ESTUDO DO CASO

Regina, uma mulher de 30 anos de idade, branca, é veterinária e mora com a sua namorada. Ao longo de sua história familiar, ela passou por situações traumáticas em sua infância ao vivenciar o divórcio dos seus pais. Relata que sofreu com as brigas e a saída de seu pai de casa, com quem mantém uma relação mais próxima. Relata, ainda, se sentir sozinha em casa, uma vez que tem poucas conversas e escasso afeto físico com sua mãe e seu irmão, com quem já morou. Conheceu sua atual namorada na faculdade, com quem se mantém em um relacionamento há seis anos. Elas moram juntas e pensam em noivar no ano seguinte.

Apesar de, inicialmente, a sua demanda estar relacionada a uma angústia expressa em comportamentos classificáveis em Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e ansiedade, o seu relacionamento passou ser o tópico mais recorrente das sessões de terapia, quando a traição de sua parceira passou a ser o tema central. Além de considerar a traição como um sofrimento inevitável, o seu grande temor tornou-se realidade: ela foi traída por sua namorada com um homem. Mesmo antes de conhecer sua parceira, ela já nutria esse medo de ser substituída por um homem que oferecesse o que ela não pode. Ademais, em outros momentos, ela demonstra outros temores, quer seja de ser confundida com um homem por usar um corte de cabelo curto e roupas mais largas, quer seja de que a traição ocorresse dentro de sua própria casa ou até mesmo em seu cômodo preferido: a varanda

Seu local seguro

Regina sempre demonstrou grande apreço por seu primeiro apartamento, do qual sustentava junto com sua parceira, decorando e construindo cada canto com identidade, orgulho e carinho. Dizia que sua casa era o seu local seguro, mas que depois da traição, passou a ter dificuldade de se sentir bem em sua casa, principalmente porque já não entrava na varanda. Entretanto, mesmo diante desse sofrimento, escolheu continuar com sua parceira e tentar retomar o que tinham. As reações emocionais de Regina diante da retomada do relacionamento eram de tristeza, raiva e ansiedade. Alguns momentos de crises vinham com pensamentos repetitivos, sempre baseados nos conteúdos de traição, tristeza, choro. Vivenciar essa nova realidade na qual ela foi traída irrompia na raiva, que culminava em socos contra si mesma ou móveis da casa, até que se cansa e se acalma. Além disso, essa raiva também apareceria em outros momentos quando ela relembrava a traição e, com isso, sentia necessidade de confrontar verbalmente a sua companheira.

Ao analisar o caso de Regina, podemos perceber que seu relacionamento contribuía para a realização dos sentidos que ela encontrava em sua vida. No início da construção de sua vida conjugal, por meio do apartamento decorado por ela e sua parceira, Regina se sentia em um lugar seguro, físico e afetivamente. Seu relacionamento de seis anos era palco para sua realização de valores criativos e experienciais. Regina consertava coisas na casa, instalava utensílios domésticos e até construiu uma mesa para seu refúgio doméstico: a varanda.

Sentimentos confusos

Com a infidelidade da parceira, Regina passa a se questionar sobre o amor ou a falta dele. Além disso, existem as próprias atitudes de Regina de extrema dedicação ao relacionamento. Entretanto, com o passar do tempo, ao conseguir escutar sua parceira e compreender a perspectiva dela sobre a situação, Regina compreendeu que não se tratava de falta de amor. Na realidade, sua parceira estaria também imersa em suas próprias questões pessoais, ou seja, diversos fatores em sua vida que contribuíram em pensamentos e sentimentos confusos sobre si mesma e que, com isso, tiveram reflexos em seu relacionamento, a levando ao desfecho de traição. Embora tenha aceitado retomar o relacionamento pelo amor que sentia, Regina não isentava a parceira da responsabilidade pela traição, fazendo menção à ideia de que ela teve liberdade para escolher.

