ESTUDO DE CASO

Mais um ano chegamos hoje ao Dia Mundial da Paralisia Cerebral, deficiência caracterizada por alterações neurológicas permanentes que afetam o desenvolvimento motor e cognitivo, envolvendo o movimento e a postura do corpo. Só para trazer alguns dados, há 17 milhões de pessoas em todo o mundo vivendo com paralisia cerebral. Ou indiretamente, outras 350 milhões estão intimamente ligadas a uma criança ou um adulto com PC.

Uma realidade

Eu poderia escrever muitas coisas técnicas ou científicas sobre o tema. Mas acho legal, em comemoração a esse dia, trazer aqui meu depoimento pessoal.

Quando fiquei com paralisia cerebral durante o meu parto no final dos anos 1960, com sérios danos na fala e na coordenação motora, para grande parte das pessoas que me conheciam e para minha família, eu já estava com o meu destino traçado. Ser dependente das outras pessoas, isolado dentro das instituições. Ainda mais naquela época onde nós, pessoas com deficiência, vivíamos totalmente excluídos da sociedade.

Como conto no livro “O Caso do Tipógrafo – Crônicas das minhas memórias”, vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos ainda engatinhavam. Por cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para ele endurecer. Pesadas pulseiras de chumbo nos braços para “diminuir” os movimentos involuntários. Lembro-me de seminários com enormes plateias, onde, crianças, éramos colocados só de cueca no palco, o especialista ia nos mostrando e analisando o caso. Assim fiz parte de muitos outros experimentos e pesquisas no início dos anos 1970.

A importância do incentivo

Alguns médicos chegaram a dizer que eu nem seria alfabetizado. Só que meus pais não acreditaram nisso, ensinando-me a ler e escrever aos cinco anos de idade. E, ao descobrir o mundo das letras, se minha vida fosse uma fábula, eu começaria assim: Era uma vez um menino que, aos cinco anos, já escrevia seus primeiros textos e dizia que seria um escritor.

Em 1977, fui transferido para a AACD-Santana (situada em São Paulo). Nessa época existia um muro interno que separava essa unidade do Colégio Buenos Aires, impedindo nós, – os alunos com deficiência – em ter contato com os demais. Quantas vezes eu ficava olhando pelo portão de grade com cadeado as crianças correndo e brincando no pátio e não podia participar com elas. E, quando o colégio tinha alguma Data Comemorativa, o cadeado era aberto e nós, alunos da AACD, podíamos ir até lá. Mas ficávamos separados, vigiados em um canto do pátio sem poder se misturar e brincar com as outras crianças.

Os dois lados da educação

Só que eu conheci os dois lados da educação. Em 1981, ao ser desligado da AACD, aos 11 anos de idade, minha família conseguiu um documento que o governo emitia na época, autorizando alunos com deficiência a ingressarem em escolas ditas normais. Mudei-me para um colégio público em uma cidade pequena, onde moravam meus avós maternos. Na AACD, eu estava no equivalente à quarta série. Especialistas da época acharam por bem me regredir dois anos, temendo que eu não acompanhasse a classe e me matricularam na segunda série.

Fui para a classe do professor Maroca e comecei a acompanhar todas as matérias como os demais alunos, a fazer e entregar trabalhos, participar dentro das minhas possibilidades de todas atividades. A fazer provas e ter que tirar as médias para fechar o ano. Sem qualquer privilégio, o que não pode haver para ninguém na Educação Inclusiva, a única diferença, era que o professor Maroca colava minhas folhas de atividades com durex na mesa para eu escrever.

O ano findou, fui passando de ano, mudando de professores. Cheguei ao antigo ginásio, tive que me adaptar a mudar de professor a cada cinquenta minutos. Tudo foi acontecendo normalmente pela convivência escolar. Como eu digo, para as coisas acontecerem, basta nos colocarmos em movimento.

