A pandemia de Covid-19 impactou de maneira importante o cenário da morte e do morrer, dificultando inclusive o processo de elaboração do luto. A morte resultante do Coronavírus é geralmente abrupta no sentido de que não se trata de uma doença que oferece tempo para que os familiares do doente se preparem para o fim. Durante todo o tempo de internação, as visitas são proibidas e os familiares acompanham a evolução do paciente através de boletins médicos diários realizados por telefone. A restrição de poder ver com os próprios olhos o estado no qual o paciente se encontra, dificulta a adaptação à realidade de uma possível despedida. O não saber a fundo a qualidade dos cuidados prestados e do conforto que o paciente vem recebendo são fatores ansiogênicos. A despedida no leito não ocorre e, portanto, a finalização do ciclo fica prejudicada.

Rituais alterados

Com relação aos rituais fúnebres, estes também sofreram modificações por conta do protocolo de manejo de corpos no contexto da doença causada pelo SARS-COV-2. Assim que é declarado o óbito, o corpo deve ser devidamente embalado e colocado em urna funerária lacrada e assim deverá permanecer durante um curto velório com no máximo 5 pessoas. Após isto, dá-se prosseguimento à cremação ou ao sepultamento do corpo, sendo recomendada a cremação para que seja evitada a contaminação do solo dos cemitérios. A primeira questão que tem afetado os enlutados é a falta de oportunidade de despedida no leito, que como mencionado anteriormente, dificulta a apreensão dos fatos e a finalização de um ciclo.

Em seguida, tem-se a questão da orquestração da morte, dos rituais de preparação do corpo, que podem em outros casos ser executados por familiares do falecido. No caso da morte por Covid-19, não se pede a família uma roupa bonita para o falecido, o corpo após o óbito é prontamente embrulhado em lençóis e embalado em um plástico preto impermeável para evitar vazamento de fluidos contaminados. Muitos familiares chegaram a ver seus entes queridos embalados, o que lhes causou dor e trauma pela sensação de falta de dignidade, muito embora saibam que se trata de protocolo necessário para evitar a disseminação do vírus.

O caixão lacrado também dificulta a despedida novamente e o não ver o familiar morto também acaba por desafiar a internalização e concretização da finitude. O enlutado precisará lidar com todos estes fatos no âmbito do simbólico, já que nada concreto lhe é oferecido para auxiliar na elaboração do luto.

Um luto complicado

Além disso, todo o suporte social e familiar que costuma ocorrer nos velórios não ocorre por conta da limitação do número de pessoas; e a questão de ser recomendada a cremação pode ser vista como desrespeito àquele que desejaria ser enterrado e não cremado.

Tenho visto na prática clínica muitos enlutados com um quadro de luto complicado por conta da não despedida no leito; do fato de terem visto os corpos dos seus entes queridos embalados como objetos sem importância e, portanto, coisificados; por não terem tido a oportunidade de ver o familiar morto e por não terem podido receber apoio e contato físico no momento mais triste de suas vidas.

A pandemia vem fazendo com que a morte esteja presente na vida de todos os seres humanos, dos de longe e dos de perto, dos pretos e dos brancos, dos ricos e dos pobres, dos homens e das mulheres, dos velhos e dos novos, o que vem impactando toda a construção da morte e do morrer e trazendo modificações para o futuro. Desde o ano passado, a morte é próxima de muitos e o medo de outros. O pensar sobre ela se tornou constante e o medo de que ela bata à porta também. Hoje, mais do que nunca, faz-se necessário conversar sobre a morte e o morrer, e a importância das despedidas e dos rituais que a endossam.

Velórios online

A pandemia de Covid-19 alterou drasticamente o processo de morrer, do ver o outro morrer, das despedidas e seus rituais e do processo de luto. Algumas modificações já ocorreram, uma é a criação de memoriais para homenagear as vítimas e outra os velórios online. Creio que os velórios online continuarão em voga, visto que são benéficos para parentes e amigos que vivem distantes do falecido. A partir da experiência pandêmica, percebi que a finitude pode não ser um processo, mas sim um fato abrupto com o qual temos que lidar da maneira possível, obedecendo ainda protocolos de distanciamento social e de controle de infecção. O meu olhar sobre a morte não se transformou, mas os meus pensamentos sobre o viver intensamente aumentam a cada dia.

E MAIS…

Estresse pós traumático causado pelo luto

Não podemos deixar de considerar que em algumas famílias houve a morte de mais de uma pessoa, desencadeando assim nos que ficaram um processo de luto pela perda de vários entes queridos. Estima-se que para cada falecido ficam 4 enlutados. Estatísticas mostram que no início de junho de 2021, somou-se 3,73 milhões de mortos no mundo, dos quais 473 mil morreram no Brasil. Temos aproximadamente 14,92 milhões de enlutados no mundo e 1,90 milhões no Brasil.

O processo de luto, além de afetar o âmbito psicológico e emocional por conta da dor da perda de um familiar próximo, causa sofrimento por conta de outras adaptações necessárias, como por exemplo, a adaptação financeira; e o luto por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, além de ser mais doloroso, pode exigir mais adaptações. Não se pode esquecer que junto com a dor o enlutado, muitas vezes, há a necessidade de resolver questões burocráticas como inventário, por exemplo, e a cada questão burocrática, a cada correspondência recebida em nome do falecido a dor vem à tona. A perda de mais de um familiar pode dar a sensação de destruição da família, além de imensa sensação de solidão para quem ficou.

Não se pode esquecer que crianças também estão vivenciando este contexto, elas não passam ilesas e muitas delas perderam pai e mãe em decorrência do Covid-19. É importante que as crianças sejam incluídas nos rituais fúnebres e que se explique a elas o que é a morte. Os adultos podem explicar a situação de acordo com a crença religiosa da família.

Nem todo processo de luto precisa de tratamento, mas muitas pessoas têm recorrido a este por conta das circunstâncias diferenciadas que o luto, principalmente por Covid-19 traz e que acabam por causar um processo de luto complicado. É importante que adultos e crianças cuidem da saúde mental no caso de luto complicado para que a perda possa ser ressignificada e que o processo de luto seja conduzido da melhor forma possível, além de se evitar transtornos mentais como o Transtorno do Estresse Pós Traumático.