Os principais sintomas do transtorno do espectro autista (TEA) em adultos, presentes em contextos como trabalho, estudo e socialização, envolvem dificuldades na interação social, sensibilidade sensorial e dificuldade em adaptação a mudanças. Padrões restritos e repetitivos, como interesses intensos ou rituais, também são marcantes.
Nesta entrevista, a neuropsicóloga Marciana Brizola ressalta a importância da busca de recursos para que as pessoas entendam suas próprias experiências, descartem suposições e iniciem uma jornada de autoconhecimento e aceitação. “O diagnóstico, quando preciso, oferece um lugar, uma identidade e um caminho para uma vida mais satisfatória e com maiores perspectivas em todas as áreas”, afirma.
Graduada em psicologia pelo centro universitário UniFil (Londrina/PR), Marciana é especialista em neurociência e comportamento pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em neuropsicologia (aplicação e avaliações de testes neuropsicológicos) pelo Centro de Diagnóstico Neuropsicológico (CDN), São Paulo/SP. Tem experiência nas áreas de psicoterapia, avaliação neuropsicológica e orientação profissional. Atualmente ocupa o cargo de neuropsicóloga na Onvita, em Londrina/PR.
Por que escolheu a especialização em avaliação neuropsicológica para atuar dentro da psicologia?
Minha escolha pela especialização em avaliação neuropsicológica surgiu da minha prática como psicóloga clínica. Frequentemente, percebia que os sintomas e comportamentos de alguns pacientes não se explicavam unicamente por fatores emocionais, ambientais ou históricos de vida. Havia indícios de que questões neurológicas, cerebrais ou cognitivas subjacentes desempenhavam um papel significativo na manutenção dessas manifestações, algo que a abordagem puramente clínica não conseguia acessar completamente. Essa busca por uma compreensão mais profunda e integrada do funcionamento humano, considerando a interface entre o cérebro e o comportamento, me direcionou para a neuropsicologia.
O TEA em adultos é tema que vem despertando cada vez mais interesse. Quais os motivos?
O crescente interesse pelo TEA em adultos resulta, em grande parte, da jornada de autodescoberta tardia de muitas pessoas. Na clínica, ouço relatos consistentes de indivíduos que sempre se sentiram “diferentes”, “estranhos” ou “fora do padrão”, internalizando essa percepção desde a infância por meio de comentários familiares, de professores e de conhecidos. Eles seguiram a vida da melhor maneira possível, muitas vezes sem compreender a raiz dessas diferenças.
O que observo atualmente é que as crescentes campanhas de conscientização e a maior disponibilidade de informações sobre a neurodivergência têm impulsionado essa população a buscar o diagnóstico e a autocompreensão, mesmo na idade adulta. É profundamente gratificante acompanhar a jornada de muitos adultos, inclusive um número significativo de homens, que me procuram em busca de entender a si mesmos, suas interações sociais e o mundo ao seu redor, finalmente encontrando um sentido para suas experiências.
Quais os principais sintomas do TEA em adultos e no que se diferenciam dos sintomas apresentados na infância?
Os principais sintomas do TEA em adultos, presentes em contextos como trabalho, estudo e socialização, envolvem dificuldades na interação social (como acompanhar conversas e interpretar sinais sociais), sensibilidade sensorial (a barulhos, por exemplo) e dificuldade em adaptação a mudanças. Padrões restritos e repetitivos, como interesses intensos ou rituais, também são marcantes.
Na infância, as dificuldades são as mesmas, mas se expressam de maneiras diferentes devido à idade: choro por separação, resistência a mudanças (como não querer se afastar da mãe), preferência por brincar sozinho e questões alimentares ou sensoriais básicas.
A diferença principal é a forma de manifestação: enquanto crianças podem ter comportamentos mais evidentes (birras, isolamento), adultos podem desenvolver estratégias de isolamento e evitação, mas as dificuldades subjacentes na comunicação, interação e necessidade de rotina persistem, impactando relacionamentos, carreira e bem-estar. É fundamental ter o conhecimento que o TEA se manifesta de maneiras muito diversas entre os indivíduos, configurando um espectro, o espectro autista.
De que forma o TEA pode interferir na vida adulta?
O TEA pode interferir significativamente na vida adulta, permeando diversas esferas do cotidiano. As dificuldades na comunicação e interação social frequentemente se traduzem em restrições para estabelecer e manter amizades duradouras e em limitações nos relacionamentos amorosos, impactando a construção de laços íntimos e o suporte social. No contexto acadêmico, mesmo indivíduos com alta inteligência podem enfrentar desafios consideráveis.
Em minha prática clínica, acompanhei pacientes que, embora estivessem na reta final do curso, num caso específico, de física, consideraram trancar a faculdade devido às dificuldades de adaptação e ao estresse. A sensibilidade sensorial a estímulos como barulhos e luz intensa, aliada à vulnerabilidade ao bullying, pode levar ao abandono dos estudos como mecanismo de proteção e sobrevivência, limitando o potencial acadêmico e profissional.
A vida profissional também é frequentemente afetada. A dificuldade em se ajustar a ambientes de trabalho não estruturados ou que não oferecem suporte adequado para as necessidades sensoriais e comunicacionais pode gerar instabilidade empregatícia. Presenciei pacientes que precisaram abandonar empregos devido ao ambiente excessivamente agitado.
Por outro lado, observo também pessoas com notável inteligência, criatividade e experiência profissional que se mantêm em empregos menos desafiadores e com menor remuneração por um medo intenso da mudança e da dificuldade em se adaptar a um novo ambiente.
Já os ambientes de trabalho adaptados, que valorizam os pontos fortes e oferecem suporte para as áreas de fragilidade, podem ser extremamente produtivos e inclusivos para pessoas com TEA.
