A terapia de aceitação e compromisso (ACT, pronunciada como uma palavra única, do inglês acceptance and commitment therapy) é uma abordagem moderna da psicologia que faz uso de intervenções de aceitação com estratégias de compromisso e mudança comportamental a fim de promover flexibilidade psicológica. Diferentemente das terapias cognitivo-comportamentais (TCCs) mais tradicionais, ela não busca alterar a intensidade ou a frequência de emoções e pensamentos indesejáveis. Seu objetivo principal é cultivar a capacidade da pessoa de entrar em contato com o momento presente e, a partir do que a situação permite, modificar ou adotar um comportamento de acordo com os próprios valores. Ou seja, se concentra em facilitar uma vida mais gratificante mesmo na presença de adversidades.

Representativa entre as terapias contextuais, a ACT é definida como uma forma de psicoterapia da experiência, do comportamento e da cognição baseada na teoria do quadro relacional (RFT) cujas pesquisas surgiram do interesse em entender como os comportamentos verbais guiam outros comportamentos humanos. Ela supõe uma grande mudança no que diz respeito às terapias anteriormente disponíveis, principalmente em relação ao modo de as pessoas se relacionarem com seus conteúdos mentais. Também é inovadora a rejeição a uma classificação diagnóstica, invocando como único elemento de análise e planejamento de intervenção o comportamento do paciente e sua função dentro de um contexto.

Essa ligação com os princípios fundamentais do comportamento levou à criação de um modelo singular e de base empírica do funcionamento humano que compreende seis processos terapêuticos inter-relacionados: desfusão cognitiva, aceitação, contato com o momento presente (mindfulness), self como contexto, valores e ação comprometida. O modelo do hexágono chamado hexaflex ilustra esses seis processos utilizados pela terapia de aceitação e compromisso para que o paciente alcance maior flexibilidade psicológica. Cada um deles desempenha uma função importante no comportamento humano de se adaptar às mudanças e às circunstâncias desafiadoras da vida.

Guia

Nesta entrevista, o psicólogo Igor da Rosa Finger fala sobre o uso da terapia de aceitação e compromisso com o público infantil. Um dos profissionais responsáveis pela propagação da abordagem no Brasil, ele fez a revisão técnica do livro ‘ACT para o tratamento de crianças: o guia essencial para a terapia de aceitação e compromisso na infância’, traduzido para a língua portuguesa pela Sinopsys Editora. A obra é de autoria da doutora Tamar Black, psicóloga educacional e do desenvolvimento em Melbourne, Austrália, e que também ministra treinamentos para clínicos e professores no uso da ACT com crianças e adolescentes e em escolas.

Doutor em psicologia e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Igor é especialista em terapias cognitivo-comportamentais (INFAPA/FADERGS) e terapias cognitivo-comportamentais na infância e adolescência (InTCC/FADERGS). Professor convidado de cursos de especialização em TCC no Brasil, também trabalha como psicólogo clínico em consultório particular. Atualmente, clinica com base na ACT e na terapia comportamental dialética (DBT).

Qual o objetivo do livro ‘ACT para o tratamento de crianças’ e como ele pode auxiliar na prática clínica dos profissionais da psicologia?

Os objetivos primordiais são trazer uma adaptação viável e fiel da terapia de aceitação e compromisso para crianças e capacitar psicoterapeutas a aplicá-la. O livro adapta a abordagem, que, na origem, foi instrumentalizada para adultos, a uma linguagem e a uma técnica direcionadas à infância. Embora não se aprofunde na teoria sobre ACT, é rico em detalhes, com exemplos e diálogos da prática clínica da autora que podem servir como modelos para o atendimento aos pequenos e até de pais no caso de a criança não aderir ao tratamento. Escrita no período da pandemia, a obra não traz só a linguagem de como aplicar na clínica presencial, mas também possíveis adaptações para o atendimento on-line. Trata-se de um livro muito bom, completo, direto e eficiente para psicoterapeutas que querem trabalhar com crianças de uma forma mais ágil, segura e efetiva.

É necessário ter conhecimentos prévios de ACT para acessar a obra?

