ESTUDO DE CASO
Fabio, 39 anos, divorciado procurou Psicoterapia por estar em um processo depressivo. Além da depressão, tinha diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) realizado por psiquiatra. Sentia-se desmotivado e via a sua vida estagnada, não conseguia focar em cursos extracurriculares, apesar de perceber esta necessidade para a sua própria ascensão profissional. Estava em uso de antidepressivo e de metilfenidato, ambos prescritos por psiquiatra.
Padrões repetitivos
Após meses de atendimento semanal, percebi que além da desmotivação, dificuldades de atenção e ansiedade, Fabio tinha padrões repetitivos de comportamento, apego a detalhes, gosto por livros e filmes de ficção científica, fixação em Star Trek, e extrema dificuldade de interação social. Fabio, por sua extrema racionalidade, chegou a pensar que tinha algo relacionado à psicopatia e trouxe sua preocupação para o atendimento. Expliquei-lhe que eu estava extremamente tranquila quanto esta possibilidade, pois ele não apresentava agressividade, nem tampouco crueldade, apesar da extrema racionalidade e dificuldade em lidar com emoções. Perguntei-lhe se já tinha lido algo sobre Autismo e Fabio respondeu que sim, e que tinha características parecidas com as de portadores do transtorno.
Fabio chegou em casa e ao pesquisar sobre Autismo se identificou com os sintomas e propôs que fizéssemos uma bateria de testes para avaliá-lo. Por ser pós graduanda em Neuropsicologia, sugeri uma avaliação neuropsicológica, a qual o paciente aceitou prontamente.
Processo de avaliação
A avaliação aconteceu em 6 sessões de 2 horas. Na primeira sessão, foi realizada anamnese detalhada sobre dados desde a infância até a atualidade. Na segunda sessão, aplicou-se as Figuras Complexas de Rey2; o Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey (RAVLT)3; o Five Digit Test, Teste dos Cinco Dígitos (FDT)4 e a Bateria Psicológica para Avaliação da Atenção (BPA)5. Na terceira sessão, foi aplicada a Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (WAIS-III)6 para avaliação da eficiência intelectual. Na quarta sessão, Fabio respondeu o Eyes Test7 e o Inventário de Habilidade Sociais8 para avaliação de Teoria da Mente[1] e das Habilidade Sociais respectivamente. Na quinta sessão, como instrumentos de avaliação qualitativa, foram aplicadas as escalas Empathy Quotient (Quociente de Empatia) (EQ)9 e Autism Spectrum Quotient (Quociente do Espectro Autista) (AQ)10, que são específicas para autismo, a Hospital Anxiety and Depression Scale (Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão) (HADS)11 e a Entrevista para o Diagnóstico do TDAH em adultos DIVA12 para avaliação de TDAH, visto que Fabio já tinha diagnóstico de TDAH e relatava problemas significativos de atenção e memória operacional. Fabio respondeu em casa (online) o Inventário de Personalidade NEO Revisado (NEO PI-R)13 para que eu pudesse conhecer melhor suas características de personalidade. Na última sessão, foi realizada a entrevista devolutiva.
Fabio demonstrou ter QI médio superior e apresentou déficits nos seguintes constructos cognitivos: memória, funções executivas, habilidades sociais e Teorias da Mente. A partir dos dados analisados, o perfil cognitivo de Fabio se demonstrou compatível com Transtorno do Espectro Autista e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, apresentação predominantemente desatenta.
Diagnóstico e tratamento de TEA
Após a devolutiva, Fabio iniciou reabilitação cognitiva para memória e velocidade de processamento. Fabio não deseja iniciar o treino de habilidades sociais ao menos por agora. Seu treino cognitivo vem evoluindo gradativamente e Fabio se sente mais focado, mais motivado, mais produtivo e processando melhor as informações.
Atualmente, muitos de nós conhecemos pais com filhos portadores de TEA, mas os convido a refletir sobre quantos adultos portadores do transtorno estão sem diagnóstico por conta da falta de informação acerca do tema que existia anteriormente? Muitas vezes, um diagnóstico é importante para que o indivíduo se conheça e se reconheça; e também para que os profissionais possam delinear um tratamento adequado.
Portadores de TEA costumam se sentir diferentes dos demais indivíduos desde a infância e carregam esta sensação até a vida adulta, trazendo inclusive dificuldades que podem ser amenizadas com o diagnóstico e tratamento correto. Quando as terapias têm início na infância, a adaptação destes pode ser mais adequada e o sofrimento que carregam minimizado.
