ESTUDO DE CASO

Tereza, 74 anos, casada, aposentada, mãe de 6 filhos. Fazia todo o trabalho doméstico, era autônoma e independente, mas no início de 2021, sofreu queda da própria altura sem ter tropeçado ou tido qualquer sintoma anterior à queda. A filha mais nova, que a estava visitando chamou o SAMU, que a levou para o hospital. Já no início do atendimento, observou-se uma fratura de fêmur distal, algo pouco comum em idosos. Tereza foi diagnosticada com fratura patológica de fêmur por conta de lesão metastática decorrente um câncer primário de pulmão. Não foi possível realizar cirurgia para colocada de prótese femural por conta do estado avançado da metástase óssea. Foi realizado então reparo apenas para fixar a fratura, mas Tereza não movia mais a perna.

Ainda no hospital, enquanto mobilizavam Tereza na maca, seu ombro direito foi fraturado por conta de outra metástase óssea.  Então, a paciente parou de mover o braço direito, que foi imediatamente imobilizado. Não foram indicadas quimioterapia ou radioterapia devido ao estadio avançado da doença e à idade da paciente.

Tempos depois, já em casa, a filha mais nova se lembrou dos cuidados que a mãe havia recebido no hospital e decidiu procurar o médico que a assistiu na ocasião.  O médico que fazia um trabalho de cuidados paliativos dentro da residência de geriatria foi o profissional que acolheu Tereza e convocou o restante da equipe, psicóloga e fisioterapeuta, para dar início ao tratamento em cuidados paliativos para a amorosa e acolhedora paciente.  Tereza chegou para ser atendida pela nossa equipe de cuidados paliativos com uma expectativa de vida de 6 meses.

Sensação de menos valia

Inicialmente, a paciente não se mostrava muito aberta ao contato na psicoterapia, sentia-se triste pelo fato de estar acamada e totalmente dependente dos filhos; sempre mencionava que estava dando trabalho para os mesmos, que se revezavam em seus cuidados diários. Os filhos nunca demonstraram insatisfação por cuidar da mãe, muito pelo contrário, faziam-no com amor, dedicação e sempre com o propósito de lhe oferecer o maior conforto.

Com o tratamento realizado pela fisioterapeuta, Tereza começou a passar o tempo sentada, a se locomover de cadeira de rodas, o braço direito foi reabilitado e a paciente começou a fazer as refeições sozinha novamente.

Após 4 sessões de psicoterapia, Tereza ainda se sentia mal por ter que pedir tudo aos filhos, a sensação de inutilidade e a falta de aceitação de sua situação de dependência permeavam sempre seus pensamentos e sentimentos. Até o momento, estava tomando banho de leito, mas o dia em que passou a ficar na cadeira de rodas e a tomar banho na cadeira de banho, foi um marco para Tereza, que pôde depois de algum tempo, sentir a água caindo em sua cabeça. Tereza sentiu então um pouco de liberdade novamente.

A paciente sempre soube que até o final de seus dias teria uma vida com limitações físicas, mas o fato de poder se sentar, fazer as refeições sozinha e tomar banho de chuveiro, ainda que na cadeira de banho, trouxeram-na muita alegria e mais aceitação.

Durante muitos meses, Tereza demonstrou uma força impressionante para suportar o peso de tudo, porém não conseguia esconder sua intenção altruísta de se manter como porto seguro, alicerce emocional da família, não demonstrando assim suas fragilidades como medo, aflição ou tristeza para os filhos. Desta maneira, procurava motivá-los, uma vez que sua maior preocupação era a de não dar trabalho.

Luto de um corpo antigo

Foi trabalhado em psicoterapia o luto de um corpo antigo e independente, bem como a adaptação de um novo corpo limitado e dependente e a adaptação à nova realidade, que perduraria enquanto ela vivesse. O lema de Tereza passou a ser viver um dia de cada vez. Ela tinha esperanças de voltar a fazer artesanato, utilizar as mãos, mas os movimentos do braço direito ainda eram limitados. Quando a mão direita estava quase reabilitada, Tereza fraturou novamente o ombro e precisou ser imobilizada. O ocorrido trouxe muita frustração, além de medo de novas fraturas.

Com relação ao tratamento, a paciente sempre deixou claro que não gostaria de ir a ambulatórios e hospitais, preferia ser tratada em casa. Chegou a ficar na UTI quando fez a cirurgia do fêmur e dizia ser um lugar “barulhento e horrível” (SIC).

Tereza pensava, vez em quando, no fim de sua vida e dizia não saber se estava preparada. Para ela, estar preparada significava estar de bem com Deus e com a vida e ficava muito claro que Tereza não estava de bem com Deus e com a vida, visto que não havia ainda aceitado plenamente a sua situação e compreendido o porquê de estar passando por aquilo, algo que jamais imaginou que fosse acontecer com ela.

Declínio cognitivo

A paciente vinha tentando aceitar a sua situação, ser paciente e resiliente e após 8 meses de tratamento psicoterápico, começou a se apresentar um pouco confusa nas sessões e com dificuldade de concluir ideias. Começou a se apresentar muito sonolenta e passava a maior parte da sessão de olhos fechados. Como não desejava ser levada para laboratórios e hospitais, e como resultados de exames não modificariam a conduta, não foram realizados exames de imagem. Foram realizados exames laboratoriais em domicílio para descartar um processo infeccioso, que realmente foi descartado. Por conta do declínio cognitivo, as sessões de psicoterapia foram interrompidas e a psicóloga foi acompanhando a evolução do caso através da filha mais nova.

