A vida tem retomado alguns caminhos e ganhou novos rumos e jeitos de se viver e existir após mais de dois anos de pandemia da covid-19, período em que o mundo ficou tão diferente e muitas vezes assustador. Mas assim como na fase de enfrentamento da doença, a retomada nesse pós-pandemia tem sido um tanto quanto difícil para todas as pessoas, independentemente de idade ou classe econômica. E a saúde mental é a principal preocupação do momento.

Nesta entrevista, o psicólogo Nemar Gil Limeira Neto, do Serviço Social da Indústria (SESI) e do Núcleo de Atendimento Psicológico (NAP) de Novo Hamburgo/RS, aprofunda o assunto.

Bacharel em psicologia pela Universidade Feevale e em administração hospitalar pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP-PR), ele tem licenciatura em formação especial docente pelo Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI), é especialista em educação ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e em global business administrator (GBA) pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atualmente, está se especializando em psicologia clínica e psicanálise pela Faculdade Metropolitana de São Paulo (Famesp) e em psicologia do trabalho pela Faculdade Faveni.

Por que escolheu a área da saúde mental como profissão?

Comecei minha atuação profissional como administrador hospitalar, trabalhando principalmente com medicina ocupacional em um plano de saúde, e adentrei, com o tempo, na formação de técnicos em administração, lecionando disciplinas de recursos humanos. Nesse contexto, fui percebendo que muitos profissionais chegavam à vida adulta com sérios problemas de relacionamentos e de autoconhecimento pessoal e carregavam em suas bagagens profissionais essas questões. Hoje sou psicólogo no Serviço Social da Indústria (SESI) e psicólogo clínico no Núcleo de Atendimento Psicológico (NAP). Atendo um público de jovens e adultos e, em casos específicos, crianças. A psicanálise é a abordagem teórica que mais me encanta e a qual sigo nos meus atendimentos, mas obviamente que, como psicólogo, me alimento de estratégias e ferramentas que as demais abordagens oferecem e que acabam sendo muito úteis.

Após mais de dois anos de pandemia, como está a saúde mental de crianças, adolescentes, adultos e idosos no pós-pandemia?

A vida tem retomado alguns caminhos e ganhou novos rumos e jeitos de se viver e existir. Mas assim como na fase de enfrentamento da doença, a retomada nesse pós-pandemia tem sido um tanto quanto difícil para todas as pessoas, independentemente de idade ou de classe econômica. A proximidade com a morte escancarou nossas fragilidades, nossos medos, nossas faltas de preparo para encarar algumas dificuldades que já eram latentes na vida social cotidiana (violência, fome, desigualdade, preconceitos…). A criança tem na educação um caminho de aprendizagem que vai muito além do conteúdo programático de disciplinas. O processo de aprendizagem se dá no apreender e no aprender a conviver. O adolescente tem na escola, muitas vezes, sua iniciação à vida sexual. E aqui digo com naturalidade a iniciação da lógica do amor, dos namoros, do desejo, não de fato a sexualização. É nessa etapa e nesse cenário que, muitas vezes, aprendemos a romantizar, a se frustrar com o outro e principalmente a entender a vida numa lógica para além da existência individual. O adulto sofreu pela perda do convívio humano com o trabalho. Logo essa esfera que dignifica o ser humano, que dá sentido à vida social moderna, em que muitas pessoas adquirem o sobrenome da empresa para se nominarem. Os idosos tiveram sua liberdade restrita e inicialmente foram de fato os mais atingidos pelo vírus, tendo o contágio quase como uma sentença de morte. Em todas as idades, falamos em uma castração à socialização, um processo que qualifica nossa capacidade humana.

Por que os transtornos de ansiedade têm se mostrado tão presentes em pessoas de todas as idades nesse momento de retomada, seja de escola, seja de trabalho presencial ou outras atividades que foram interrompidas durante a pandemia?

Agora estamos num estágio menos “sobrevivência”. Nosso foco estava muito concentrado em lidar com a vida e como não se contaminar. Ao sairmos desse estágio, dizemos que é como uma pancada na perna (um trauma físico) em uma partida de futebol: tão logo esfria, as dores começam a surgir. Nossas emoções são atos reflexos do que pensamos, e agora estamos podendo dizer em palavras e sentimentos o quanto ficamos apavorados, com medo, perdidos e tudo isso em escala e intensidade. O resultado é uma retomada com aumentos nos diagnósticos de TAG (transtorno de ansiedade generalizada) e outros, como transtorno de pânico, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).

Como a atual situação da saúde mental em decorrência da pandemia tem afetado a capacidade laboral das pessoas nesse momento de retomada?

