ou na escola.

Existem várias maneiras desse problema chegar até o consultório. Por isso, é importante os profissionais se interessarem, se informarem e se prepararem, pois a faculdade de psicologia não propicia o repertório necessário para trabalhar com casos assim tão difíceis, mas que podem chegar a qualquer momento para atendimento.

A escola, embora já tenha grandes desafios, também precisa estar preparada para identificar e poder encaminhar esses casos de comportamentos suicidas quando necessário, pois é onde ocorre uma expressão mais à vontade do comportamento do adolescente e da criança, onde as barreiras de proteção da privacidade ficam mais frouxas. Se perdemos o time da intervenção, como qualquer doença, quando ela anda muito, há mais dificuldade para controlar a situação e minimizar os prejuízos. Volto a ressaltar a importância de o profissional da psicologia ter a formação necessária para o atendimento clínico desses casos, mas também de informar todas as pessoas que trabalham com crianças e adolescentes para que estejam aptas a identificarem e encaminharem quando necessário.

Quais são os principais sinais de comportamentos suicidas?

Sempre ressaltamos que mudança de comportamento é algo que precisa ser melhor observado. Por exemplo, se aquela criança ou aquele adolescente que gostava de sair, de estar nas festas ou praticando esportes começa a ficar mais restrito em casa. E o pior é que a fase da adolescência acaba mascarando muitas vezes os sintomas, porque a família às vezes percebe esse maior isolamento como uma questão comportamental da adolescência, como querer mais privacidade, ficar mais no quarto, querer um pouco mais de liberdade. Mas precisamos juntar isso a outras informações, como prejuízo no funcionamento escolar, afastamento das pessoas do convívio e deixar de gostar de coisas que antes eram muito interessantes.

Claro que cada ser humano tem suas peculiaridades. Existem fatores que predispõem e fatores que precipitam. Fator que predispõe, por exemplo, é ter um diagnóstico de transtorno psiquiátrico, como depressão ou ansiedade. Importante lembrar isso, porque muitas pessoas acabam achando que só se suicida quem tem transtornos graves, como esquizofrenia e bipolaridade. No entanto, indivíduos com ansiedade podem experimentar um nível muito alto de angústia e de dificuldade de flexibilidade no pensamento. A ansiedade causa um engessamento, uma dificuldade de resolução de problemas, que, às vezes, vem associada à desesperança. E isso é uma combinação bombástica.

Então é importante ressaltar que existem fatores que predispõem a pessoa e que esses fatores predisponentes não são apenas os graves, como ter tido um abuso sexual na infância ou uma perda parental precoce, por exemplo. Às vezes, a família dá pouca importância ao rompimento de um vínculo que era muito significativo, como, por exemplo, uma amizade ou um namoro que acabou. Desconsidera o quanto esse rompimento abrupto pode trazer impacto numa esfera de pensamento em que o indivíduo talvez já tenha menos esperança, menos convicção de que as coisas vão melhorar.

Além disso, estamos vivendo uma cultura pós-contemporânea bastante competitiva em que, na maior parte das vezes, nos comparamos com os outros – e ainda mais com o advento das redes sociais. Essa cultura da competitividade é um fator que pode predispor a pessoa ao comportamento suicida. E é preciso colocar isso dentro de um cérebro que está processando a informação também sobre o futuro, porque, às vezes, você não toma a decisão baseado apenas no que está vivendo hoje, mas também fazendo inferências sobre o que vai acontecer no futuro. Então é importante que a família esteja ciente de tudo isso e fique aberta ao velho e bom diálogo para que a pessoa possa se comunicar sobre como tem se sentido e as dificuldades que está vivenciando.

Além de buscarem auxílio psicológico para os filhos, o que os pais podem fazer no ambiente doméstico para protegê-los?

Nem sempre a família consegue rastrear. É característica de pessoas que passaram por perdas relacionadas ao suicídio acabarem considerando que poderiam ter feito alguma coisa. De fato, é uma morte evitável. Não é uma morte que se dá por causa de uma doença que foi evoluindo ou de um acidente. No entanto, embora a família precise ficar atenta, nem sempre é a ela que a criança ou o adolescente recorre em primeiro lugar, porque sabe que vai preocupar os familiares.

Por isso a importância de todos os integrantes da comunidade que convivem com a criança e o adolescente se sentirem responsáveis na identificação desses fatores, incluindo a escola, os pediatras, os profissionais do esporte, todo mundo precisa ter uma preparação para o rastreio e a identificação desses problemas, para que isso não fique como se fosse um problema apenas da família.

Mas se a família percebe comportamentos de modificação, de que aquela criança ou aquele adolescente tem tido sofrimento com determinadas demandas, precisa procurar profissionais que estejam habilitados a trabalhar com isso. E aí, mais uma vez, a importância da capacitação desses profissionais para que não exista um julgamento, uma culpabilização, porque esse é um fenômeno de grande magnitude.

