A educação de alunos surdos ganhou notoriedade nos últimos anos, tornando-se tema da redação do Enem em 2017 e de propostas políticas nas últimas eleições presidenciais, por meio da Libras – Língua Brasileira de Sinais. Reconhecida como forma de comunicação e expressão de natureza visual-motora (Lei Federal 10.436, de 24 de abril de 2002), a Libras é um sistema linguístico para transmissão de ideias e fatos, a partir do uso de sinais de forma sistematizada, e próprio de comunidades de pessoas surdas. Seu ensino, obrigatoriamente, deve ocorrer junto à modalidade escrita da Língua Portuguesa.

Direito de inclusão adquirido

O Decreto Federal n° 5626/2005 que regulamenta a referida legislação, determinou a inserção da Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o Ensino Médio e Superior, além dos cursos de Fonoaudiologia, tanto de instituições públicas como privadas – e nas demais formações como disciplina optativa.

Neste contexto, atualmente, as organizações de movimentos sociais em prol dos direitos de pessoas surdas pautam um modelo educacional denominado ‘Educação Bilíngue’. Pela proposta, a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa se tornam as línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo processo educativo, sob a justificativa do reconhecimento da diferenciação sociolinguística entre pessoas surdas e deficientes auditivas.

Perspectiva sociolinguística

No último censo (IBGE, 2000) no Brasil havia um total de 26.145.911 pessoas com algum tipo de deficiência, e destas, 5.735.099 apresentaram-se “incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de ouvir”. Tais dados se pautam por uma abordagem clínica das possíveis causas da surdez, e por isto não distinguem com exatidão aqueles que possuíam apenas perdas (leves, moderadas ou severas) e os que realmente, à época, eram surdos (com anacusia, ou seja, perda total da audição).

A discussão da Educação Bilíngue surge quando se propõe entender este grupo a partir de uma perspectiva sociolinguística e emocional de inclusão efetiva e um aprendizado de respeito às diferenças.

O debate tem foco no aprendizado, mas não podemos esquecer do aspecto emocional que essa medida capta, já que a pessoa surda ou com deficiência auditiva pode se sentir mais pertencente ao meio ao ser compreendido em sua comunicação e, claro, facilitar sua interação e convivência interpessoal.

Respeito às pequenas diferenças

Surdos são aqueles cuja formação identitária se pauta pela surdez, e em razão disto, percebem as vivências e experiências pessoais dadas numa modalidade linguística espaço-visual. Em um dado momento de suas trajetórias, optam pela utilização da Libras como sua forma principal de comunicação e expressão, em detrimento de quaisquer possibilidades de práticas de oralização. Por meio da Libras compreendem a si mesmo, os outros e o mundo à sua volta, muitas vezes a partir de vivências em Associações de pessoas surdas. Já o deficiente auditivo é aquele que entende não ser necessária e nem satisfatória a comunicação por meio da Libras. Pauta-se pela abordagem clínica, há apreços por práticas de tentativas da recuperação da audição (com o uso de aparelhos auditivos e/ou implantes cocleares), e de oralização para a estimulação da língua oral-auditiva. Por tais razões, prefere a convivência em espaços da sociedade em geral.

Essa distinção é importante quando se discute a educação de surdos. A proposta da Educação Especial do MEC (pensada e executada desde os anos 1990), estabelece que todas as pessoas com deficiência estejam em escolas regulares, e garante sua aprendizagem e sociabilidade. Para os deficientes auditivos e/ou surdos, há o apoio de tradutores-intérpretes de Libras e a participação obrigatória no AEE (Atendimento Educacional Especializado, em contraturno). Entretanto, a proposta da Educação Bilíngue coloca em xeque a efetividade da Política de Educação Especial Inclusiva enquanto uma política pública educacional eficaz em relação ao atendimento de alunos surdos usuários da Libras. A crítica se dá pelo fato da proposta de inclusão não considerar justamente as especificidades linguísticas deste segmento, bem como os reflexos desta condição humana em seus aspectos sociais, culturais e emocionais, oriundos das vivências da surdez, que constitui suas identidades. 

Efeitos em toda a trajetória

Considera-se que os alunos surdos nos primeiros anos da educação básica ainda não possuem o domínio da Língua de Sinais (e de nenhuma outra). Boa parte também não são filhos de outros surdos, o que faz com que o primeiro contato com a Libras seja de forma tardia. A ênfase da crítica é que o aluno surdo não está incluído de fato nas classes regulares nos primeiros anos da Educação Básica, e os efeitos reverberam em toda trajetória escolar, provavelmente, fadada ao insucesso. E que também gera impacto na vida adulta, muitas vezes restrita exclusivamente à comunidade surda.