Nove meses após o diagnóstico, a equipe realizou conferência familiar na qual foi abordado o tema da finitude em decorrência da piora no quadro clínico de Tereza. Apesar de entristecidos, os familiares estavam bastante cientes de que o fim estava próximo e tinham a certeza de que a paciente estava obtendo os melhores cuidados possíveis e que a equipe estaria junto dela e dos seus até o fim.

Após algum tempo, o cognitivo de Tereza melhorou e foi realizada nova sessão de psicoterapia. Acredita-se que o declínio cognitivo temporário ocorreu por conta de baixa saturação de oxigênio, que não havia se manifestado através de outros sintomas.

Nesta última sessão, a paciente afirmou que estava em seus últimos dias. Percebeu isto por conta de certa debilidade física, da inapetência e da dependência de oxigênio. Ainda tinha medo do desconhecido, visto que não sabia o que aconteceria do outro lado, apesar de ser católica praticante e de acreditar que Deus estava guardando um bom lugar para ela. A partir de então, além das medicações para o conforto físico, Tereza passou a fazer uso de medicamentos psiquiátricos, que aliviavam o seu medo do desconhecido, que se manifestava como crises de ansiedade e dispneia ao cair da noite. Passou a dormir bem, a respirar melhor e continuou sua jornada um dia de cada vez.

Cuidados de Fim de Vida

Certo dia, ao tomar banho, Tereza apresentou muita falta de ar. As filhas checaram os sinais vitais e observaram que a oxigenação era insuficiente. Após análise médica, constatou-se que a sintomatologia apresentada era decorrente da evolução da doença de base. Tereza se tornou uma pessoa um pouco menos sorridente e passou a demonstrar mais medo e tristeza. Após aproximadamente 2 semanas, iniciou processo de morte com estado confusional agudo importante, redução da capacidade de comer, sonolência e piora do padrão ventilatório.

Em meio a períodos de confusão e lucidez, a família pôde vivenciar a missão nobre dos Cuidados Paliativos, que é oferecer dignidade até o último dia de vida. Tereza teve a oportunidade de trabalhar as relações interpessoais dentro da família. Senhor Jorge, seu esposo que com o qual conviveu durante 5 décadas, era um ser humano autoritário, que via Tereza como um ser humano inferior, pediu perdão e reafirmou o seu amor. As filhas, muitas vezes em conflito entre si, puderam se desculpar motivadas pelos limites apresentados pela finitude.

Alguns dias depois, Tereza entrou em anúria e médico da equipe realizou visita domiciliar. O médico lhe prestou conforto físico e fez uma chamada de vídeo para a psicóloga ao lado da paciente. Na ocasião, esta disse: “Estou indo embora, obrigada por tudo! Estou em paz, estou bem perto dos braços de Deus.”

Depois disto, Tereza pediu para se despedir de algumas amigas. Em seguida, conversou com todos os filhos, netos e esposo. Então, ficou em paz e caiu num sono profundo, que perdurou mais alguns dias até que entrou em dispneia. O médico foi chamado novamente, prestou-lhe o socorro necessário, oferecendo conforto e depois de algum tempo, no mesmo dia, Tereza deu o seu último suspiro.

E MAIS…

Conceito de Dor Total

Em cuidados paliativos, fala-se no conceito de Dor Total, criado por Cicely Saunders. De acordo com a autora, a Dor Total abrange as dores físicas, social, psicológica e espiritual.

Considera-se como dor física, qualquer sintoma físico: dor propriamente dita, náusea, dispneia etc. A dor social está ligada ao impacto social desencadeado pela doença: isolamento, limitação para sair de casa e encontrar amigos e familiares, limitação das atividades sociais. A dor psicológica está relacionada à ansiedade, angústia, medo, falta de aceitação, sentimentos de inadequação etc. Já a dor espiritual tem relação com questionamentos acerca de porquês sem resposta. Por exemplo: Por que comigo? Por que estou passando por isto?

Tereza foi assistida de maneira integral, viveu 10 meses apesar de uma expectativa de 6.  Todas as suas dores foram contempladas no tratamento multidisciplinar. Suas dores físicas foram aliviadas pelo médico e pela fisioterapeuta, a dor social era aliviada com as visitas que recebia dos amigos e com a constante presença da família. A dor psíquica era constantemente trabalhada em psicoterapia, e a dor espiritual era aliviada com as visitas que recebia do Ministro da Eucaristia e com as missas online que Tereza assistia.

Tereza teve um fim de vida digno, foi cuidada da maneira que desejou no conforto de sua casa até o último dia de sua vida. Chegou a escolher a vestimenta de seu funeral, que foi confeccionada por uma de suas melhores amigas, despediu-se de todos os seus e deixou as mensagens que julgava importante para cada um.  Será que um dia a maioria das pessoas terá acesso a um fim de vida tão digno quanto Tereza?