Desenvolvida a partir da década de 1970 pela psicóloga norte-americana Marsha Linehan, a terapia comportamental dialética, mais conhecida como DBT (do inglês dialectical behavior therapy), foi originalmente direcionada ao tratamento de pacientes com intensa desregulação emocional. Uma das principais abordagens da chamada terceira onda das terapias cognitivo-comportamentais (TCCs), se mostra como a opção terapêutica mais efetiva no tratamento de pacientes com transtorno da personalidade borderline (TPB). No entanto, ao longo do tempo, vem demonstrando eficácia no tratamento de uma série de outros transtornos.

Inclusive no atendimento a adolescentes que apresentam comportamentos suicidas, autolesão sem intencionalidade suicida, comportamentos sexuais de alto risco, alimentação desordenada, uso de drogas ilícitas, consumo excessivo de álcool, raiva descontrolada, evasão escolar, autoconsciência emocional, de objetivos e valores prejudicada, rompimentos frequentes de relacionamentos e outras condutas prejudiciais. A DBT enxerga todos esses distúrbios como consequências da desregulação emocional ou como tentativas de lidar com ela. Em outras palavras, a desregulação emocional leva à desregulação interpessoal, comportamental, cognitiva e pessoal (self).

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pelo psicólogo Wilson Vieira Melo, presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC) e revisor técnico do ‘Manual de habilidades em DBT para adolescentes’.

Publicado em português pela Sinopsys Editora e de autoria dos psicólogos norte-americanos Jill H. Rathus e Alec L. Miller, autoridades no assunto, o livro é um guia para profissionais de saúde mental que trabalham com jovens que lutam para controlar suas emoções e seus comportamentos.

Wilson Vieira Melo tem doutorado em psicologia (UFRGS), mestrado em psicologia clínica (PUCRS) e treinamento intensivo em DBT pelo The Linehan Institute Behavioral Tech (EUA). É professor de pós-graduação em nível de especialização em terapia cognitiva em diversos estados do Brasil, fundador da Associação de Terapias Cognitivas do Rio Grande do Sul (ATC-RS) e do Instituto de Terapia Cognitiva do Rio Grande do Sul (ITC-RS) em Porto Alegre/RS, município onde atua como psicoterapeuta, presta supervisão clínica e consultoria diagnóstica.

Para quais patologias a DBT é indicada e mais efetiva?

A DBT é o tratamento de primeira linha com fortes evidências para transtorno da personalidade borderline (TPB) desde 1998. Para se ter uma ideia, o primeiro artigo de DBT, da Marsha Linehan, é de 1991. E em 1993, ela publicou o ‘Manual de habilidades da DBT’ e o ‘Manuel da DBT’ em si. E em 1998, já era o tratamento considerado na época provavelmente eficaz e, atualmente, o único com fortes evidências para personalidade borderline. No entanto, existem outros estudos mostrando efetividade para transtornos alimentares, em especial quando é um transtorno alimentar em comorbidade com TPB, dependência química e transtorno bipolar. O perfil principal das intervenções em DBT engloba casos mais complexos, com múltiplas comorbidades, pacientes com comportamento de autolesão, que se machucam, pacientes com comportamento cronicamente suicida, com histórico de múltiplas internações. Para indivíduos com transtorno bipolar, pânico ou transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), existem outros modelos de protocolo de tratamento com mais efetividade do que a DBT. Mas quando a gente tem tudo isso junto, no mesmo paciente, a DBT é uma ótima opção, por ela ter essa visão mais transdiagnóstica. É um tratamento que foi construído para casos mais graves e complexos.

Em quais aspectos a DBT se diferencia da terapia cognitivo-comportamental (TCC) em si?

A DBT é um tratamento mais voltado para a regulação emocional e ela pressupõe que a desregulação emocional é a força motriz que leva a todas as outras desregulações que o paciente tem na vida: desregulação interpessoal, comportamental, do self e inclusive a cognitiva. Marsha Linehan, criadora da DBT, não discorda do pressuposto da TCC de que a cognição influencia emoção e comportamento, que a cognição é passível de ser monitorada e alterada e que, se a alterarmos, teremos uma mudança emocional e comportamental. Isso é verdadeiro. Só que a DBT defende que, para casos mais graves, a intensa desregulação emocional é o aspecto-chave. Do ponto de vista conceitual, a diferença é que a TCC foca muito mais na reestruturação cognitiva, ou seja, na mudança da maneira como a pessoa interpreta o evento, e a DBT, por ter um olhar mais voltado para a análise funcional do comportamento, acaba focando suas intervenções no manejo de contingências ambientais, entendendo que os comportamentos acontecem e se mantêm porque eles funcionam. Por exemplo, se eu tenho um paciente que se corta e tem os braços cheios de cicatrizes, ele não teria se cortado mais de uma vez se a primeira não tivesse trazido algum resultado que fosse reforçador para aquele comportamento. Então se trata de uma intervenção muito comportamental, mas ela também atua em aspectos cognitivos.