Já tínhamos números consideráveis de afastamentos por ansiedade e depressão, mas os atuais dados publicados pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, para o ano de 2020, somam 576 mil afastamentos, 26% a mais que o ano anterior, somente por causas relacionadas à saúde mental. E os motivos apresentados são alguns já conhecidos, como a inadaptação ao home office, o acúmulo e a dificuldade em lidar com as tarefas domésticas e profissionais, as incertezas de futuro, o endividamento e os sintomas psicopatológicos de ansiedade, depressão, transtorno de pânico, entre outros, que já afetavam, mas estavam controlados. Somos o país mais ansioso da América Latina e com a maior taxa de afastamento laboral relacionado à saúde mental. A nossa preocupação está exatamente no agravamento de quadros de ansiedade e depressão, pois uma séria consequência é o suicídio. Já tínhamos números muito ruins aqui no Rio Grande do Sul, e, nesses primeiros meses do ano, nosso estado tem um cenário ainda pior. A Secretaria Estadual da Saúde divulgou que, em 2021, havíamos tido a perda de 79 pessoas. Neste ano, somente até abril, já tivemos 1.399 vidas perdidas por esse agravo de saúde mental. Porto Alegre é a capital do país com o percentual de depressão mais significativo, 17,5% segundo o Ministério da Saúde em artigo publicado também no mês de abril. Esse reflexo das sequelas sociais e econômicas da pandemia, já que ainda não temos estudos finalizados que associam o contágio pelo vírus com surtos ou transtornos de ansiedade e depressão, nos traz à reflexão do quanto precisamos cuidar ainda mais das nossas mentes. E o adoecimento mental é silencioso; você se enxerga fisicamente bem, mas sem vontade, apático e pode associar esse processo de forma equivocada, julgando-se incapaz, improdutivo ou com um sentimento aumentado de culpa por sobrecarregar os colegas de trabalho.

E de que forma a pandemia afetou as relações interpessoais nas diferentes faixas etárias e quais as consequências?

Muitas famílias permaneceram distantes por muito tempo. Crianças nasceram ou tiveram sua primeira infância dentro de lares em convívio somente com adultos, adolescentes não tiveram a experiência da ida a shows e festas, adultos se viram trabalhando em casa e sem a presença dos colegas. As relações de confiança e o sentimento de esperança e coletividade ficaram prejudicados. Ainda vamos levar um tempo para descobrir o tamanho do impacto social e na saúde da população mundial. Tivemos prejuízos significativos, desde a alfabetização das nossas crianças, comprometida, até a complexidade da construção social das ideias e dos ideais de mundo e vida social.

E agora, no pós-pandemia, está sendo difícil quebrar o distanciamento antes exigido pelas regras sanitárias? Por que e como mudar isso, fazendo com que as relações interpessoais voltem a ser saudáveis?

A retirada da máscara tem sido o marco simbólico dessa transição. É comum os relatos de adultos que ainda não se sentem confortáveis em andar sem máscara ou que ainda não querem se abraçar. Esses comportamentos precisam ser respeitados. É um gesto de respeito e cuidado consigo e com o outro. Alguns adultos têm apresentado dificuldades em retornar ao trabalho presencial. Crianças e jovens em idade escolar também têm apresentado alguma queixa de dor ou desconforto físico, com origem nas manifestações das emoções. Acredito que se permitir retornar a shows, estádios, restaurantes, locais fechados com a presença de mais pessoas, será um processo de confiança e experiência, que lentamente iremos aceitar com naturalidade novamente. Viver e se permitir retornar é um processo que precisa ser respeitado, mas, mais do que nunca, trabalhado, seja pela escola, pela família, seja pelas empresas, na preocupação com a saúde do trabalhador, e por políticas públicas que acolham e trabalhem a prevenção, na atenção primária e na promoção da saúde de fato da população.

O que é preciso ser feito para que a saúde mental das pessoas se equilibre novamente?

Precisamos compreender que o cuidado com a mente é tão importante quanto o cuidado com o corpo. Somos uma sociedade muito preocupada com a estética e, por vezes, não priorizamos o cuidado com a saúde mental. Fazemos tatuagens, procedimentos estéticos faciais, colocação de próteses e a prática de exercícios físicos em academias, mas ainda achamos caro e julgamos desnecessário investir em psicoterapia. Desrotular a saúde mental é um caminho para que as pessoas percam o medo de lidarem com seus problemas e passem a compreender que quem cuida da mente não é louco ou problemático, mas alguém consciente de si e das suas reais necessidades. Precisamos ter um olhar mais humano para com as nossas crianças e nossos idosos, que são naturalmente mais frágeis e saíram mais vulneráveis dessa pandemia. É preciso trazê-los de volta às ruas, praças e reintroduzi-los nos ciclos sociais.

E qual o papel dos pais, educadores e psicólogos nesse processo de reequilíbrio?

Fundamental. Cabe aos pais conduzirem os filhos nessa retomada da vida social, desmitificando o medo do vírus; podendo desfazer algumas regras sanitárias, que nos salvaram, mas com as quais já não precisamos mais ser tão rígidos; compreendendo que a higienização das mãos e a etiqueta respiratória sempre foram fundamentais e que a máscara será necessária, sim, mas agora somente quando estivermos com sintomas gripais; e que não corremos mais os mesmos riscos, que já podemos voltar a atividades coletivas, jogar futebol e que as crianças podem brincar em coletividade nos recreios. Aos educadores, cabe voltarem a realizar atividades em grupo, trabalhar nos diversos âmbitos de conteúdos, temas como a vida e a vida em grupo; demonstrar que sobrevivemos por ter agido em coletividade e de forma organizada. A nós, psicólogos, poder sair dos consultórios e trabalhar na propagação da saúde mental em outras esferas, como em oportunidades de falar em espaços de mídia, interagindo em meios como este, escrevendo sobre saúde mental. E também estar mais ativos em grupos terapêuticos e gerar conteúdos para as redes sociais, pois só assim conseguiremos atingir públicos variados e em quantidades muito maiores do que só a individualidade do consultório, após a demanda já estar instaurada.