ESTUDO DE CASO

É sabido que o autismo se manifesta de maneira diferente no sexo feminino, as meninas tendem a ser menos agressivas, a apresentar menos estereotipias, e apesar de terem dificuldades sociais, têm mais facilidade para imitar comportamentos alheios do que os meninos.

Critérios diagnósticos

De acordo com o DSM V1, os critérios diagnósticos para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) são:

A. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos):

1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma conversa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais.

2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal.

3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse por pares. Especificar a gravidade atual: A gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões de comportamento restritos e repetitivos.

B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos):

1. Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos (p. ex., estereotipias motoras simples, alinhar brinquedos ou girar objetos, ecolalia, frases idiossincráticas).

2. Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (p. ex., sofrimento extremo em relação a pequenas mudanças, dificuldades com transições, padrões rígidos de pensamento, rituais de saudação, necessidade de fazer o mesmo caminho ou ingerir os mesmos alimentos diariamente).

3. Interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco (p. ex., forte apego a ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverativos).

4. Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (p. ex., indiferença aparente a dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar objetos de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou movimento). Especificar a gravidade atual: A gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões restritos ou repetitivos de comportamento.

C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento (mas podem não se tornar plenamente manifestos até que as demandas sociais excedam as capacidades limitadas ou podem ser mascarados por estratégias aprendidas mais tarde na vida).

D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo no presente. E. Essas perturbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou por atraso global do desenvolvimento. Deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista costumam ser comórbidos; para fazer o diagnóstico da comorbidade de transtorno do espectro autista e deficiência intelectual, a comunicação social deve estar abaixo do esperado para o nível geral do desenvolvimento.

avaliação neuropsicológica

Amanda, 31 anos, casada, procurou avaliação neuropsicológica por suspeitar ser portadora do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Quando era criança, o pediatra comentou com sua mãe sobre a possibilidade, mas esta não levou adiante as investigações. Amanda tem diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) realizado por psiquiatra e, portanto, faz uso de antidepressivo e ansiolítico.  

Amanda relatou apresentar rotinas fixas, falta de habilidades sociais, interesses perseverativos (hiperfoco) e questões relacionadas à alimentação.

As rotinas fixas ocorrem com relação ao lugar que se senta para comer à mesa, que precisa sempre ser o mesmo; ocorrem também com relação à hora do almoço, que também precisa ser sempre a mesma.

Quanto à falta de habilidades sociais, relatou não se sentir bem quando precisa cumprimentar muitas pessoas em um evento, não ter amigos próximos e não saber como se comportar em lugares ou situações distintas. Não compreende o estado emocional das pessoas, o que dificulta seus relacionamentos interpessoais. Já o interesse perseverativo, está relacionado ao tema ‘idiomas’, como Amanda gosta muito de estudar línguas, precisa se policiar para não conversar sobre o tema o tempo todo. Com relação aos alimentos, estes não podem encostar um no outro no prato.

Processo de avaliação

A avaliação aconteceu em 6 sessões. Na primeira sessão, foi realizada anamnese detalhada sobre dados desde a infância até a atualidade. Na segunda sessão, foram aplicados o Teste dos Olhos2, que avalia Teoria da Mente[1], a Hospital Anxiety and Depression Scale (Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão) (HADS)3, que mostra os índices de ansiedade e depressão, o Teste de Stroop4, que avalia controle inibitório e atenção, o Teste de Fluência Verbal Fonética (FAS)5 e o Teste de Fluência Verbal Semântica (animais)5, que avaliam fluência verbal fonética e fluência verbal semântica, respectivamente. Na ocasião, também foram enviados os links para autoaplicação do Inventário de Personalidade NEO – Revisado (NEO PI-R)6 para que fosse possível conhecer as características de personalidade de Amanda e o Inventário de Habilidade Sociais7 para avaliação das Habilidade Sociais.

Na terceira sessão, foram aplicadas as Figuras Complexas de Rey8, que avaliam a percepção visual e memória episódica visuoespacial imediata; o Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey (RAVLT)9, que demonstra questões relativas à aprendizagem; o Five Digit Test -Teste dos Cinco Dígitos (FDT)10, indicado para avaliação da atenção, flexibilidade cognitiva e controle inibitório; e a Bateria Psicológica para Avaliação da Atenção (BPA)11, específica para avaliação de Atenção Concentrada, Atenção Dividida e Atenção Seletiva. Na quarta sessão, foi aplicada a Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (WAIS-III)12, cuja função principal é avaliar a inteligência global, mas que permite também a avaliação de aspectos como memória, velocidade de processamento, dentre outros.  Na quarta sessão, foi realizada a entrevista devolutiva.

Amanda demonstrou ter QI médio e apresentou déficits nos seguintes constructos cognitivos: índice de aprendizagem auditivo-verbal, memória de curto prazo episódica verbal, memória de longo prazo episódica verbal, memória operacional, memória episódica visuoespacial imediata, habilidades sociais e teoria da mente. Foram identificados ainda prejuízos discretos na memória episódica verbal de reconhecimento e linguagem (conceituação verbal).

Reabilitação cognitiva

O déficit em teoria da mente, que por sua vez desencadeia os déficits em habilidades sociais, é muito encontrado em autistas em vários níveis. Esta informação em conjunto com a história clínica auxiliou no diagnóstico diferencial. Os demais déficits podem ser encontrados em pessoas neurotípicas ou em pessoas com outros transtornos mentais.

Foi proposto para a paciente reabilitação cognitiva relacionada aos constructos afetados e treino de habilidades sociais.