Não temos fatores específicos associados, não é como um paciente que tem diabetes e deixou de tomar o remédio ou ingeriu um pouco mais de glicose e tem uma agudização súbita da doença. Essa é uma circunstância que tem muitas variáveis envolvidas. Então a tarefa dos pais é a identificação de sinais e levar a pessoa ao tratamento. E a nossa tarefa, como profissionais, é se capacitar para que possamos ajudar essa família na condução dessa situação, porque nunca é uma ajuda só para o paciente. Quando trabalhamos com criança e adolescente, trabalhamos para a família inteira.

E quando nenhuma evidência, nenhum sinal ou motivo óbvio é detectado previamente, seja na família, seja em outro ambiente?

Às vezes, esses fatores não se apresentam. O indivíduo pode ter um problema, uma dificuldade ou uma dor e não menciona. Não só porque a família não abriu diálogo, mas há uma dificuldade do próprio adolescente, da própria criança, em expressar a linguagem. E existe uma peculiaridade que é o comportamento suicida por raiva. Por exemplo: se a pessoa foi maltratada na escola ou considera que não foi cuidada como deveria, ela vai trazer a sua morte como uma penalização, para que aquelas pessoas que considera responsáveis se sintam culpadas ou percebam o mal que teriam feito a ela. Então essa morte é uma forma de comunicação. Trata-se de uma ação, não há uma fala relacionada. É uma característica da fase do desenvolvimento.

Existe diferença entre queixa e demanda. Queixa é o que a pessoa apresenta. Demanda é o que está por trás daquilo e, às vezes, escondido até para ela mesma. E aí apresento uma questão: temos vivido tempos muito difíceis, uma cultura pós-contemporânea em que há uma sensação de rastreio da própria vida o tempo inteiro. As redes sociais trazem uma ordem de uniformidade, é como se tivéssemos tirado dos indivíduos a possibilidade de serem diferentes.

Criamos uma falsa sensação de uniformizar os viveres, os interesses, os passeios, os projetos de vida… E isso pode tirar da pessoa a motivação para a vida, para o interesse pessoal de se realizar. É como se não tivesse espaço para ser diferente, para poder ser humano. E tudo aquilo que tira do ser humano a possibilidade de expressão de diferença inibe, o deixa desmotivado para viver. É como se você não visse uma possibilidade de engrenar seus sonhos, seus projetos pessoais. Associado a isso, há uma rápida difusão de informação. Tudo isso nos deixa sem muita privacidade, parece que estamos expostos, avaliados e sem espaço de privacidade.

Essas questões já são uma confusão para nós, adultos, que já temos alguma maturidade, menos oscilações de hormônios, que temos mais perspectivas, que temos um pouco mais de consolidação. Para os jovens, no entanto, não há um paradigma em que possam se ancorar e avaliar que poderia ser diferente, porque já foi diferente em algum momento. Isso traz um sentimento de incerteza, de dúvida de como ser e estar no mundo, de que talvez eles não consigam ter espaço de vivência.

E aí eu trago um dado relevante: ao longo da história, constatamos o aumento do comportamento suicida todas as vezes em que houve mudança histórica. A revolução digital que hoje vivenciamos é tal qual foi nas grandes guerras, na revolução industrial e em outros grandes momentos de mudança. Também existe um estudo que mostra que as pessoas têm comportamento suicida 24 horas após, por exemplo, a uma comunicação de desemprego. A informação que isso nos traz é que a indefinição, a incerteza do que vai acontecer, às vezes, é mais assustadora do que o próprio desafio e conta muito no tipo de comportamento desencadeado.

Às vezes, o indivíduo tem a família por perto, extremamente presente, não tem transtorno mental, é escolarizado, mas, diante de determinados aspectos, elementos da cultura têm trazido uma desesperança e um maior impacto em relação ao comportamento suicida.

Qual a melhor abordagem técnica para manter uma relação terapêutica sólida e confiável com um paciente suicida?

Todo psicólogo tem a obrigação do sigilo terapêutico, mas, se o indivíduo diz que vai fazer mal a alguém ou a si próprio, a recomendação é que isso seja dividido com alguém que possa ajudar a evitar esse tipo de comportamento. Sendo assim, é necessária uma relação terapêutica com bastante honestidade.

Normalmente, eu explico aos pacientes que o cérebro funciona diferente nessas situações e que eles não devem pensar que a ideação suicida é só uma decisão pessoal. Nesses casos, o cérebro funciona de maneira obsessiva, trazendo mais aquela informação e diminuindo a alternância da atenção, fazendo com que a pessoa comece a pensar que sua vida gira em torno daquilo ali e vai ser difícil pensar em outras alternativas e novos projetos.

Costumo fazer essa psicoeducação para que a pessoa entenda que se trata de uma situação em que teremos que protegê-la dos sintomas do cérebro até que fique bem e consiga ter resoluções próprias. Quando associamos as ideias de suicídio a sintoma, o paciente começa a entender e a colaborar em relação à nossa tentativa de fazer um plano de segurança, o que inclusive é mencionado no livro. Informamos ao indivíduo que precisamos do contato de alguém que possa fazer essa função de ego auxiliar dele quando ele não estiver no consultório. Quando trazemos informações criteriosas, o paciente acaba acreditando no trabalho e se deixando ser cuidado.