As primeiras menções à terapia afirmativa remontam ao final da década de 1970 começo da década de 1980, num período em que homossexualidade ainda era alvo de patologização. Atualmente um campo que precisa e ainda tem muito a ser expandido pelos profissionais da psicologia, pode ser definida como um conjunto de instrumentalizações técnicas norteadas por um princípio ético de respeito à diversidade sexual e de gênero.
Nesta entrevista, o tema é aprofundado pelo psicólogo Ramiro Figueiredo Catelan.
Graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), ele é doutor em psicologia (PUCRS), mestre em psicologia social e institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC) pelo Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (CEFI).
Ramiro é pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROPSAM/IPUB/UFRJ), onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Devaneio Excessivo e Desregulação Emocional (NUPDE). Também é pesquisador associado ao Laboratório de Pânico e Respiração (LABPR) e ao Ambulatório de Depressão Resistente (DeReTrat) e tem treinamento intensivo em terapia comportamental dialética (DBT) pelo Behavioral Tech (EUA).
Sócio da Sínteses – Psicologia, Psiquiatria e Ensino –, atua como psicoterapeuta, supervisor clínico, docente e coordenador da formação em DBT e da formação em terapia afirmativa para minorias sexuais e de gênero. Tem experiência de atendimento clínico com ênfase em pessoas com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), transtorno da personalidade borderline (TPB) e outros quadros de desregulação emocional severa.
Entre as publicações de sua autoria, está a ferramenta ‘Diversidade sexual e de gênero: 100 cards informativos sobre gênero e sexualidade’, da editora RIC Jogos. Os cartões explicam, de forma simplificada e embasada cientificamente, conceitos como sexo, identidade de gênero e orientação sexual, auxiliando na compreensão dessas temáticas. Embora tenha sido inicialmente pensado para servir de apoio aos profissionais da saúde mental como recurso informativo e de psicoeducação, também pode ser utilizado fora da terapia, inclusive nos contextos familiar e escolar.
O que é a terapia afirmativa para minorias sexuais e de gênero? Ela pode partir de diferentes abordagens teóricas?
Sim. Muitas pessoas acabam tendo essa dúvida, acreditando que terapia afirmativa é uma abordagem de psicoterapia em si. E, na verdade, é mais um conjunto de instrumentalizações técnicas norteadas por um princípio ético de respeito à diversidade sexual e de gênero do que uma abordagem em si. Ou, como costumo dizer, é uma abordagem que acaba sendo transteórica no sentido de que perpassa diferentes abordagens de psicoterapia. Existe psicanálise afirmativa, TCC afirmativa, DBT afirmativa. É uma ideia semelhante à da TCC baseada em processos, no sentido de se poder elencar quais são os principais processos responsáveis pela mudança comportamental, cognitiva e emocional e aprender diferentes conjuntos de estratégias para promover as mudanças necessárias para cada paciente. Não é uma abordagem específica, é uma maneira que a gente utiliza para, a partir de um determinado olhar, desenvolver mais sensibilidade e treinar competências multiculturais específicas para trabalhar com essa população de minorias sexuais e de gênero.
Com surgiu a terapia afirmativa?
As primeiras menções à terapia afirmativa remontam ao final da década de 1970 começo da década de 1980, num período em que as identidades gays e homossexuais ainda eram alvo de patologização. A homossexualidade só deixou de ser considerada um transtorno mental no começa da década de 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Considerando diversas pesquisas que foram feitas ao longo das últimas décadas, buscando corrigir, reparar, converter e outros termos correlatos à orientação sexual das pessoas, começou a se formar uma ideia contrária especialmente dentro do contexto norte-americano: em vez de a gente patologizar a orientação sexual das pessoas, se deveria promover orgulho e aceitação de algo que não é inerentemente patológico. Hoje há uma pletora de evidências que demonstram que orientações sexuais não heterossexuais são absolutamente normais e parte da diversidade humana. Assim como identidades de gênero transgênero.
E quando a terapia afirmativa ganhou força?