Apesar de integradas aos mesmos espaços escolares, e de favorecer práticas com alunos ouvintes para que entendam a importância da inclusão, para as crianças surdas, estas vivências materializam uma violação linguística: sem repertório comunicacional em sinais, tendo início com o contato com a Libras por meio de um profissional (tradutor-interprete de Libras) muitas vezes sem formação docente, este aluno surdo encontra-se, na maioria dos casos, preterido nas relações sociais (e, notadamente de poder) estabelecidas naquele contexto.

Longe de permitir igualdade

Apesar das boas intenções, a proposta educativa atual se expressa como uma tentativa meramente inclusivista, que pauta uma educação a partir de um prisma de igualdade formal, pois desconsidera a obrigatoriedade de atender as necessidades sociolinguísticas e culturais específicas dos alunos surdos; e portanto, longe de se permitir uma igualdade material entre alunos surdos e ouvintes em suas vivências escolares.

Neste sentido, a proposta da Educação Bilíngue é permitir aos alunos surdos, nos primeiros anos de sua formação, a aquisição de seus vocabulários linguísticos próprios, em salas de aulas específicas existentes em escolas regulares, nas quais as atividades educativas se deem com a utilização da Língua de Sinais. Tal escola será uma escola bilíngue para alunos surdos porque também ofertará uma acessibilidade ao currículo, adaptando-o para ser executado à partir do uso da Libras, e permitindo que o aluno surdo apreenda o conteúdo previsto na matriz curricular ao mesmo tempo em que construa seu vocabulário.

Fortalecimento da identidade

O ideal é pensar em salas de aulas bilíngues para surdos em que o educador também seja surdo (ou na sua ausência, por um ouvinte que domine a comunicação e os processos educacionais a partir desta modalidade linguística). Para uma criança surda, o contato com colegas também surdos e com docentes surdos ou usuários fluentes em Libras, permite o fortalecimento de uma identidade a partir desta condição humana. De forma positiva, as diferenças sociolinguísticas naturalmente serão fortalecidas, e o processo educativo se tornará possível e eficaz, superando a mera integração escolar atual.

Por outro lado, os aspectos da sociabilidade, papel da educação formal, na perspectiva da Educação Bilíngue se dará em dois momentos: com os alunos surdos entre si, e com os demais alunos da escola em que a classe bilíngue se localiza. Alunos surdos com alunos surdos permite-os perceberem as similitudes de suas vivências enquanto sujeitos que estabelecem relações sociais a partir do uso da Língua de Sinais. Já em momentos coletivos do espaço escolar (como as práticas esportivas, palestras, etc.), o contato com alunos ouvintes permitirá compreender as diferenças sociolinguísticas e as trocas de formas de se estabelecer comunicações por línguas cujas naturezas são distintas (os alunos surdos com língua espaço-visual, e alunos ouvintes com língua oral-auditiva).

Favorecer uma sociedade inclusiva

Ainda, neste contexto de uma educação bilíngue que dê conta das diferenças sociolinguísticas das pessoas surdas, se faz necessário repensar as práticas educativas, dando destaque àquelas que fomentem aspectos visuais, com a exploração de recursos didáticos e tecnológicos, como aplicativos e ferramentas digitais.

Por fim, na proposta da Educação Bilíngue há a demanda do ensino da Libras também para as crianças ouvintes que estudem nas escolas bilíngues. Ao aprenderem Libras em momentos coletivos, tem-se a certeza de que uma parcela significativa da sociedade ouvinte, em breve, conviverá de uma forma melhor com as pessoas surdas no geral, favorecendo de fato a existência de uma sociedade inclusiva e que reconheça as diferenças sociolinguísticas que a todos constituem.

E MAIS…

Planos estratégicos e financeiros para a Educação Bilíngue

Ao se compreender as diferenças sociolinguísticas que baseiam a defesa de políticas públicas de educação de surdos pela Educação Bilíngue, uma primeira demanda é a elaboração, no plano da gestão escolar pelas redes municipais e estaduais de educação, de escolas bilíngues pilotos para surdos. A gestão de recursos financeiros, humanos e materiais para sua organização exige compreender que este espaço se pautará pelas diferenças que constituem as identidades desse alunado.

Assim, uma gestão democrática e participativa exigirá o protagonismo de alunos surdos e de profissionais da educação preferencialmente surdos, que se pautem educativamente pela proposta e que articulam para a aprovação legal das escolas bilíngues nas redes municipais, bem como para sua organização prática e oferta ao público à quem se destina.