Quais os diferenciais apresentados no ‘Manual de habilidades em DBT para adolescentes’ em relação ao tratamento de adultos?

A DBT para adultos pressupõe 12 meses de treinamento de habilidades em quatro módulos, que são mindfulness, regulação emocional, tolerância ao mal-estar e efetividade interpessoal. O treinamento de habilidades para adolescentes envolve, além desses quatro, um quinto módulo, que é o módulo trilhando o caminho do meio. É um tratamento mais enxuto, são seis meses, e tem um grande diferencial que é a participação dos pais/cuidadores, que são incluídos no processo de treinamento de habilidades. E como os autores têm muita experiência com adolescentes, eles trazem muitos exemplos de como ensinar uma habilidade, contando experiências que deram certo ou errado na implementação do treinamento de habilidades.

Como usar a DBT na orientação de pais/cuidadores de adolescentes?

O módulo trilhando o caminho do meio é voltado a ensinar conceitos da DBT, conceitos cognitivos e comportamentais, como punição, reforço e extinção comportamental. E todo modelo de entendimento da análise funcional do comportamento faz muito sentido ser ensinado aos pais/cuidadores, porque os adolescentes que se desregulam, se eles tiverem um ambiente que reforce o comportamento de crise dentro de casa, esse comportamento tende a ir escalonando, ou seja, vai perpetuando esse padrão de comportamento. O ‘Manual de habilidades em DBT para adolescentes’ tem bem clara a maneira de poder implementar isso na prática com o paciente tanto no contexto de grupo quanto no contexto individual.

Como a DBT atua no caso de uma mãe que desqualifica/ofende a filha adolescente obesa?

Na DBT, a gente chama isso de ambientes invalidantes. São aqueles ambientes em que a pessoa é punida por ser como é, é criticada por ser como é, e muitas vezes vamos ter famílias muito invalidantes. Para esse caso, há na DBT uma estratégia de consultoria ao paciente, ou seja, vamos ensinar à pessoa a lidar com a mãe que tem. Então é possível trabalhar com aceitação radical (aceitar a mãe que se tem) e é possível ensinar habilidades para que o paciente possa aprender a lidar com esse ambiente de invalidação. Como a DBT é um tratamento muito focado na aquisição de habilidades, o foco principal vai ser sempre munir o indivíduo de habilidades para que ele possa lidar com o ambiente que tem. Só que, algumas vezes, quando o ambiente é intransigente demais, o paciente claramente não tem condições de lidar com aquilo e é muito importante que o resultado seja diferente, teremos um segundo conjunto de estratégias, que são as intervenções ambientais. Por exemplo, chamando essa mãe, fazendo uma sessão dela junto com a filha, ou uma intervenção só do terapeuta com a mãe, ou do terapeuta com o professor da escola, ou com a equipe de internação.

Qual o manejo da DBT na regulação da raiva?

Tem vários recursos na DBT para manejo da raiva e outras emoções intensas. Mas numa resposta mais ampla, se entendermos as nossas emoções como uma pirâmide, quanto maior a ativação emocional, menor a capacidade cognitiva ao manejar aquela emoção. Então se eu tenho uma raiva nível 5, 6 ou 7, é possível fazer uma reestruturação cognitiva, preencher um RPD (registro de pensamentos disfuncionais) da TCC, ali eu posso ter um pensamento alternativo, que faz com que diminua minha raiva. Mas se eu tenho uma raiva nível 9 ou 10, alguém que está totalmente desregulado, é preciso agir na fisiologia da emoção. A DBT tem algumas estratégias que são utilizadas, por exemplo, no módulo de tolerância ao mal-estar, as chamadas estratégias TIP, que envolvem modificação da temperatura do corpo, o que ajuda a regular as emoções. Fazer uma atividade física intensa, como correr ou pular corda, para gastar os hormônios do estresse, mais especificamente a adrenalina e o cortisol, ou seja, mudar a fisiologia, fazendo uma ativação cardiovascular importante, também ajuda a atuar na raiva. Outra estratégia comportamental que pode ser utilizada é o relaxamento respiratório. Há diversas outras estratégias.