Embora as primeiras menções à terapia afirmativa tenham surgido entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, o termo só ganhou força na comunidade científica a partir da década de 2010. E agora está sendo cada vez mais explorado, inclusive com estudos empíricos, ensaios clínicos randomizados usando esse frame, esse quadro afirmativo, que, na verdade, diz respeito a um olhar sensível de psicoterapeutas para questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero. Considerando que as pessoas que pertencem às comunidades LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) são alvo de significativo preconceito, discriminação e violência no Brasil e no mundo, a terapia afirmativa busca que terapeutas não reforcem, não promovam essa mesma violência. A ideia é que a gente consiga treinar o nosso olhar e as nossas intervenções para criar sensibilidade sobre as necessidades e especificidades únicas desses grupos. Eu tenho defendido o uso do termo minorias sexuais e de gênero, porque o considero mais abrangente do que LGBT, porque toda hora estão colocando uma letrinha a mais na sigla (LGBTQIAPN+). Penso que sempre vai haver alguém que vai acabar estando de fora dessa abreviatura, por isso, prefiro falar em diversidade sexual e de gênero e minoria sexual e de gênero. Não necessariamente em minoras no sentido quantitativo, embora o número de pessoas não heterossexuais seja bem menor do que o número de pessoas homossexuais, mas minorias no sentido político e social, porque são pessoas que são minorizadas, que fazem parte de grupos sociais que são discriminados, são alvo de preconceito, de violência sexual, física e letal.
Fale mais sobre o papel da psicologia nesse contexto.
A psicologia tem tudo a ver com isso, porque, infelizmente, ao longo de sua história, foi uma ciência que se prestou para rotular, inventar coisas e colocar pessoas em caixinhas e em categorias que as patologizavam, restringiam e ridicularizavam tanto em termos de orientação sexual quanto de identidade de gênero. E o compromisso desse movimento de terapia afirmativa é em sentido contrário, ou seja, afirmar que você ter uma dada orientação sexual e/ou identidade de gênero não só não é patológico como é algo normal e digno de orgulho, digno de afirmação. Daí vem o nome terapia afirmativa, porque é uma terapia que busca ajudar a pessoa a desenvolver uma relação mais tranquila com a sua experiência de gênero e de sexualidade. E pressupõe terapeutas que não são necessariamente ativistas políticos nesses termos mais senso comum que a gente utiliza, mas que advogam em favor das pessoas que atendem, refutando qualquer tipo de terapia corretiva ou de conversão de orientação sexual e identidade de gênero. No Brasil, o sistema conselhos de psicologia proíbe desde 1999 que terapeutas psi promovam atitudes corretivas contra a população de lésbicas, gays e bissexuais. E mais especificamente em 2018 foi publicada resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) proibindo que profissionais psi promovam “cura trans”, a “cura” de pessoas transgênero.
O que caracteriza o estresse de minorias e como pode comprometer a saúde mental?
O estresse de minorias é a sobreposição, a soma, de estressores distais com estressores proximais e que produz determinados desfechos negativos. Os estressores distais englobam a discriminação que vem do ambiente, de fora: xingamentos, agressões, violências as mais diversas, restrições a diretos básicos. Eles contribuem para a formação de estressores proximais, que são estressores internos, como preconceito internalizado, ocultação ou revelação do próprio status sexual ou de gênero, o preconceito antecipado e a sensibilidade à rejeição. Existem alguns estressores proximais mais específicos relacionados a pessoas transgênero, com disforia de gênero, preocupações com conformidade visual, para não serem identificadas como transgênero. A soma do que vem de fora com o que é produzido dentro em termos de estressores acaba contribuindo para que as pessoas adoeçam mais. Pesquisas mostram que 43% das pessoas trans já tiveram algum tipo de comportamento autolesivo em algum momento da vida. E os indicadores de ação suicida e transtorno da depressão maior, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de ansiedade social e o próprio transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) são mais elevados nas comunidades de minorais sexuais e de gênero do que na população em geral. Inclusive há um problema bem grande relacionado ao uso excessivo de substâncias nessas comunidades. Isso tem tudo a ver com o estresse de minorias, porque pessoas que passam por situações mais frequentes de restrições, invalidação, pressão, discriminação, violência, todos atos que podem contribuir para uma qualidade de vida menor, elas precisam encontrar uma maneira de lidar com isso. Não é uma coisa generalizada, mas, em algumas situações, as pessoas podem acabar fazendo mais uso de substâncias como maconha, álcool e tabaco. Se você for destrinchar cada letrinha do LGBT, vai ter um tipo de estressor específico que acomete minorias específicas.