Além dessas áreas, o TEA pode impactar a autonomia e a vida independente, especialmente em relação à organização, ao planejamento e ao manejo de rotinas complexas. A dificuldade em processar informações sociais e em antecipar expectativas pode gerar ansiedade e dificuldades em situações cotidianas.
Consequentemente, sem o reconhecimento e o suporte adequados, o TEA pode apresentar barreiras significativas para a plena participação social, o sucesso profissional e o bem-estar emocional na vida adulta. A criação de ambientes inclusivos e a implementação de estratégias de suporte individualizadas para reduzir esses impactos e permitir que adultos com TEA alcancem seu potencial máximo são fundamentais.
De que forma é feito o diagnóstico do TEA em adultos?
O diagnóstico de TEA em adultos é um processo complexo e multifacetado que envolve uma avaliação abrangente. Inicialmente, é feita uma entrevista clínica detalhada (anamnese) para coletar informações qualitativas sobre a queixa atual do paciente (os sintomas que o motivaram a buscar ajuda), seu histórico de vida, rotina diária, possíveis predisposições genéticas e outros fatores relevantes.
Em seguida, é preparada uma bateria de testes específica para adultos, que inclui tanto instrumentos quantitativos quanto qualitativos. Os testes quantitativos podem avaliar aspectos como cognição, linguagem e funcionamento executivo, enquanto os testes qualitativos investigam mais a fundo as características nucleares do TEA, como a comunicação e a interação social e os padrões restritos e repetitivos de comportamento.
O diagnóstico final é alcançado por meio da integração cuidadosa de todas as informações coletadas: a queixa do paciente, o histórico de vida detalhado e os resultados dos testes aplicados. Essa análise abrangente permite chegar a uma conclusão diagnóstica precisa, considerando a complexidade e a variabilidade da apresentação do TEA em adultos.
E como é feito o tratamento?
O tratamento do TEA em adultos é tipicamente multidisciplinar e individualizado, visando atender às necessidades específicas de cada pessoa. As principais recomendações incluem:
- Psicoterapia com psicólogos: a psicoterapia desempenha um papel crucial no tratamento de questões emocionais, manejo do estresse e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento para os desafios do dia a dia. O treinamento de habilidades sociais também é frequentemente incorporado para melhorar a comunicação e a interação social.
- Acompanhamento médico psiquiátrico: a avaliação psiquiátrica é importante para analisar a necessidade de intervenção medicamentosa, que pode auxiliar no controle da regulação emocional, de comportamentos repetitivos e da rigidez, bem como no tratamento de comorbidades como ansiedade e depressão.
- Psicoeducação: envolver o ambiente familiar com orientação e informações sobre o que é o autismo e como podem oferecer suporte é fundamental para reduzir o estresse no sistema familiar e reforçar atitudes assertivas e funcionais por parte do paciente e de seus entes queridos.
- Estilo de vida saudável: estimular a prática regular de atividades físicas e a adoção de uma alimentação saudável contribui para o bem-estar físico e mental, podendo influenciar positivamente o humor e a regulação emocional.
- Engajamento social gradual e reforçador: sugerir o envolvimento em atividades sociais dinâmicas de forma progressiva e que sejam prazerosas para o paciente, como caminhadas ao ar livre, contato com a natureza e interação com animais, pode facilitar a participação social e reduzir o isolamento.
É importante que o plano de tratamento seja construído em colaboração com o adulto autista, respeitando suas preferências e focando em seus objetivos de vida. O suporte contínuo e a adaptação das estratégias ao longo do tempo são essenciais para promover a autonomia, a qualidade de vida e o bem-estar geral.
Nos Estados Unidos, estudo aponta aumento de 400% dos casos de TEA em 16 anos. Nesse contexto, especialistas norte-americanos afirmam que há uma epidemia e autoridades falam em investigação de possíveis causas externas, como toxinas. Qual sua opinião a respeito?
Acredito que avanços em estudos e pesquisas são sempre fundamentais para aprofundar nosso conhecimento sobre condições complexas como o TEA. No entanto, com base em quase uma década de prática clínica, minha opinião sobre o aumento de casos se centra em dois pontos principais.
Primeiramente, observo um crescente reconhecimento de uma condição que historicamente foi pouco compreendida e frequentemente rotulada de forma moralista ou pejorativa. O desconhecimento da base neurobiológica e da predisposição genética para o TEA levava muitas pessoas a serem vistas como “crianças difíceis” ou “pessoas estranhas”, sem que a verdadeira causa de suas dificuldades fosse identificada.
As campanhas de conscientização e a maior disponibilidade de informação têm levado adultos que sempre se sentiram diferentes a buscar o diagnóstico tardio, encontrando finalmente uma explicação para suas vivências. A reação de alívio e entendimento que muitos pacientes expressam ao receber o diagnóstico, como verbalizar o encaixe de toda a sua história de vida, é um testemunho desse desconhecimento prévio.
Em segundo lugar, a predisposição genética me parece um fator determinante. Embora a hipótese de fatores ambientais, como toxinas, mereça investigação científica rigorosa, é importante considerar que muitas pessoas expostas a tais fatores não desenvolvem TEA, enquanto outras, sem histórico de exposição evidente, apresentam a condição.
Acredito que a pesquisa nessa área deve prosseguir para confirmar ou descartar essa hipótese. Enquanto aguardamos resultados conclusivos, o mais importante é que as pessoas busquem recursos para entender suas próprias experiências, descartar suposições e iniciar uma jornada de autoconhecimento e aceitação. O diagnóstico, quando preciso, oferece um lugar, uma identidade e um caminho para uma vida mais satisfatória e com maiores perspectivas em todas as áreas.