Quais são as estratégias utilizadas pela DBT em casos nos quais já houve planejamento ou tentativa de suicídio?

Há uma máxima na DBT de trabalhar os alvos primários, ou seja, vamos ter como foco principal para trabalhar com pacientes os comportamentos que oferecem risco à vida, entram aí os comportamentos suicidas. Dentro dos alvos primários, ainda tem comportamento que oferece risco à terapia, como o paciente mentir para o terapeuta, faltar às sessões, ser agressivo, ter uma postura que dificulte o trabalho terapêutico. E em terceiro lugar, comportamentos que oferecem risco à qualidade de vida, nos quais se enquadram uso de substâncias e comportamento de autolesão sem intencionalidade suicida (a pessoa se corta, se mutila, se arranha, se queima com toco de cigarro). Portanto, sempre que tivermos riscos de suicídio, isso é um alvo primário. Não vamos focar em mais nada que não seja trabalhar esse potencial suicida. A gente pode pensar numa escadinha de quatro degraus do risco de suicídio em que o primeiro degrau é o risco de ideação, quando há forte desesperança e o paciente revela um desejo de se matar. O segundo degrau é quando a pessoa já tem um plano específico. Às vezes, o paciente diz que pensa em se matar e a gente pergunta: você já sabe como faria isso? Se ele responde que ainda não pensou com faria, está mais longe de tentar do que aquele que diz que se enforcaria, tomaria remédio, saltaria pela janela do quarto. O terceiro degrau é quando a pessoa já tem acesso ao meio letal que escolheu, ou seja, já comprou a corda, já tem a arma carregada em casa, tem acesso ao medicamento com potencial de letalidade, mora num andar alto. E o quarto nível de risco é quando houveram tentativas prévias. Se a pessoa já teve coragem um dia de puxar o gatilho, não morreu, mas já tentou uma vez seriamente, ela tem uma chance maior de tentar de novo. Então a gente pode avaliar esse potencial suicida para poder verificar inclusive se o paciente tem condições de ser acompanhado em nível ambulatorial ou se precisa ir para uma internação para protegê-lo dele mesmo.

A DBT pode ser usada aliada à terapia do esquema?

Elas têm pressupostos diferentes. Tenho colegas que trabalham muito bem associando as duas intervenções para trabalhar regulação emocional. E já ouvi de colegas que é difícil associar as duas intervenções. Mas cada vez mais estamos caminhando para um declínio das abordagens nomeadas. Cada vez menos vai ter espaço para dizer eu sou terapeuta do esquema, eu sou DBT, eu sou terapeuta cognitivo. A tendência é que a gente veja um olhar cada vez mais baseado nos processos psicológicos e nos procedimentos que fazem sentido para poder tratar esses processos psicológicos. Dentro disso, DBT, ACT, terapia cognitiva, enfim, todas as intervenções podem ter algo de válido que pode ser cada vez mais integrado dentro de uma prática clínica baseada em evidências.

Então os profissionais vão acabar especializados em transtornos e não em abordagens?

Não, pelo contrário. Estamos passando por uma crise do nosso modelo de classificação diagnóstica atual. Eu acho que cada vez menos se observa um crescimento do interesse nas intervenções transdiagnósticas. Aqueles tratamentos que parecem funcionar para mais de uma coisa. Por exemplo, a gente está falando aqui de DBT, que é um tratamento que é muito focado na regulação das emoções. Desregulação emocional é um fenômeno que está presente em vários capítulos do DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais). Vemos desregulação emocional no transtorno bipolar, nos transtornos da personalidade, nos transtornos de ansiedade, na dependência química, nos transtornos alimentares. Então uma intervenção útil para regulação emocional acaba não focando num transtorno, mas num fenômeno, num processo psicopatológico que está presente em diversos transtornos. Portanto, penso que estamos cada vez mais nos direcionando para intervenções mais orientadas para processos e, consequentemente, intervenções mais transdiagnósticas do que para transtornos específicos.