Como a terapia afirmativa funciona na prática? Ela possui técnicas próprias?
Como a terapia afirmativa não é uma abordagem específica, mas uma postura, um método transteórico, a utilização das técnicas vai depender muito da abordagem teórica de base que cada terapeuta vai ter, o seu background ou os seus treinamentos. Por exemplo, no curso de formação em terapia afirmativa para minorias sexuais e de gênero da Sínteses, que é o primeiro no Brasil nesse formato, em vez de focar em só ensinar o modelo clássico da TCC de Beck, a gente optou por dar um subtítulo para a formação que é ‘modelos cognitivos e contextuais’. O que a terapia afirmativa vai fazer é adaptar e adequar a maior parte das técnicas provenientes de outros tratamentos baseados em evidências para fazer com que essas estratégias se adequem de uma forma mais específica a necessidades únicas de minorias sexuais e de gênero. E aí a gente poderia listar um sem-número de recursos, mas a maior parte deles acaba sendo realmente adaptada de estratégias convencionais. Por isso que a terapia afirmativa em si não deveria ser uma grande novidade na verdade, mas sim uma maneira de sistematizar algum conhecimento sobre diversidade sexual e de gênero para que o paciente não chegue na frente do terapeuta e diga que é uma pessoa trans e o terapeuta tenha que perguntar o que é uma pessoa trans. A ideia é que você já saiba de antemão. Enquanto terapeuta, é importante que a gente consuma conhecimento científico de qualidade para saber previamente as necessidades, as especificidades, as particularidades de cada grupo social minorizado – para perguntar as minúcias na entrevista clínica e no setting terapêutico individual.
A terapia afirmativa também pode conscientizar os familiares de uma pessoa LGBT?
Pode e deve. De maneira geral, a sociedade tem muita desinformação sobre diversidade sexual e de gênero, porque informações estão aí a rodo, inclusive informações que se pretendem científicas, mas que acabam colocando imprecisões e até conceitos estereotipados sobre determinados grupos sociais. Assim como existe essa desinformação mais ampla na sociedade, não vai ser diferente nas famílias e no setting clínico, porque a gente não está isolado da sociedade. A sociedade e a cultura estão o tempo inteiro nos influenciando e a gente influenciando a sociedade e a cultura, é uma interação recíproca. Então parte de um possível trabalho que terapeutas que atuam nesse enquadre mais afirmativo podem fazer é justamente promover orientação e conscientização. Inclusive os cards informativos ‘Diversidade sexual e de gênero’ têm um potencial de limpar um pouco da desinformação e tentar promover acesso à informaçãode maisqualidade à medida que tiram dúvidas sobre conceitos básicos. Sempre digo que, em termos do aprendizado da terapia afirmativa, dominar conceitos básicos de gênero e sexualidade é quase 50% do trabalho, porque isso, por si só, já vai impedir que você cometa gafes, ofensas, que você prejudique a vida das outras pessoas e que seu paciente precise ficar explicando para você, por exemplo, a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Uma parte relevante do trabalho da terapia afirmativa, quando se está lidando com famílias, vai ser, num primeiro momento, promover essa conscientização sobre diferenciação do que é orientação sexual e identidade de gênero e desmistificar alguns erros que se propagam a respeito de orientação sexual e identidade de gênero, por exemplo, como se fosse uma escolha da pessoa. As pessoas têm escolha de esconder ou de revelar. Isso é uma escolha e vai ser ditada muito pelas condições que o meio oferece. Às vezes, você revelar a sua orientação sexual (sou gay) ou revelar sua identidade de gênero (sou trans) pode colocar a sua vida em risco dependendo do contexto no qual você está inserido. Uma pessoa que trabalha com terapia afirmativa também tem que se ligar nesse importante detalhe: onde é que essa pessoa está inserida.
Como orientar pais quando um filho adolescente fala que tem dúvidas quanto à sua sexualidade?