Incentivo ao desenvolvimento

Esse desenvolvimento não foi só cognitivo, como também social e pessoal. Ao ser incluído na escola regular, comecei a fazer amigos. Amizades que ultrapassavam os muros escolares e eu era levado para todos os lugares por eles, participava de todas as brincadeiras e aventuras. Crescíamos juntos e descobríamos os sabores e dissabores da adolescência.

No final dos anos 1980, ao deixar essa cidade e ir morar em outra bem maior, eu estava sem rumo. Fui acompanhado de um saudoso tio procurar uma renomada instituição nacional que visava profissionalizar pessoas com deficiência e encaminhá-las ao mercado de trabalho. Passei por algumas entrevistas até chegar à psicóloga. À certa altura, ela me perguntou o que eu gostaria de fazer. Expliquei-lhe que era um jornalista e desejava dar continuidade a isso. Ela me disse secamente: “Você precisa tomar consciência que é um deficiente e por isto não pode ser um jornalista!” Eu simplesmente desejei-lhe um bom dia, levantei-me e nunca mais voltei lá.

Fui crescendo profissionalmente, estudando e escrevendo cada vez mais. Publicando minhas criações em jornais e revistas, lançando os primeiros livros, sempre lendo e fazendo muitos cursos para um dia ser um escritor.  Anos mais tarde, integrado em algumas rodas literárias, comecei a participar das reuniões de criação da Academia Bauruense de Letras daquela cidade. O projeto vingou e a fundação foi marcada em um luxuoso Tênis Club. Dias antes, uma pessoa da comissão telefonou em minha casa para comunicar que não permitiria que eu tomasse posse no dia da inauguração, chegando a dizer: “Não ficará bem para a ABL ter um deficiente em uma cerimônia tão solene!”.

Obstáculos sociais

Em minha caminhada, já vivi muitos momentos de preconceitos, discriminatórios, os chamados bullying e muitos obstáculos sociais e atitudinais tive que superar. Marcaram-me só nos instantes que ocorreram. Nunca os deixei me abater por eles, pois sempre tive tantas coisas positivas para buscar, que aprendi a não perder o meu tempo com atitudes tão desmotivadoras e por vezes, cruéis, do ponto de vista humano individual e social.

Hoje muitas pessoas se espantam ao saberem que, mesmo com paralisia cerebral, tenho três graduações, cinco pós-graduações e dois doutorados. Tenho 90 livros editados, 98 artigos científicos publicados. E, enquanto jornalista, já publiquei mais de 500 textos. Grande parte voltados às questões humanitárias! E como tenho mania de arquivista, estão todos organizados e datados em pastas, guardados com muito orgulho. Sou conferencista de pós-graduação, tenho vários cursos gratuitos online que monto e ofereço gratuitamente, atingindo já mais de 30 mil pessoas. Viajo sozinho todo o Brasil fazendo palestras, o que é uma grande superação, pois me viro em aeroporto e hotéis sem apoio daquelas pessoas que sempre estão em minha volta. Digo que grande são as pessoas que, conscientes de suas limitações, tornam-se infinitas suas possibilidades!

E MAIS…

A Psicologia na minha vida

O tempo passou e fui construindo minha identidade e lugar no mundo a partir da exclusão… Na época que procurei àquela instituição, eu nem imaginava que dose anos depois, eu ingressaria em uma faculdade de Psicologia, faria mestrado, doutorado e escreveria muitos artigos e livros na área. Não me tornei membro daquela Academia. Mas venho construindo uma carreira literária já com vários títulos publicados e muitos planos e ideias que eu ainda quero concretizar.

Àquela psicóloga que nem de longe representa o pensamento de nossa categoria, pediu-me para ter consciência que eu era um “deficiente”. Porém, ao longo da minha existência, preferi ter a consciência que, como qualquer pessoa que sonha e vai buscar seus objetivos, sou totalmente capaz! O importante é que aquele menino limitado por sua paralisia cerebral, alfabetizado aos cinco anos e que queria ser escritor, nunca deixou de sonhar!