A psicoterapia é muito importante em qualquer fase da vida. No entanto, o acesso ao atendimento em saúde mental ainda é difícil para pessoas surdas. O principal obstáculo é que, na prática, a língua oficial do Brasil segue sendo uma só: o português. E é em português que todos os serviços públicos e privados, essenciais ou não, atendem (salvo exceções). E mesmo quando é disponibilizado um intérprete de libras (língua brasileira de sinais) para acompanhar as sessões psicoterapêuticas, há comprometimento da qualidade do serviço ofertado por causa da dificuldade de se estabelecer um vínculo entre o profissional e o paciente.

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicóloga, educadora e intérprete de libras Luciana de Freitas Bica.

Graduada em psicologia e em letras libras, ela é mestra em educação, especialista em educação especial com ênfase em deficiência auditiva e intelectual e na área da surdez. Atualmente leciona no curso de medicina e psicologia do Centro Universitário São Lucas de Porto Velho/RO e no curso de medicina e odontologia do Centro Universitário de Pato Branco (Unidep), Paraná.

Luciana é docente orientadora da Liga Acadêmica de Libras e Cultura Surda (Lalics) do MedLibras e OdontoLibras, grupos de acadêmicos de medicina e odontologia que fazem atendimentos a pessoas surdas no ambulatório-escola do Unidep. E ministra cursos de libras de curta e média duração (níveis básico e intermediário) em parceria com diversas instituições.

Atua, também, como psicóloga clínica (atendimentos individuais, de casais, de famílias e de grupos), oportunizando o acolhimento a pessoas surdas por meio de atendimentos psicológicos em libras a serem agendados pelo site www.psicolibrasluciana.com.br. Trabalha, ainda, como psicóloga voluntária da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) de Curitiba/PR e como intérprete de libras no estado do Paraná.

Por que se tornou psicóloga e como se voltou também ao trabalho com pessoas surdas?

Sou natural de Porto Alegre e, quando era adolescente, sempre pensei em fazer psicologia, mas acabei me formando em outra área, fazendo concurso, casando e me acomodando. Mudei do Rio Grade do Sul para o Paraná há 20 anos e aqui consegui realizar esse sonho. Não trabalho somente com pessoas surdas. Tenho consultório na cidade de Pato Branco/PR e também um site de atendimentos. Desde o início da pandemia, o número de atendimentos on-line cresceu muito. Acabo atendendo muitas pessoas surdas pela falta de profissionais bilíngues em todo o Brasil.

Quantas pessoas surdas há no Brasil atualmente? E quantas fazem psicoterapia?

No país, cerca de 5% da população é surda e, parte dela usa a libras como auxílio para comunicação. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse número representa 10 milhões de pessoas, sendo que 2,7 milhões não ouvem nada. Pouquíssimos surdos fazem psicoterapia. O atendimento on-line facilitou muito, mas o SUS ainda não disponibiliza esse serviço.

Quais são as principais questões e patologias trabalhadas com esse público em psicoterapia? Há alguma diferença em relação ao público não surdo?

Não há diferença nas questões psicológicas a serem trabalhadas. O que existe e precisa ser mencionado e investigado pelo profissional é a questão de quando a pessoa ficou surda, qual o tipo de surdez, graus e como ocorre/ocorreu a comunicação com a família. Pois se trata do primeiro contato social da criança e, quando a família aprende libras e estimula o filho a aprender, muda (para melhor) todo o contexto de vida desse indivíduo.

E quantos psicólogos estão devidamente preparados para atender pessoas surdas? E o que é preciso para estar devidamente preparado?

Não tenho ideia de quantos no Brasil estão habilitados. Faço parte de um grupo de psicólogos bilíngues brasileiros. Somos 76, mas nem todos estão formados. Temos estudantes de psicologia que sabem libras. Para atender pessoas surdas, não adianta só saber sua língua. É preciso conviver com elas, pois sua cultura é diferente. No meu caso, fiz curso de libras básico, intermediário e avançado, além de três graduações em libras (licenciatura e bacharelado), o que me habilita ser docente da disciplina e também ser tradutora-intérprete de libras (TILS). Hoje ministro cursos e ensino acadêmicos de medicina e odontologia pensando em um atendimento humanizado/sinalizado. Inclusive já tenho dois projetos de extensão nessa área, na instituição de ensino superior (IES) em que trabalho.

Como funciona na prática a psicoterapia com pessoas surdas?

Tenho site e uso a plataforma Google Meet, mas faço o atendimento de forma presencial também (individual, grupos, casais e/ou famílias). O que devemos deixar bem claro é que não existem diferenças em atender uma pessoa surda ou ouvinte, o que muda é a língua.

Quais as principais conquistas alcançadas no atendimento psicoterápico de pessoas surdas? E qual a importância da internet nesse contexto?

A pessoa surda se beneficia com o autoconhecimento, assim como o ouvinte, mas infelizmente somos ainda poucos profissionais no Brasil. A internet me possibilitou atender surdos brasileiros que moram em outros estados e também países.

Quais os principais desafios que ainda precisam ser superados para que pessoas surdas tenham mais acesso ao atendimento psicológico?

Que a disciplina de libras entre de forma obrigatória na grade de todos os cursos da área da saúde. São, portanto, necessários mudança de grades curriculares, políticas públicas e interesse de profissionais. No Brasil, a libras é reconhecida como meio legal de comunicação da comunidade surda do país por meio da Lei nº 10.436/2002, regulamentada pelo Decreto 5.626/2005. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) reforçou e garantiu outros direitos relacionados à acessibilidade linguística às pessoas surdas. Partindo desse reconhecimento, o profissional de saúde é convocado a prestar um atendimento de excelência à população, levando em consideração a necessidade do domínio da língua de sinais, evitando problemas de comunicação, sintonia e empatia com o cliente.