Tem dois campos de trabalho aí. O primeiro é entender com a própria pessoa adolescente o que são essas dúvidas e dar um espaço acolhedor, sensível e afetivo para ajudá-la a entender o que é essa dúvida de orientação sexual e identidade de gênero. Especificamente sobre a orientação aos pais, considero essencial avaliar quais são as crenças da família a respeito de gênero e sexualidade para que a gente possa promover, junto com essa família, uma conscientização maior e acesso à informação científica de qualidade para que comece a se sedimentar o caminho da aceitação no caso de o filho se identificar como gay por exemplo. Também é importante a orientação dos pais no sentido de que é muito normal que adolescentes explorem a sua sexualidade de uma maneira mais ampla e que não necessariamente porque a pessoa está indicando uma determinada dúvida essa dúvida vai persistir. Mas no caso de persistir, isso não é motivo de problema necessariamente. Porque, na verdade, o problema já está muito lá fora. A família precisa acolher a pessoa e preparar o terreno para fazer uma defesa da vida dessa criança ou desse adolescente à medida que for passando (infelizmente) por situações de discriminação, de violência e de exposição ao preconceito. Então a família precisa poder criar o amparo que a pessoa vai precisar lá fora.
Como tornar o ambiente da terapia seguro para serem abordadas questões relacionadas à sexualidade?
Tem uma resposta bem simples para isso: deixando as coisas explícitas. Uma coisa que eu faço com todas as pessoas antes de virem para atendimento é encaminhar por e-mail uma ficha de atendimento para que preencham seus dados. Recomendo a todo mundo que trabalha com psicoterapia que faça isso, até porque, eventualmente, vai enfrentar casos de ameaça e tentativa de suicídio e precisa ter contato de familiares e amizades, por exemplo. Nessa ficha de dados, constam questões sobre orientação sexual da pessoa, identidade de gênero, raça/etnia, se ela tem alguma religião, aspectos socioculturais que podem ser ou não relevantes para ela. E deixo frisado nessa ficha que todas as orientações sexuais, que todas as identidades de gênero, que todas as crenças e todas as raças e etnias são bem-vindas no consultório. Isso já dá um terreno de acolhimento muito grande. Também é imperativo que profissionais da psicologia avaliem questões relacionadas à experiência sexual da pessoa de uma maneira mais neutra. Você não pode perguntar a uma mulher, por exemplo, se ela tem namorado ou marido; isso é pressupor uma heterossexualidade que não necessariamente vai ser correspondente à pessoa. Mas você pode fazer perguntas mais amplas, como solicitar que ela fale um pouco sobre como são suas experiências afetivas e sexuais e se ela sai com alguém. Deixando tudo mais neutro, você vai abrindo um terreno para a pessoa se sentir mais à vontade. Dessa forma, se ela quiser trazer alguma coisa relacionada à sexualidade, ela vai trazer. Mas, em termos mais gerais sobre tornar a terapia um ambiente seguro, é colocar informações prévias, deixar explícito que a pessoa é bem-vinda independentemente da sua experiência, utilizar pronomes de uma maneira adequada (sempre pergunto com qual pronome a pessoa quer ser tratada), mostrar-se disponível, mostrar abertura. São atitudes que, possivelmente, vão eliciar mais conforto, mais segurança e mais abertura da pessoa que está sendo atendida.
Como a psicologia pode contribuir mais nas questões sociais que envolvem a vulnerabilidade das minorias sexuais e de gênero?
A partir da difusão de conhecimento. Penso que esse é o grande papel que a psicologia e a terapia afirmativa têm a oferecer ao grande público. É utilizar de conceitualização científica e social de qualidade para atacar os mitos e as iniquidades que ferem a dignidade e a qualidade de vida das minorias sexuais e de gênero. Não existe psicologia universal, não existe psicologia neutra, toda psicologia está implicada de alguma forma e é um dever, uma postura ética de profissionais da psicologia não se engajarem em más práticas e condenarem essas más práticas relacionadas à orientação sexual e de gênero. Faço aqui a defesa de uma psicologia compromissada com estudos empíricos que tenham impactos significativos na vida das pessoas e que a gente, enquanto profissionais formadores, tenha implicação em transmitir conhecimento aplicável, numa linguagem acessível, para que o maior público possível seja alcançado em termos da produção científica de qualidade e acesso a conhecimento qualificado.