É muito importante um diagnóstico correto não só para que se possa propor o melhor tratamento, como também para que o indivíduo se reconheça. Muitos adultos portadores de TEA que chegam até mim se sentem aliviados após o diagnóstico, pois para estes é uma forma de se encontrar, se reconhecer e de saber porque são diferentes dos indivíduos neurotípicos.

O ideal é que o indivíduo autista inicie o tratamento na infância, quanto mais precoce o início melhor, porém devido à falta de conhecimento científico e de informação em tempos anteriores, muitas pessoas cresceram sem diagnóstico, driblando as dificuldades por si mesmos.

Outras, com quadros mais graves, não conseguiram chegar ao desempenho máximo por conta de falta de conhecimento da condição, falta de diagnóstico e tratamento. Muitos pacientes relatam ter se criado sozinhos, pois a falta de diagnóstico e consequentemente de tratamento, fez com que estes lidassem sozinhos com as próprias limitações e criassem estratégias nem sempre adequadas para enfrenta-las. Portanto, se você desconfia que pode ser portador de TEA, ainda que você seja adulto(a), procure avaliação neuropsicológia para que você possa ter diagnóstico e tratamento adequados.

E MAIS…

O tema nas telas

Para você que deseja compreender melhor como vive uma mulher autista e como os sintomas do transtorno se manifestam, eu recomendo a série Uma Advogada Extraordinária, top 10 da plataforma de streaming Netflix.

É uma série coreana, que retrata as facilidades e as dificuldades de uma autista adulta graduada em Direito. A personagem de 27 anos, Woo Young Woo, tem inteligência e memória surpreendentes, mas como todo portador de TEA, o déficit em teoria da mente faz com que ela tenha dificuldade de compreender como se comportar em situações sociais. Dra. Woo manifesta dificuldade de compreender o que ela mesma sente e de inferir estados mentais alheios, o que a leva a dizer frases inadequadas.   

Além disto, apresenta interesse perseverativo, visto que precisa se policiar para não falar de seu assunto de maior interesse, baleias. Apresenta também estereotipias e ecolalia. Percebe-se estereotipia quando a personagem mexe os dedos antes de adentrar um recinto, este movimento das mãos a ajuda a regular suas emoções nos momentos que para ela são de tensão, assim como para os demais portadores de TEA. A ecolalia se trata da repetição mecânica de frases que acabou de ouvir. Na série isto ocorre poucas vezes, também num momento em que Dra Woo se sentesib pressão.

A personagem demonstra também hipersensibilidade sensorial, sobretudo quando exposta a sons muito altos. Por isto, criou a estratégia de utilizar fones de ouvido para abafar o som ambiente. Fica evidente também a seletividade alimentar, Woo Young Woo come kimbap em todas as refeições e este deve ser sempre preparado da mesma maneira. Ao tentar provar outros alimentos forçosamente, sente-se nauseada.

A personagem demonstra ainda apego a rotinas fixas, demonstrando dificuldade de dormir fora de casa por não se adaptar à cama, ao barulho do relógio e à iluminação etc.

É importante salientar que este artigo contempla uma paciente com QI médio, ou seja, dentro da normalidade, e a personagem Woo Young Woo, que QI superior; porém existem autistas com déficit intelectual (QI inferior), que apresentam mais dificuldades do que as mulheres aqui referidas. 

Referências
1.    American Psychiatric Association. DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5a ed. Artmed; 2014. 992 p.
2.    Vieira B et. al. Revised Reading the Mind in the Eyes Test (RMET) – Brazilian version. Rev Bras Psiquiatr. 2013;
3.    Crawford JR, Henry JD, Crombie C, Taylor EP. Normative data for the HADS from a large non-clinical sample. Br J Clin Psychol. 2001;40(4):429–34.
4.    Castro, S. L., Cunha, L. S. & Martins L. Teste Stroop Neuropsicológico em Português. Disponibilizado por Laboratório de Fala da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. 2000.
5.    Campanholo KR, Fonte Boa IN, Hodroj FCSA, Guerra GRB, Miotto EC  de LM. Impact of sociodemographic variables on executive functions. Dement Neuropsychol. 2017;11(1):62–8.
6.    Costa JPT, McCrae RR. NEO PI-R: Inventário de Personalidade Neo revisado; e Inventário de cinco fatores Neo revisado: NEO-FFI-R (versão curta). São Paulo: Vetor; 2010.
7.    Del Prette ZAP, Del Prette A. Inventário de habilidades sociais 2 (IHS2-Del-Prette): manual de aplicação, apuração e interpretação. São Paulo: Pearson Clinical Brasil; 2018.
8.    Rey A. Figuras Complexas de Rey: teste de cópia e reprodução de memória de figuras geométricas complexas. Pearson Clinical Brasil; 2018.
9.    De Paula JJ, Malloy-Diniz LF. Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey (RAVLT): livro de instruções. São Paulo: Vetor Editora; 2018.
10. Sed M, Paula JJ, Malloy-Diniz LF. Five Digit Test, Teste dos Cinco Dígitos. São Paulo: Hogrefe; 2015.
11. Rueda FJM. Bateria Psicológica para Avaliação da Atenção BPA. São Paulo: Vetor Editora; 2013.
12. wechsler D. Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (3a Edição). São Paulo: Casa do Psicólogo; 2015.
13. Malloy-Diniz L, Fuentes D, Mattos P, Abreu N, e cols. Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed; 2010.

[1] Dimensão da consciência fundamental para o comportamento social. Através deste recurso o ser humano é capaz de reconhecer e interpretar expressões como ironia, dissimulação, sofrimento, interesse e falsidade13.