Depende da área da atuação do profissional. Se atender somente crianças, este livro provavelmente vai trazer o aprofundamento da ACT de que precisa, porque a autora traduziu os processos da abordagem para uma linguagem infantil. Mas se atender também adolescentes e adultos, não será suficiente, porque os termos estão adaptados ao público infantil. Serão necessários, portanto, outros termos, metáforas e exemplos que estão em livros para adultos, como o da coleção Características Distintivas, da Sinopys Editora.

Como a autora faz a adaptação ao público infantil?

Uma das grandes sacadas deste livro para crianças é a apresentação do chamado ACT kidflex. A autora pegou os mesmos seis processos da terapia de aceitação e compromisso e adaptou para a infância. Por exemplo, o de aceitação, tem como ideia principal assumirmos uma postura, como seres vivos, de permitir que nossas experiências internas, nossos pensamentos, emoções e sensações simplesmente aconteçam, pois não há nada de errado com isso. Mas se começarmos a negar esses pensamentos, emoções e sensações, criaremos um conflito com eles. Então a solução é permitir que aconteçam. Isso é aceitação. Só que o termo aceitação por si só, para adultos, muitas vezes, conota a ideia de resignação. E não é isso.

Então a autora traduziu o termo aceitação para let it be (do inglês, deixe ser ou deixe estar). Para traduzir para o português, eu e vários colegas com quem conversei entendemos que a melhor tradução seria deixe acontecer. O conceito de processo é o mesmo, mas a explicação tornou seu entendimento mais simples. Por exemplo, se a criança sente vergonha ao chegar na escola e tenta lutar contra esse sentimento, talvez ele fique maior e a impeça de entrar, fazendo com que perca todas as experiências que poderia ter na escola, inclusive as agradáveis. O resultado pode ser outro se a criança simplesmente deixar a vergonha acontecer, pois faz parte, todos sentem vergonha e está tudo bem em senti-la. Deixe acontecer.

Qual a importância de um livro de ACT para o tratamento de crianças?

A ACT ainda é uma abordagem nova em relação às TCCs tradicionais. Ao mesmo tempo, há muitas pesquisas em andamento e, à medida que estão sendo publicadas e havendo robustez das intervenções, vão se tornando cada vez mais necessárias e urgentes. No entanto, o desenvolvimento de pesquisas sobre o tratamento de ACT para crianças está um pouco atrás em relação ao público adulto. Mas esse mesmo caminho aconteceu com a TCC tradicional, que, primeiro, se voltou aos adultos para, depois, chegar ao público infantojuvenil.

A verdade é que assa abordagem pode ser muito positiva principalmente para o psicoterapeuta que já compreendeu que a visão de mundo contextual, a visão de pesquisa, de saúde, de qualidade de vida, faz sentido. Do ponto de vista da filosofia da ciência, o que as terapias contextuais – em especial a ACT – tentam trazer é uma mudança de paradigma de como vamos tratar a saúde e a doença mental inclusive de crianças. Tanto é que, até então, o foco primordial dos profissionais era tratar a doença mental, o transtorno, fazer com que a pessoa não sofresse mais e, com isso, não tivesse mais os critérios diagnósticos.

E a ACT veio com uma perspectiva diferente: em vez de uma visão mais mecanicista, no sentido de trocar engrenagens (se tenho o pensamento, a emoção e o comportamento errados, preciso trocá-los), ela quer mostrar que o mundo pode ser visto de uma forma mais contextual. Ou seja, tudo aquilo que a pessoa faz, incluindo o que a criança faz, porque funciona de alguma forma em algum contexto. Então não existe pensamento, emoção ou patologia disfuncional. A ACT “disfuncionaliza” e seu maior compromisso é ajudar a pessoa a não necessariamente não sofrer, mas se comprometer a construir uma vida que justifique viver. Na teoria, e é isso que as pesquisas estão vindo a comprovar, é que, quanto mais a pessoa dedica sua atenção a construir uma vida que justifique viver, menos impacto a patologia tem, até chegar em um ponto que aquela patologia pode não ter impacto algum e, quem sabe, nem existir mais. Trata-se de uma visão de trabalho diferente.

É possível adaptar as técnicas da ACT para o atendimento on-line?

Existe uma ideia de que tratar crianças on-line é impossível ou inadequado, mas, na verdade, não é. O primeiro ponto importante é a perícia, a precisão, do clínico para verificar se a criança tem condições, possibilidades e habilidades para ter consultas on-line. Cabe ao profissional inclusive averiguar a questão do sigilo desse paciente, constatar se ele se sente seguro para falar estando dentro do ambiente de sua casa, onde pode ter acontecido algo.