Desenvolvimento de protocolo
Embora existam diversos testes de rastreio e alguns protocolos para avaliação de TEA em crianças, não existe protocolo definido para a avaliação no adulto. O protocolo apresentado aqui foi desenvolvido por mim após estudo e pesquisa, portanto fica evidente a necessidade de desenvolvimento de protocolos específicos para avaliação de TEA no adulto, bem como divulgação e informação sobre o tema para que estas pessoas possam se conhecer, reconhecer e desenvolver habilidades para que se sintam melhor consigo mesmos e no convívio social.
O conceito médico e científico do TEA no DSM V
De acordo com o DSM V1, os critérios diagnósticos para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) são:
A. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos):
1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma conversa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais.
2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal.
3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse por pares. Especificar a gravidade atual: A gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões de comportamento restritos e repetitivos.
B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por, pelo menos, dois dos seguintes, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos):
1. Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos (p. ex., estereotipias motoras simples, alinhar brinquedos ou girar objetos, ecolalia, frases idiossincráticas).
2. Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (p. ex., sofrimento extremo em relação a pequenas mudanças, dificuldades com transições, padrões rígidos de pensamento, rituais de saudação, necessidade de fazer o mesmo caminho ou ingerir os mesmos alimentos diariamente).
3. Interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco (p. ex., forte apego a ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverativos).
4. Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (p. ex., indiferença aparente a dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar objetos de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou movimento). Especificar a gravidade atual: a gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões restritos ou repetitivos de comportamento.
C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento (mas podem não se tornar plenamente manifestos até que as demandas sociais excedam as capacidades limitadas ou podem ser mascarados por estratégias aprendidas mais tarde na vida).
D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo no presente.
E. Essas perturbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou por atraso global do desenvolvimento. Deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista costumam ser comórbidos; para fazer o diagnóstico da comorbidade de transtorno do espectro autista e deficiência intelectual, a comunicação social deve estar abaixo do esperado para o nível geral do desenvolvimento.
Referências
1. American Psychiatric Association. DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5a ed. Artmed; 2014. 992 p.
2. Rey A. Figuras Complexas de Rey: teste de cópia e reprodução de memória de figuras geométricas complexas. Pearson Clinical Brasil; 2018.
3. De Paula JJ, Malloy-Diniz LF. Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey (RAVLT): livro de instruções. São Paulo: Vetor Editora; 2018.
4. Sed M, Paula JJ, Malloy-Diniz LF. Five Digit Test, Teste dos Cinco Dígitos. São Paulo: Hogrefe; 2015.
5. Rueda FJM. Bateria Psicológica para Avaliação da Atenção BPA. São Paulo: Vetor Editora; 2013.
6. wechsler D. Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (3a Edição). São Paulo: Casa do Psicólogo; 2015.
7. Vieira B et. al. Revised Reading the Mind in the Eyes Test (RMET) – Brazilian version. Rev Bras Psiquiatr. 2013;
8. Del Prette ZAP, Del Prette A. Inventário de habilidades sociais 2 (IHS2-Del-Prette): manual de aplicação, apuração e interpretação. São Paulo: Pearson Clinical Brasil; 2018.
9. Baron-Cohen S, Wheelwright S. The Empathy Quotient (EQ). An investigation of adults with Asperger Syndrome or High Functioning Autism, and normal sex differences. J Autism Dev Disord. 2004;34:163–75.
10. Baron-Cohen S, Wheelwright S, Al E. The Autism-Spectrum Quotient: a new instrument for screening AS and HFA in adults of normal intelligence. J Autism Dev Disord. 2001;31:5–17.
11. Crawford JR, Henry JD, Crombie C, Taylor EP. Normative data for the HADS from a large non-clinical sample. Br J Clin Psychol. 2001;40(4):429–34.
12. Kooij JJS, Francken MH. Entrevista para o Diagnóstico de TDAH em Adultos. Holanda: Diva Foundation; 2010.
13. Costa JPT, McCrae RR. NEO PI-R: Inventário de Personalidade Neo revisado; e Inventário de cinco fatores Neo revisado: NEO-FFI-R (versão curta). São Paulo: Vetor; 2010.
14. Malloy-Diniz L, Fuentes D, Mattos P, Abreu N, e cols. Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed; 2010.
[nota de rodapé 1] Teorias da Mente: capacidade de inferir o estado mental de outros indivíduos. Portadores de TEA não apresentam esta capacidade14.