O educador, pesquisador e psicólogo infantil Jean Piaget relatou em sua autobiografia que a mais antiga memória de sua infância era a de quase ter sido sequestrado quando tinha dois anos.
Ele se lembrava de detalhes muito específicos, como do carrinho de bebê onde estava, da luta da enfermeira para defendê-lo e da polícia perseguindo o sequestrador.
Ele tinha recordações vívidas do acontecimento e estava totalmente convicto de sua veracidade. Treze anos depois da suposta tentativa de sequestro, porém, a antiga enfermeira escreveu aos pais dele confessando que a história havia sido inventada.
Falsa narrativa
A narrativa falsa foi repetida várias vezes pela enfermeira, pelos pais e por outras pessoas que também a tinham ouvido. Piaget escreveu: “devo ter ouvido, enquanto criança, o relato dessa história… e projetei no passado em forma de memória visual, que era uma memória de uma memória, mas falsa”. O educador foi vítima de um autêntico “implante de memória”.
A medicina ainda sabe pouco sobre os aspectos construtivos da memória. A pesquisa científica deu os primeiros passos na elucidação destes mecanismos na metade do século XX com a psicologia cognitiva.
Um processo detalhado
Os psicólogos cognitivos dividem a memória em três operações básicas: codificação, armazenamento e recuperação. Isso é: lembranças do passado não reconstroem os eventos, elas constroem memórias influenciadas por expectativas e crenças da pessoa, com influência, inclusive, de informação do presente. Acontecem todos os dias. Logo, a recuperação de uma lembrança não é fidedigna, como em um filme. Ela aproxima-se mais de uma montagem editada, que é fortemente influenciada pelas experiências prévias.
Os aspectos originais das situações vivenciadas fazem parte das lembranças, mas a mente faz ajustes para adaptar essas memórias, tornando-as coerentes com o modelo internalizado das expectativas que se tem de si e do mundo. Esse processo de ajuste ocorre por meio da seleção do que lembramos e do que esquecemos, além da adição de novas informações. Esse mecanismo de funcionamento da memória acarreta um fenômeno intrigante chamado “implante de memórias” ou “falsas memórias”, ou seja, a recordação de um fato ou uma experiência que nunca ocorreu.
Memórias dissociadas
Falsas recordações são construídas combinando-se lembranças verdadeiras com o conteúdo das sugestões recebidas de outros, ou ainda de conteúdos internos de cada pessoa. Durante o processo, os indivíduos podem se esquecer da fonte de informação. Este é um exemplo clássico de confusão sobre a origem da informação na qual o conteúdo e a proveniência dela estão dissociados. Obviamente, a possibilidade de se implantar falsas recordações de infância em alguns indivíduos não significa que todas as recordações que surgirem depois da sugestão serão necessariamente falsas.
As tais narrativas falsas podem ser referentes a maus-tratos, episódios inexistentes de descaso, abandono ou até falsas denúncias de abuso sexual. A introdução de falsas memórias afeta particularmente as crianças pequenas e é a força motriz das falsas denúncias de abuso, um problema que vem se tornando, infelizmente, muito comum e que, grande parte das vezes, tem, entre outros, o objetivo de impedir que um filho conviva com o (a) ex-cônjuge ou seus familiares. Ou seja, uma forma de alienação parental. Embora este não seja o único fator gerador de uma falsa denúncia, este viés precisa sempre ser investigado.
Atenção aos detalhes
Importante ressaltar que, quando o fato inexistente é narrado e confirmado por uma pessoa do círculo de confiança da criança e principalmente por aquele genitor que detém a sua guarda e com quem o menor convive diariamente, a recordação do ‘fato’ é mais facilmente confirmada pela criança.
Por isso, profissionais de saúde mental e outros devem estar atentos, pois podem influenciar enormemente na lembrança de eventos. O cuidado e a capacitação na abordagem ao relato das crianças envolvidas são fundamentais. Devem se atentar à necessidade de manter a moderação em situações nas quais a imaginação é usada como auxílio para recuperar memórias presumivelmente perdidas.
No caso de uma acusação fictícia de abuso sexual infantil, analisar cada passo que a criança deu nos relatos e compará-los com os anteriores é o ponto-chave para derrubar a falsa acusação. Na maioria dos casos de abuso sexual, a acusação é constante, enquanto a falsa acusação muda de acordo com as circunstâncias.
Investigação profunda
É fundamental investigar o que acontecia na vida da criança na época da revelação.
Cabe aos profissionais reverem suas atitudes para que pessoas falsamente acusadas não tenham sua vida e seu vínculo parental totalmente destruídos por mera incompetência.