Saúde mental e avanços da psicologia nas últimas décadas estão entre os temas desta entrevista com Ricardo Wainer. Graduado e doutor em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), ele é mestre em psicologia social e da personalidade e especialista com treinamento avançado em terapia do esquema pelo New Jersey/New York Schema Institute (Estados Unidos).
Também é diretor da Wainer Psicologia Cognitiva, em Porto Alegre/RS, em que coordena e é professor do primeiro curso do Brasil com credenciamento e selo da International Society of Schema Therapy (ISST): a formação em terapia do esquema. Como autor, organizou o primeiro livro brasileiro sobre o tema, intitulado ‘Terapia cognitiva focada em esquemas: integração em psicoterapia’ (Artmed).
Tem experiência nas áreas de psicologia cognitiva e psicologia clínica, atuando principalmente nos seguintes temas: psicoterapia cognitivo-comportamental, transtornos da personalidade, transtornos de humor e de ansiedade, transtornos da infância e adolescência e em psicologia experimental cognitiva.
Nunca se falou tanto sobre saúde mental como nos últimos anos. Como esse termo era visto quando você começou na psicologia?
Em 26 de dezembro de 2022, fez 30 anos da minha formatura. No início da minha faculdade, não se falava em saúde mental. Falava-se em transtornos mentais e psicopatologia mais do que qualquer coisa. O foco era sempre na reversão dos quadros psicopatológicos e do trabalho de tentar se descobrir o que causava cada uma das diferentes patologias e suas questões.
Talvez nas últimas duas décadas, é que começou uma transição para se falar de saúde mental e a preocupação com o bem-estar, com a saúde, o equilíbrio das pessoas. Isso é muito positivo, porque, para além de a gente ajudar aqueles que sofrem, que têm algum transtorno mental ou dificuldades na saúde mental, é importante a melhora da sua qualidade de vida, do seu bem-estar. E isso tem avançado muito.
Também sentimos o baque de uma série de condições que foram impostas pela pandemia da covid-19 e que realmente virou o mundo de cabeça para baixo em pouquíssimo tempo, com repercussões que certamente vão se manter para a frente. Ou seja, o mundo mudou e não vai voltar à condição anterior.
Tudo isso mostra a importância de uma série de cuidados com a saúde física, mas muito com a saúde mental. Nunca em tão pouco tempo houve um impacto tão grande na saúde mental das pessoas e da sociedade como um todo como o que a pandemia causou, principalmente pela questão do isolamento social.
Como você avalia o ensino da psicologia no Brasil ao longo dos últimos 30 anos?
Sempre há uma necessidade, talvez atualmente mais ainda, de uma revisão tanto dos currículos quanto do todo em termos da estrutura básica de formação dos profissionais da saúde mental. Vemos em vários cursos uma busca incessante por essa atualização ao mesmo tempo que a formação de uma estrutura profissional sólida em que o profissional, ao sair da universidade, já tenha uma razoável condição de aplicar o seu conhecimento de uma maneira eficaz.
O que vejo em termos de evolução, em primeiro lugar, é uma maior amplitude dos campos do conhecimento. Lá trás, o campo da clínica era muito soberano e o da psicologia social e de outras áreas acabavam esquecidos ou periféricas. A outra questão bem marcante é a amplificação das linhas teóricas e das abordagens tanto na parte clínica quanto nas outras de aplicação. Nos últimos 15 a 20 anos, temos uma psicologia que tenta levar mais em consideração o ser humano como um todo.
Então avalio que os cursos avançaram, principalmente nas instituições mais sérias. Por outro lado, infelizmente, também temos instituições que, pela demanda de mercado e pelo grande aumento de interesse pelo estudo da psicologia e da saúde mental, acabaram indo por um caminho de fazer das universidades quase um grande negócio, o que acaba sendo um problema pela questão da qualidade e da responsabilidade inerente ao trabalho de saúde mental.
É possível afirmar que a terapia do esquema é hoje a ferramenta mais curinga para trabalhar em clínica?
Como todas as abordagens, a terapia do esquema tem suas limitações. Mas o que ela trouxe de lambuja, porque não era objetivo principal de Jeffrey Young (psicólogo norte-americano autor da TE), foi fechar muito bem um entendimento teórico do nascimento e do desenvolvimento da personalidade normal e patológica também. Analisando, nós vemos o indivíduo, sua história de vida, sua infância etc. e conseguimos entender como foi formado o ser que ele é hoje, onde estão suas dificuldades e seus pontos fortes. E da mesma maneira que se consegue fazer isso em relação ao paciente, a terapia do esquema me dá ferramental para fazer isso em relação a mim mesmo. É um componente muito importante para autorreflexão do terapeuta, para entender suas tendências, suas facilidades, suas dificuldades e para um crescimento pessoal. E o impacto que a utilização das técnicas vivenciais, experienciais e emocionais da TE tem sobre a mudança terapêutica é significativo.
Fale sobre a ativação comportamental na terapia do esquema.