No caso de não haver restrições, todos os seis processos que são apresentados no livro de ACT para crianças têm exemplos de como podem ser trabalhados on-line. O que vai ser necessário é instruir os pais antecipadamente para providenciarem alguns materiais, pois existem metáforas que requerem algum tipo de material, como folhas, lápis, pedrinhas, isopor, garrafa com água e glitter. Essa metáfora, por exemplo, busca mostrar que, para separar a água do glitter, é preciso deixar a garrafa quieta em vez de sacudi-la, pois, aos poucos, o glitter vai descendo e se acalmando, assim como nossa mente. O livro também disponibiliza formulários para download que podem ser utilizados no atendimento on-line.

E quando os pais são os clientes, o que você destaca?

Há casos em que a criança se nega a fazer terapia e não há como obrigá-la a ir ao consultório. É quando entra o treinamento de pais. O principal trabalho nas consultas é capacitá-los para que vivenciem os processos da ACT, mostrem aos filhos que estão vivenciando esses processos e os estimulem a fazer o mesmo no dia a dia. Na consulta seguinte, é feita a avaliação de como foi essa aplicação do processo e qual o resultado na criança.

Importante ressaltara que a ACT é uma terapia processual e não protocolar. E o objetivo é desenvolver flexibilidade psicológica nas crianças. Há seis formas de se trabalhar esse objetivo, que são os seis processos. Se o terapeuta ficar duas ou três consultas em um processo, ou trabalhar um processo em cada consulta, ou trabalhar dois processos em uma consulta, está ótimo. O mais importante é perceber que está desenvolvendo flexibilidade psicológica nas crianças.

E o mesmo vale para os pais. Se o profissional vai trabalhar dois ou três processos em uma consulta, perfeito. Se trabalhar um processo em várias consultas, perfeito também. O mais importante é que note que os pais estão desenvolvendo os processos de flexibilidade para alcançar e afetar as crianças e estimulá-las a desenvolverem também.

Para quem a ACT é efetiva e em qual contexto?

Na ciência, tudo é mutante, modificável, volátil. Quando alguém estiver lendo esta entrevista, pode ser que esta informação já esteja desatualizada. Ainda são necessárias mais pesquisas na área, mas já existem evidências que mostram que a ACT pode ser a primeira escolha, por exemplo, para dores crônicas e fibromialgia. No que diz respeito a transtornos mentais, se vê a abordagem como uma boa escolha para transtornos da ansiedade e do humor.

Mas ela não parece ser uma boa escolha para anorexia, assim como muitas abordagens, inclusive a TCC, não têm tantas evidências consolidadas para anorexia. A ACT também não é uma abordagem específica para transtorno da personalidade borderline (TPB), embora, ouso dizer, todos os seus processos podem ser observados na terapia comportamental dialética (DBT), que é a abordagem de escolha para borderline. No entanto, não é possível afirmar que somente a ACT pode ser usada para tratar TPB, porque o tratamento precisa do algo a mais que a DBT tem.

Desconheço estudos sobre transtornos psicóticos, como esquizofrenia ou outros, para saber quanto a ACT pode ser favorável. Mas conheço, por exemplo, estudos direcionados ao comportamento alimentar, como compulsão alimentar, que estão se mostrando promissores. Portanto a ACT pode ser uma boa escolha para trabalhar com o chamado comer emocional. Mais informações sobre evidências da efetividade da abordagem podem ser buscadas em bases de dados como Cochrane Library.

Qual seu conselho para quem está considerando trabalhar com a abordagem?

Primeiro ponto: esteja aberto a vivenciar a ACT na sua vida. Um bom terapeuta ACT é aquele que não difere a vida pessoal da profissional, vive a filosofia ACT. Segundo ponto: compre todos os livros que encontrar sobre terapia de aceitação e compromisso, pois os autores escrevem de forma diferente. E leia esses livros. Terceiro ponto: foque em supervisores. Sou contrário a formações muito longas, como especializações. A não ser que seja para um concurso público ou para networking e troca de ideias, não faz sentido a especialização. Conhecimento já existe e é acessível. Foque então nos livros, em supervisão ou em formações curtas e pontuais que tragam a experiência junto com o autor.