Dessa forma, ela continuou culpando a parceira em conversas permeadas por insultos, raiva e ressentimentos. Assim, na maior parte do tempo, as duas se machucavam agredindo-se cada vez mais. Porém, só com o passar do tempo foi possível Regina se acalmar e buscar um caminho para perdoar a parceira. Ademais, ela também percebeu que, caso continuasse assim, perderia seu amor e companheira. Para Frankl, o verdadeiro sentido e atitude de amor inviabilizaria qualquer chance de traição, caso ambas as partes envolvidas no relacionamento estivessem alcançado a vivência do amor em sua dimensão noética. Entretanto nos questionamos se, de fato, a traição seria a mera ausência de amor. Seria possível que, no decorrer de um relacionamento genuinamente amoroso, as dimensões biológica e psicológica despertassem outras necessidades a um dos envolvidos? Considerando o sujeito como um ser integral – movido por fatores externos e possuindo aquelas três dimensões existenciais – é possível reconhecer que não se trata apenas do amor. A pessoa lida com muito mais do que amor em um relacionamento.

Valores de atitude

Mas podemos nos perguntar: Qual atitude perante o amor a parceira de Regina estaria exercendo? Pareceu-nos que Regina exerceu sua própria liberdade e responsabilidade escolhendo primeiro reagir com raiva e depois perdoar, usando seus valores de atitude. Tudo isso perpassado pelo luto de um relacionamento traído e enxergando a infidelidade de sua parceira. Mas o verdadeiro amor, de acordo com Frankl (2018), não é cego. Pelo contrário, ele permite compreender o outro de forma nítida e profunda, especialmente em relação às potencialidades valorativas do ser amado. Esta visão do vir-a-ser da namorada de Regina pode oferecer a ela condições necessárias, neste momento, para investir num possível resgate do relacionamento, ainda que isso não seja isento de dor pela cicatrização das feridas provocadas pela desilusão da traição.

Dessa forma, além de esperar o tempo passar baseado nos seus valores de atitude e redecorar seu apartamento exercendo seus valores de criação, Regina escolhe, de forma responsável exercer sua liberdade para escolher ficar e mudar o local que a faz lembrar da traição. Assim, foi possível para Regina encontrar novos sentidos e, consequentemente, realizar valores que passaram a deixá-la mais feliz e animada, com ela, com sua casa e com sua companheira.

E MAIS …

Soltando as correntes que carrega

Regina valorizou os esforços da sua parceira em alinhar novamente o relacionamento, fazendo com que “as correntes das quais carrega sobre esse acontecido, possam aos poucos irem se soltando”, como a própria Regina mencionou em uma das sessões de terapia. Com isso, podemos concluir que, embora o sofrimento seja inevitável, é possível escolher caminhos para encontrar novos sentidos e transformar acontecimentos negativos em novas vivências positivas, assim como alguém que carrega correntes e, eventualmente, se torna mais forte.

Referências
Cerqueira, E.K. & Vicente, R.O. (2017). O sentido do amor na logoterapia e análise existencial de Viktor Frankl. IN: SEDAC. Família e Amor. STUDIUM, Várzea Grande, 3(4), 1-106. Acesso em março de 2022, disponível em: <http://unifacc.com.br/wp-content/uploads/2019/09/Sedac-Revista-ABRIL-2017.pdf#page=26>
Frankl, V. (2008). Em busca de sentido (37 ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Frankl, V. (2018). Psicoterapia para todos: uma psicoterapia coletiva para contrapor-se à neurose coletiva (3 ed.). Petropólis, RJ: Vozes.
Frankl, V. (2019). O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. São Paulo, SP: É Realizações.
Moreira, N., & Holanda, A. (2010). Logoterapia e o sentido do sofrimento: convergências nas dimensões espiritual e religiosa. Psico-USF, 15(3), 345-356. Acesso em março de 2022, disponível em https://www.scielo.br/j/pusf/a/HxrrqnNtNcfvGT5xQwbmNTf/?lang=pt&format=pdf