É uma estratégia terapêutica muito utilizada principalmente para os quadros depressivos, nos quais há dois componentes centrais que não podem faltar. Um deles é a ativação comportamental, ou seja, a ampliação da atividade comportamental do indivíduo, posto que, na depressão, muito além da ideia de tristeza ou anedonia (falta de prazer nas coisas), há uma diminuição do funcionamento energético do indivíduo. É como se o paciente estivesse perdendo a carga da bateria. E a ativação comportamental, o incremento de atividades, de agenda comportamental, é importantíssima. O outro componente é a questão da reestruturação cognitiva, o cuidado com as distorções, é o paciente aprender a monitorar suas distorções cognitivas, seus erros de pensamento, o que faz com que ele consiga não entrar em armadilhas típicas de quadros depressivos. E na terapia do esquema, uma terapia cognitivo-comportamental avançada, se inclui a ativação comportamental junto com outras técnicas.
Como você avalia a integração das abordagens cognitivo-comportamentais?
Desde muito cedo na faculdade, eu já estava em grupos de pesquisas e acredito que isso tenha sido um divisor de águas na minha formação, porque sempre me preocupei com a solidez teórica e a solidez das evidências. E as duas coisas que eu sempre via eram: primeiro, a coerência teórica, epistemológica, filosófica do conhecimento; e a outra, o arsenal técnico. Às vezes, as pessoas pensam que, porque são usadas várias técnicas, se está fazendo uma colcha de retalhos. Não é verdade. De modo geral, as técnicas são desprovidas de vinculação obrigatória com alguma teoria (com algumas exceções). Portanto, quanto mais ferramentas você conhece e for treinado na sua dinâmica, consegue fazer um entendimento do que realmente está acontecendo com o paciente e vai ter uma maior efetividade na intervenção.
A integração hoje é um movimento importantíssimo, mas, antes de mais nada, é preciso ter uma boa conceitualização, um bom entendimento, do funcionamento psíquico (considerando mental, biológico, social, rede de apoio) e aí, sim, ter um plano estratégico de tratamento e escolher as ferramentas adequadas. Felizmente, temos hoje muitas ferramentas ricas. Por outro lado, aprender todas essas técnicas e utilizá-las com efetividade requerem muito trabalho.
Você acredita que a inteligência artificial vai abocanhar algo da psicologia?
Inteligência artificial é uma área de que gosto muito. Fiz minha dissertação de mestrado, em 1997, abordando IA numa perspectiva ingênua de acreditar que poderia chegar nos algoritmos de como a mente funciona. Hoje há campos em que certamente a IA avançou e ajuda muito, como, por exemplo, sistemas especialistas na medicina e na psicologia, para os quais alguns sintomas são fornecidos e eles abrem as possibilidades de diagnóstico e questões a serem investigadas. A telemedicina usa isso há muito tempo. E inclusive existem sistemas que simulam terapeutas. Nos anos 1990, já existia um sistema especialista que simulava um terapeuta rogeriano e que ajudava em bons aspectos.
Só que acredito que a profissão de psicoterapeuta, por exemplo, jamais vai ser substituída por uma máquina, porque existe algo que se chama relação terapêutica, relação humana, e isso máquina nenhuma consegue simular. E por quê? Porque toda máquina não consegue representar conhecimento. É necessário o profissional chamado analista de conhecimento para transformar o que falamos em uma linguagem para a máquina entender. Isso a máquina não consegue fazer e provavelmente nunca vai conseguir. E isso é o que impede uma máquina de conseguir ter níveis de empatia, compaixão e algumas expressões emocionais que são fundamentais no contato.
Então eu diria que, nas profissões que funcionam algoritmicamente e que englobam decisões fechadas, com certeza, a IA vai avançar muito. E esses sistemas todos vão ajudar muito para sermos mais eficazes e cometermos menos erros. No entanto, relacionamento terapêutico é fundamental para a mudança terapêutica. Acredito, portanto, que as áreas de cuidado, como medicina, psicologia, serviço social, enfermagem, não serão substituídas por nenhuma máquina. Ou precisarão de seres humanos para fazerem as máquinas funcionarem melhor.
Que mensagem você deixa para quem está estudando psicologia?
Durante 27 anos, lecionei psicologia em universidade. Todo esse tempo, eu sempre me perguntava o que poderia fazer para que os alunos pudessem potencializar ao máximo o conhecimento deles. Em primeiro lugar, sempre estar muito aberto à dúvida. Não aceitar as verdades tácitas muito rapidamente e não se agarrar à nenhuma verdade absoluta. O que é muito difícil, porque gostamos de certeza. A incerteza é desagradável para nós, pois gera ansiedade. Queremos ter certeza e verdades. Mas o conhecimento científico nos leva exatamente para o caminho oposto.
Sendo assim, é preciso estar aberto à dúvida, aceitar desafios intelectuais, aprender a pensar logicamente, a fazer perguntas, a se questionar. Porque opinião todo mundo tem, mas, às vezes, ela vai contra os fatos, vai contra situações concretas, objetivas e evidentes. Então é preciso ter esse raciocínio científico, estar aberto à dúvida e ter uma curiosidade, além de um desejo legítimo de poder ajudar o outro, conhecer mais as coisas. Na base de tudo isso, está a humildade para aceitar que sabemos pouco e o conhecimento é algo que não tem fim.